OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
VOL14 N2, TD2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124
Editorial Nancy Elena Ferreira Gomes e Roberta Stumpf pp. 2-5
ARTICLES / ARTIGOS
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil: Comparações,
Influências, Intervenções José Manuel Santos-Pérez pp. 6-20
A Grande Colômbia: Política Externa e Desintegração Regional Nancy Elena Ferreira
Gomes pp. 21-37
As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações internacionais (1800-
1825) - Nuno Canas Mendes pp. 38-47
Forças e Dinâmicas na Origem da Guerra do Paraguai uma Perspetiva - Raquel de
Carias Patrício pp. 48-63
Circuitos governativos e os diferentes projetos políticos no contexto da Independência
do Brasil Roberta Stumpf pp. 64-79
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Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
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EDITORIAL
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
ngomes@autonoma.pt
Doutora em Relações Internacionais (FCSH - Universidade Nova de Lisboa). Mestre em Relações
Internacionais (ISCSP - Universidade de Lisboa). Licenciada em Estudos Internacionais
(FACES - Universidade Central da Venezuela). É Professora Associada da Universidade
Autónoma de Lisboa (Portugal), onde leciona desde 1995. Foi Coordenadora científica da
Licenciatura em Relações Internacionais na UAL (20202023). É Coordenadora do Curso
Avançado de Estudos sobre a América Latina (UAL IDN OEI), Coordenadora da
Cátedra de Estudos Ibero-Americanos (OEI UAL), e Investigadora do CEI (ISCTE-IUL) e
do OBSERVARE (UAL). É Diretora da Delegação da Fundação Universitária Ibero-
Americana (FUNIBER) em Portugal, desde 2022. Exerceu funções de Consultoria no
Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian (entre 2001 e 2005).
Ciência ID 4815-8FA4-D2C2.
ROBERTA STUMPF
rstumpf@autonoma.pt
Professora Associada e subdiretora para a investigação do Departamento de História, Artes e
Humanidades da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigadora integrada
do CIDEHUS.UAL. Seus temas de investigação incluem História das dinâmicas
administrativas nos Impérios Ibéricos e História social do Brasil (séculos XVII e XIX).
Publicou vários capítulos de livros, artigos em revistas académicas e tem 2 livros
monográficos e 6 livros coletivos. Dentre os quais: Las distancias en el gobierno de los
imperios ibéricos: Concepciones, experiencias y vínculos (Casa de Velázquez, 2022) [com
G. Gaudin] e 1822. Das Américas ao Brasil (Casa das Letras, 2022) [ com N.G. Monteiro].
Como citar este editorial
Gomes, Nancy Elena Ferreira & Stumpf, Roberta (2024). Editorial. Janus.net, e-journal of
international relations. VOL14 N2, TD2 - Dossiê temático Portugal e Brasil: história, presente e
futuro”. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124ED
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Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 2-5
Editorial Nancy Elena Ferreira Gomes e Roberta Stumpf
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EDITORIAL
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
ROBERTA STUMPF
Este dossiê temático intitula-se “Portugal e Brasil: história, presente e futuro”. Todos os
autores participaram no Colóquio Internacional com o mesmo título, realizado em 3 de
novembro de 2022, na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), por ocasião das
Comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil.
O Colóquio “Portugal e Brasil: história, presente e futuro” teve por objetivo promover um
debate orientado por referências geográficas e cronológicas amplas, abrangendo as
relações históricas entre os países ibero-americanos no contexto das independências até
a atualidade.
As várias comunicações apresentadas por especialistas provenientes de universidades
brasileiras, espanholas e portuguesas desenvolveram temáticas que se cruzaram com os
objetivos mais específicos definidos pelos organizadores do Colóquio, entre os quais:
Compreender como as relações hispano-portuguesas antes das independências dos
respetivos territórios no continente americano determinaram a definição das
fronteiras políticas e administrativas dos novos Estados, com especial atenção para
o caso do Brasil;
Abordar as diferenças dos processos independentistas dos antigos territórios de
Castela e Portugal no continente americano, e compreender as razões pelas quais
esses mesmos processos conduziram a resultados diversos no que respeita à
fragmentação e à unidade do conjunto dos Estados hispano-americanos, e do Brasil,
respetivamente;
Conhecer e compreender as relações internacionais no período das independências,
por exemplo, a influência que as ideias da Revolução Francesa tiveram nos projetos
concebidos pelas elites criollas, o impacto das invasões francesas na península
ibérica com a prisão da família real espanhola, e a transmigração da família real e
da corte portuguesas para o Brasil;
Perceber e conhecer o processo de inserção internacional do império do Brasil no
século XIX, contexto marcado pela hegemonia política e comercial inglesa na
América Latina e pelas guerras pela delimitação territorial ainda pendente na região;
Analisar o processo de inserção internacional do Brasil republicano no século
marcado pelas duas Grandes Guerras, e pelo “intervencionismo” dos EUA na região,
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no quadro da Guerra Fria. Compreender como o Brasil viveu a experiência do
“consenso neoliberal” na década de 1990;
E, por fim, refletir sobre o papel do Brasil enquanto ator internacional no século XXI
marcado pela pandemia e a guerra na Ucrânia, tentando responder à questão: Qual
é o papel que o Brasil é chamado a desempenhar no(s) mundo(s) que temos?
O Colóquio “Portugal e Brasil: história, presente e futuro” realizou-se no âmbito das
Cátedras de Estudos Ibero-Americanos OEI/UAL e de História e Cultura Luso-Brasileira
da UAL.
A Cátedra de Estudos Ibero-Americanos, coordenada pela Professora Nancy Elena
Ferreira Gomes, foi criada em março de 2022 com o propósito de desenvolver e promover
diferentes áreas de conhecimento, nomeadamente através da dinamização de atividades
de investigação, desenvolvimento e formação avançada em temas de interesse mútuo
para as principais instituições envolvidas: a Delegação da Organização de Estados Ibero-
Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) em Portugal, chefiada pela
Professora Ana Paula Laborinho, e a UAL. Desde a sua criação foram atribuídas bolsas
para a frequência do Curso Avançado de Estudos sobre a América Latina - promovido em
parceria pela UAL e pelo Instituto de Defesa Nacional -, realizadas e previstas numerosas
atividades académicas orientadas por objetivos mais específicos, como: criar um sistema
de informação/divulgação mais eficaz sobre o “acervo ibero-americano”; incentivar o
debate e a reflexão sobre o ibero-americano desde uma perspetiva portuguesa; trabalhar
no sentido da promoção das Línguas; e articular e consolidar comunidades de
conhecimento nas áreas prioritárias de investigação com impacto social.
A Cátedra de História e Cultura Luso-Brasileira, coordenada pelo Professor Miguel
Figueira de Faria, foi criada em 2015 com o propósito de incentivar o intercâmbio de
alunos, docentes e investigadores do Departamento de História, Artes e Humanidades e
os de instituições e universidades brasileiras. No mesmo ano da sua criação, foi assinado
um convénio com a Cátedra Jaime Cortesão do Departamento de História da Universidade
de São Paulo. Desde então, tem-se realizado uma série de atividades académicas que
demonstram a sua importância na dinamização de parcerias institucionais entre os dois
países, essenciais para promover e aprofundar o conhecimento da história e da cultura
de Portugal e do Brasil, do século XV à atualidade.
A publicação deste dossiê temático “Portugal e Brasil: história, presente e futuro” vai,
naturalmente, ao encontro dos propósitos de ambas as cátedras e dos objetivos do
Colóquio realizado em novembro de 2022, e reúne cinco artigos de especialistas
provenientes de universidades espanholas e portuguesas avaliados em double blind
referee. O primeiro artigo analisa as relações luso-espanholas no passado com foco no
período da Independência do Brasil, demonstrando a importância da participação da
Espanha foi muito mais importante do que se pensava até agora; no segundo, a autora
procura relacionar a política externa grandecolombiana com as causas da desintegração
daquele espaço regional, pondo o foco nos instrumentos típicos utlizados: a diplomacia
e a guerra; o terceiro artigo incide sobre o cenário internacional de ocorrência das
independências das colónias espanholas e do Brasil no primeiro quartel do culo XIX,
contextualizando-as e relacionando-as com as grandes transformações ocorridas na
Europa e das respetivas réplicas no Novo Mundo; o quarto analisa as motivações internas
e regionais dos Estados da Bacia do Prata e as suas vinculações externas, de forma a
elucidar a conjuntura política marcada pela Guerra do Paraguai; e o quinto e último artigo
analisa as mudanças no circuito governativo e na comunicação política do Império
português, a partir de 1808 até a independência do Brasil em 1822.
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As investigações realizadas representam, sem dúvida, contributos relevantes para a
literatura existente e promovem novos debates interdisciplinares no meio académico
português e internacional sobre estas temáticas.
As Coordenadoras do Dessiê Temático
Nancy Elena Ferreira Gomes e Roberta Stumpf
Lisboa, 31 de janeiro de 2024
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AS RELAÇÕES HISTÓRICAS ESPANHA-PORTUGAL E A INDEPENDÊNCIA DO
BRASIL: COMPARAÇÕES, INFLUÊNCIAS, INTERVENÇÕES
JOSÉ MANUEL SANTOS-PÉREZ
manuel@usal.es
Professor de História do Brasil na Universidade de Salamanca (Espanha). Atualmente é Diretor do
Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, do qual foi o primeiro
diretor entre 2001 e 2007. É Investigador Principal do Grupo de Investigação
Reconhecido (GIR) "BRASILHIS: História do Brasil e do Mundo Hispânico em perspetiva".
Os seus últimos livros são Histórias Conectadas - Ensaios sobre História Global,
Comparada e Colonial na Idade Moderna (Brasil, Ásia e América Hispânica); a versão
espanhola do Diálogo de las Grandezas de Brasil (com a colaboração de Sylvia Brito);
1822: Independencia, primeiro volume da trilogia Brasil: 1822-1922-2022 e Salvador de
Bahía, 1625. A "Viagem do Brasil" em notícias, relações e teatro com Irene Vicente
Martín e Enrique Rodrigues-Moura.
Resumo
Dois importantes processos históricos, a união das coroas ibéricas e seu impacto no Brasil e
o processo de independência brasileira, têm em comum a existência de interpretações
teleológicas e anacrônicas que impedem uma análise correta do que aconteceu. Este artigo
analisa as relações luso-espanholas no passado com foco no período da Independência do
Brasil, mostrando que a participação da Espanha foi muito mais importante do que se pensava
até agora.
Palavras-chave
Brasil, Independência, Comparações, Intervenção, Relações Espanha-Portugal.
Abstract
Two important historical processes, the union of Iberian crowns and its impact on Brazil, and
the process of Brazilian Independence, have in common the existence of teleological and
anachronistic interpretations that prevent a correct analysis of what happened. This article
analyses Spanish-Portuguese relations in the past with a focus on the period of Brazil's
Independence, showing that Spain's participation was much more important than expected
so far.
Keywords
Brazil, Independence, Comparisons, Intervention, Spain-Portugal relations.
Resumen
Dos importantes procesos históricos, la unión de las coronas ibéricas y su impacto en Brasil y
el proceso independentista brasileño, tienen en común la existencia de interpretaciones
teleológicas y anacrónicas que impiden un análisis correcto de lo ocurrido. Este artículo analiza
las relaciones luso-españolas en el pasado centrándose en el período de la independencia de
Brasil, demostrando que la participación de España fue mucho más importante de lo que se
pensaba.
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Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
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Palabras clave
Brasil, Independencia, Comparaciones, Intervención, Relaciones España-Portugal.
Como citar este artigo
Santos-Pérez, José Manuel (2024). As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do
Brasil: Comparações, Influências, Intervenções. Janus.net, e-journal of international relations.
VOL14, N2, TD2 - Portugal e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-
7251.DT0124.1
Artigo recebido em 30 de Outubro de 2023 e aceite para publicação em 19 de Janeiro de
2024
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Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
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AS RELAÇÕES HISTÓRICAS ESPANHA-PORTUGAL
E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL:
COMPARAÇÕES, INFLUÊNCIAS, INTERVENÇÕES
JOSÉ MANUEL SANTOS-PÉREZ
Introdução
Nos últimos anos, afortunadamente, assistimos a uma importante mudança na maneira
de entender e escrever História. É cada vez mais comum encontrar títulos que incluem a
palavra “global” e globalização”. Para uma parte da historiografia, as velhas “histórias
nacionais” estão em decadência e as “histórias conectadas”, ou connected histories,
fazem parte do vocabulário corriqueiro de qualquer estudante de doutorado. Vista desde
esse ponto de vista, a História das relações entre países cobra uma nova dimensão. Se
antes eram acentuados os aspectos de confronto, as diferenças, os conflitos, os
ressentimentos, as atitudes agressivas de uns para outros, aos poucos estamos
pensando mais na ideia de múltiplos contatos, conexões diversas, influências mútuas,
histórias conectadas e, até diria, histórias entrelaçadas.
O estudo e a interpretação do tema das “relações” hispano-portuguesas têm mudado ao
longo do tempo, e, nos tempos atuais, da “exceção ibérica” dentro da União Europeia,
não podia ser de outra maneira. Investimentos económicos de um e de outro lado,
milhões de turistas cruzando as fronteiras, milhares de trabalhadores de um país no
outro, múltiplas e frutíferas relações académicas, e, por que não lembrar, ltiplas
relações afetivas.
As visões dos nacionalismos confrontados de ontem deram passo, portanto, às visões
das relações fraternas de hoje. Toda história é história contemporânea, e portanto, a
maneira como nós, historiadores, olhamos o passado, muda com cada momento
histórico. Isso não é um problema, isso é a maior virtude da nossa disciplina científica.
Uma segunda ideia é que a questão das relações Espanha/Portugal, desde uma
perspectiva americana, ou melhor, a história das relações dos Reinos de Espanha e
Portugal, da Monarquia Hispânica e da Coroa de Portugal e suas conquistas, abrange
uma quantidade quase infinita de temáticas e possibilidades, que seria impossível
resumir (Ayllón Pino, 2006, passim).
Qualquer dos possíveis temas daria para um livro. Essa História das relações hispano-
luso-brasileiras vai dos finais da Idade Média, com o tratado da Linha de Demarcação de
Tordesilhas, que tem a sua própria história na América, com as tantas tentativas para
fixá-la no enorme território, até a sua superação com os tratados de limites do século
XVIII, que deram ao Brasil o seu tamanho continental; a história comum passa por Ana
Pimentel, mulher salmantina que introduziu o arroz no litoral de o Vicente nos anos 40
do século XVI; passa pelas invasões holandesas, a conquista holandesa de Salvador de
Baia de Todos os Santos e a recuperação pelas armadas luso-hispano-napolitanas de
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1625; passa pelas duas restaurações: a portuguesa e a pernambucana; a fundação de
Colônia do Sacramento; e ainda, passa pela intervenção espanhola na Independência, a
intervenção portuguesa na Cisplatina, os projetos comuns dos liberais dos dois lados,
que pensaram criar uma “União Ibérica Liberal”, etc.
Um período que deve ser destacado singularmente é o período da união das coroas
ibéricas (a mal chamada “União Ibérica”), ou Período Filipino, o momento da anexação
do Reino de Portugal e suas conquistas aos vãos territórios de Filipe II (Filipe I de
Portugal) depois da crise sucessória de 1580-81.
Durante esse período, de 1580-1 a 1640, um enorme conjunto de territórios ficou unido
(pelo menos na teoria) sob a mesma coroa. De Macau a Lima, de Antuérpia a Goa, de
Olinda a Malaca, espaços imensos separados por enormes oceanos acumularam-se nos
mapas e nas estratégias dos conselheiros dos reis da Casa de Áustria em Madri. Um
império complexo, um império católico, a Monarquia Católica, como era conhecido na
época esse conglomerado. O vasto território ao qual se acrescentam em 1581 as
possessões portuguesas, nos mostra o teatro das primeiras fases da globalização ao
colocar sob o mesmo rei umas 225 cidades (nas quais se ouvia uma missa a cada meia
hora num lugar diferente do planeta) (Socolow & Hoberman, 1986, p. 3).
A união das coroas, os 60 anos de domínio Habsburgo, culminados pelo Rei Planeta,
Felipe IV (III de Portugal), não foi, não poderia ser, na América portuguesa, um período
neutro, um período qualquer.
Além das mudanças conhecidas por todos (divisão em dois Estados, Ordenações Filipinas,
expansão para o norte, etc.), podemos adicionar: expansão económica, reformas
administrativas e fiscais; legislação de proteção dos indígenas; organização do sistema
defensivo e muitas mais que o breve espaço que tenho não me deixa desenvolver com
detalhe.
A historiografia relativa a esse período, no passado, tem sido especialmente afetada pela
relação peculiar que a partir de 1640 têm tido Espanha e Portugal, e mais tarde pela
distância que o Brasil marcou em relação a sua antiga metrópole desde 1822.
De fato, o período da União Dinástica foi visto tradicionalmente pela historiografia
portuguesa de tipo nacionalista como um período escuro, com um resultado catastrófico
para a situação de Portugal no cenário internacional. A suposta negligência dos reis da
Casa de Áustria com as possessões portuguesas, a sua preocupação extrema pelas
guerras na Europa e a prata americana, teriam determinado a perda dos territórios nas
primeiras quatro décadas do século XVII, especialmente entre os anos 1621 a 1641. Esse
argumento foi muito usado a partir dos ataques holandeses à Bahia e Pernambuco em
1624 e 1625 (Santos Pérez & Vicente Martín, 2023, p. 30-31).
Que o Reino de Portugal foi uma "vítima" da união das coroas, e não um dos principais
beneficiários, (que é o que a historiografia mais recente está mostrando), foi um tema
recorrente nas crônicas pós-Restauração de 1640, dada a necessidade do Duque de
Bragança, rei João IV, de legitimar a ação de 1 de dezembro.
Podemos dizer que tanto a história da união das coroas ibéricas, quanto a história da
Independência do Brasil, tiveram dois problemas interpretativos fundamentais,
problemas interpretativos, podemos dizer, na “vertical e na horizontal”.
Na vertical porque nos dois casos foram construídos relatos que, teleologicamente,
condicionavam todos os assuntos anteriores a uma resolução futura, no 1 de dezembro
de 1640, e no 7 de setembro de 1822, respectivamente, como se os homens de 1625
soubessem o que iria acontecer em 1640, ou como se os homens de 1808 soubessem
dos desenvolvimentos do ano 22.
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Essa visão de 1640, como se tudo o que aconteceu tivesse uma explicação a posteriori,
ou fosse um antecedente dos acontecimentos de dezembro desse ano, é um problema
de anacronismo metodológico que Fernando Bouza salientou na sua tese de
doutoramento.
cada acontecimento ocorrido nos anos entre 1580 e 1640 foi objeto de uma
interpretação tão unívoca e julgado a priori - seria melhor dizer a posteriori -
que acabou por perder todo o valor em si mesmo e foi reduzido a um simples
elo numa cadeia de acontecimentos que, inelutavelmente, teve de conduzir a
1640 (Bouza Álvarez, 1987, p. 4).
Algo parecido acontece com o relato dos fatos que conduziram à Proclamação de um
outro Bragança no 7 de setembro de 1822.
Devemos deixar claro que a Independência do Brasil não foi uma "história inevitável de
acontecimentos" como uma série de eventos concatenados que parecem uma sequência
com um fim inevitável e conhecido em 1822. Esta forma claramente teleológica de
encarar a questão leva à construção de uma espécie de "Lenda da Independência" que é
muito comum e típica de muitos livros de história sica no Brasil. A utilização de
mensagens breves e diretas nas redes sociais atuais impôs outra vez esta interpretação
prêt-à-porter na imaginação popular.
Este processo da emancipação brasileira não teve uma causa única ou um resultado
inevitável: a solução conservadora e centralista resultante, imposta a partir do eixo Rio
de Janeiro-São Paulo, que dominou a narrativa da sequência dos acontecimentos, não
foi a única possível.
Do ponto de vista “horizontal”, os eventos de 1580-1640, e os da Independência do
Brasil, também tiveram interpretações parecidas no passado, que devemos superar.
A visão de um Brasil isolado, quase como uma “ilha Brasil durante todo o período
colonial, e concretamente, durante o período de 1580 a 1640, deve ser totalmente
revista.
No quadro da união das coroas ibéricas foram postas em marcha ligações planetárias que
transformaram a era moderna em todos os aspectos, fundamentalmente nas esferas
política, económica, religiosa e cultural, e o Brasil foi “praça do mundo”, como comentou
Ambrósio Fernandes Brandao no Diálogo das Grandezas do Brasil, protagonista de muitas
dessas conexões globais (Brandão, 2019, p. 199).
O estudo do período conhecido como o período dos "Felipes" ou "filipino" assumiu uma
grande importância nos últimos anos, em parte devido à sua consideração como o
"primeiro império global". Numerosas obras consideram abertamente este período como
a primeira manifestação do processo de "globalização na história”. Hoje seria impossível
considerá-lo, apenas, como um capítulo das relações “nacionais” entre a Espanha e
Portugal, como também seria impossível (mesmo se isso acontece frequentemente),
deixá-lo de lado na história do Brasil colônia.
Do mesmo modo, o processo de Independência do Brasil não foi um fenómeno nico",
"exclusivo" ou isolado. Partilhou muitos dos seus aspectos com o resto dos movimentos
independentistas na América, e alguns dos seus protagonistas mantiveram relações
muito estreitas com as correntes liberais da época, que tiveram uma influência notável
sobre eles. Portanto, é de maneira comparativa e conectada como devemos ver hoje os
acontecimentos na história. Uma autêntica revolução historiográfica.
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Na questão da Independência, a relação da Espanha com esse processo parece ter sido
negligenciada, mais ou menos como o período da união das coroas, na historiografia
luso-brasileira e espanhola.
É importante salientar que, igual ao que está acontecendo para o período colonial, na
nova historiografia sobre a Independência, protagonizada pelo tristemente desaparecido
Istvan Jancsó, por J. P. Pimenta, Márcia Berbel, Andrea Slemian, etc, já sim aparece de
forma clara a questão hispânica e o papel da Espanha e da América Hispana no processo
da emancipação política do Brasil.
A relação com a Espanha do processo da independência é evidente. Nessa visão ampla
da questão das relações Hispano-luso-brasileiras antes da Independência, acho que seria
interessante colocar os diferentes planos que nos podem dar dimensões de análise. Por
isso, abordarei a temática desde 3 perspectivas possíveis (dentre outras muitas):
1) A comparação (ou comparações);
2) A(s) influência(s);
3) A intervenção (ou intervenções).
Cada uma destas opções de análise nos leva a transitar por caminhos diferentes, alguns
deles já muito transitados pela historiografia, outros menos. No espaço que aqui temos,
não poderei fazer mais do que apontar alguns dos elementos mais destacados.
1) Comparações
Começando pela comparação, acho que é algo que sempre se fez. E se fez de maneira
intencionadamente errada. Os historiadores brasileiros do século XIX e parte do XX
gostavam muito de fazer essa comparação de forma simples. O argumento era mais ou
menos o seguinte: na América Hispánica: fragmentação, republicanismo anárquico e
violência indescritível; no Brasil: unidade, monarquia, solução pactuada e pacífica.
Talvez o mito mais estendido e duradouro tenha sido este último de que a Independência
do Brasil foi um processo pacífico. Encontramos essa afirmação, inclusive hoje, em
trabalhos recentes de reputados historiadores especialistas nas independências da
América hispânica, pouco familiarizados com o processo brasileiro. Esse mito tem sua
origem na defesa da monarquia como elemento estabilizador, mas fundamentalmente se
originou como contraste e comparação com os muito violentos processos de
Independência da América hispânica. O argumento era: a América hispânica
independizou-se num caos bélico, enquanto a América portuguesa o fez de maneira
quase pactuada. A realidade foi outra.
A comparação nos leva, hoje, por outros caminhos.
O primeiro deles é que os dois impérios ibéricos compartilham um fato fundamental.
Como argumentaram Tulio Halperin Dongui e Antonio Annino, as Independências
foram uma consequência da crise dos Impérios ibéricos, e o a causa dela: foi a crise
terminal dos impérios ibéricos que provocou os movimentos de independência.
Segundo Annino, “Em 1808, as elites criollas o estavam a favor da independência, mas
durante os seguintes 15 anos mudaram de ideia, muitas vezes forçados pelas
circunstâncias” (Annino, 1995, p. 39).
Nesse sentido, as correntes mais recentes da historiografia sobre a América hispânica
têm salientado a importância do ano 1808 para o desenvolvimento do processo,
relativizando versões anteriores como a do nacionalismo hispano-americano, com base
nos argumentos de Bolívar dos “300 anos de opressão”, ou o argumento de John Lynch
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sobre que as independências teriam sido uma reação à tentativa de mudança das
reformas dos Bourbons (Lynch, 1991, passim). Os dois sistemas, o espanhol e o
português, compartilham portanto a enorme importância do ano 8 e a crise dos impérios
para explicar os fenômenos independentistas.
E da mesma forma compartilham também outro fato importante: o processo de colapso
dos dois impérios teve como resultado a formação de dezenas de estados em América e
de dois estados na Europa: Espanha e Portugal (Suárez Cortina, 2010, passim).
É muito importante colocar num plano de fim do Antigo regime e de construção do estado
e da nação liberal, com suas tensões e retrocessos, tanto os processos dos estados
americanos como os processos dos estados europeus. E nesse sentido, devemos destacar
que nos dois casos veio primeiro a construção do estado e depois a nação, sendo o
estado-nação, na América e na Europa, um produto do século XIX.
E também: os impérios de Espanha e Portugal, o as unidades políticas resultantes da sua
crise terminal, compartilham que o que começou no período 8-22-24, foi um amplo
período de descolonização, tal como argumenta Carlos Guilherme Mota (Mota & Lopez,
2009).
Uma outra questão que me parece muito relevante para a comparação é a da vacatio
regis. A ausência de Rei, não física, mas jurídica. A ausência de legitimidade da cabeça
do estado.
Segundo Annino,
Na América hispânica, em 1808, depois de Napoleão ter forçado os Bourbons
para abdicar, os conselhos municipais dominados por criollos reagiram como
os da própria Espanha: a fim de legitimar as suas reivindicações de
autogoverno, invocaram o princípio do "regresso da soberania" em caso que
houvesse vacatio regis (Annino, 1995, p. 37).
A origem desse discurso é claramente a doutrina neotomista do século XVI da chamada
escola espanhola [ou Escola de Salamanca].
Mas Annino faz uma interessante nuance:
Durante a 'Era da Impotência', [como Burkholder e Chandler chamaram o
século e meio durante o qual os cargos coloniais podiam ser comprados], a
sociedade criolla consolidou-se. Ao mesmo tempo e, como resultado disso,
valores fortemente autonomistas tornaram-se parte da mentalidade
americana, ... segundo isto o estado era feito de numerosas corporações e
grupos independentes (Annino, 1995, p. 38).
Portanto, o pactismo tridentino original do século dezesseis foi transformando-se numa
espécie de contratualismo secularizado. Assim, no final do século XVIII, a noção de
(nação americana) tornou-se responsável pelos direitos naturais e históricos, adquiridos
durante o curso dos tempos. A ideia de que a nação americana era sujeita à monarquia
por um contrato livre garantido pelas suas próprias liberdades, tomou forma. Isso tudo
foi o que quebrou em 1808 com o “baile de la corona de Bayona”.
De alguma maneira, portanto, a Independência chegou como uma reação dos corpos
autónomos americanos à situação de vacatio regis criada por Napoleão.
Então, se na interpretação de Annino e de boa parte da historiografia sobre a América
hispânica, a vacatio regis provocou os movimentos de Independência, como explicar,
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nesses termos, a Independência do Brasil, quando o que se produziu no sistema luso-
brasileiro foi uma sistemática presentia regis?
Houve presentia regis provisória em 1808; houve uma tentativa de presentia regis
definitiva em 1815, com a criação do Reino Unido. Quando quase se produziu a vacatio
regis com a saída de João VI em abril de 1821, a decisão de deixar um príncipe regente
era, precisamente, a de evitar uma vacatio regis na parte americana da proto-nação
portuguesa.
Porém, a vacatio regis finalmente apareceu. O regresso de João VI queria evitar ou pelo
menos contra restar os efeitos do movimento vintista, que, claramente, foi uma reação
metropolitana à vacatio regis. Porque a vacatio regis, no sistema luso-brasileiro, teve
risco de se produzir na metrópole.
Um documento da Biblioteca Nacional do Rio mostra que foi apresentada uma proposta
para que Portugal se tornasse uma "província" do "Império do Brasil", cogitando mesmo
a possibilidade de "elevar o Brasil ao estatuto de Reino, com Portugal como colónia"
1
.
No Brasil, a justificativa última da independência foi uma vacatio regis provocada pelas
cortes de Lisboa, as “pestíferas cortes” como as chamou o príncipe regente. O Manifesto
às nações amigas de José Bonifácio de 6 de agosto, e a proclamação de 7 de setembro,
podem ser entendidas também como reações a uma vacatio regis.
O Manifesto proclama: “como se o Brasil e o Mundo inteiro não conhecessem que o
Senhor D. João VI, Meu Augusto Pai, está realmente Prisioneiro de Estado, debaixo de
completa coação, e sem vontade livre como a deveria ter um verdadeiro Monarca” (Silva,
1939, p. 62).
O que não fica claro é se a correção autonomista do neotomismo da América hispânica,
tenha sido parecida na América portuguesa. Esse é um debate que ainda fica em aberto,
sendo assim que uma parte da historiografia portuguesa defende que, ao contrário do
que aconteceu na América hispânica, o elemento criollo, ou maçombo, no caso do Brasil,
não desenvolveu essa mesma força o caráter autonomista. Mas, o que é o nativismo
pernambucano, os movimentos de 89 na Bahia, de 17 em Pernambuco, e outros, se não
uma expressão desse caráter autonomista? Acho que esse é um interessante campo de
estudo que ainda devemos explorar.
2) Influências
O segundo plano de análise é o das influências entre os dois processos de fim dos
impérios e da Independência, e aqui temos, evidentemente, que pensar na influência da
Constituição de Cádiz no processo de Independência e duplamente constituinte de
Portugal e do Brasil. É inegável a influência de Cádiz em todo o processo luso-brasileiro,
e como tantos outros temas, também tem sido deixada de lado, e às vezes,
negligenciada. Não podemos esquecer que a Constituição portuguesa de 1822, elaborada
pelas cortes constituintes, teve como fonte principal a de Cádiz, pois foram as Cortes
reunidas nessa cidade que inauguraram o chamamento de territórios situados fora da
Europa para comporem Assembleias Constituintes elemento presente na Constituição
portuguesa, que só pode ter tido origem na Constituição de Cádiz (Bezerra, 2013, p. 99).
1
Biblioteca Nacional do Brasil, Coleção Moreira da Fonseca, I-33, 34, 015, 001. “Observações sobre o
melhoramento de Portugal: considerando como província dependente do grande Império do Brasil, s. d.”
Em relação com este ponto é importante salientar que o tópico de não ser «colónia de colónia» estivera na
origem do movimento do Porto em 1820.
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A Constituição de Cádiz: “Artículo 1. La Nación española es la reunión de todos los
españoles de ambos hemisferios”.
A Constituição portuguesa de 1822: “a Nação Portuguesa é ‘a união de todos os
portugueses de ambos os hemisférios’
As resistências de D. João a uma “contaminação” do texto gaditano no sistema luso-
brasileiro são bem conhecidas. A historiadora Saboia Bezerra nos lembra que o então
Príncipe Regente, D. João, pensando nas consequências que pudessem ter em Portugal
as ideias liberais espanholas, resolveu encomendar ao Conselheiro Silvestre Pinheiro
Ferreira um estudo, que veio a chamar-se Memórias Sobre os Abusos Gerais e Modo de
os Reformar e Prevenir a Revolução Popular, redigidas por Ordem do Príncipe Regente
no Rio de Janeiro em 1814 e 1815, que foi esquecido após a volta em 1814 de Fernando
VII. (Bezerra, 2013, p. 102).
A maneira como depois se desenvolveram os processos paralelos do movimento de Riego
na Espanha e do Porto em Portugal, tem tudo a ver com a influência da Constituição de
Cádiz, que talvez pelas peculiaridades do nacionalismo português tem sido negligenciada,
aprimorando a influência dos textos franceses ou americanos, por cima do espanhol.
Só nos últimos anos assistimos a uma renovação do campo de estudos da influência de
Cádiz no processo de independência do Brasil com autores/as como Márcia Berbel,
Andrea Slemian, João Paulo Pimenta, Heloisa Saboia Bezerra ou um interessante texto
dos historiadores Barreto-Pereira.
Os liberais brasileiros estavam familiarizados com o texto gaditano e a sua presença pode
ser rastreada em rios pontos do processo conducente à independência. Naturalmente,
a fama do texto de Cádiz levou a que fosse amplamente difundido nas cidades brasileiras
e, claro, na capital colonial, que se tornaria a capital de todo o Império Português.
Segundo Maxwell, Paulo Martin, livreiro no Rio, tinha à venda em 1821 vários exemplares
da Constituição espanhola, a dos Estados Unidos, as Bases e o Projecto da Constituição
Política para a nação portuguesa, e até um panfleto com o título: Análise da Constituição
espanhola adequada às circunstâncias de Portugal (Maxwell, 1986).
Uma vez que a revolução liberal teve lugar em Portugal em 1820, a falta de um texto
constitucional próprio significou que em várias ocasiões vigorou a Constituição de Cádiz.
O movimento revolucionário português de agosto de 1820 estabeleceu uma Junta
Provisional de Governo e fez jurar a Constituição Espanhola provisoriamente, até que
fosse elaborada uma lei fundamental lusa (Barretto & Pereira, 2011, p. 205).
Isto é o que aconteceu em Salvador da Bahia a 10 de fevereiro de 1821, quando os
comandantes e oficiais da guarnição da cidade decidiram jurar a Constituição portuguesa
e adoptaram provisoriamente a espanhola (Filho, 2008, p. 103). Alguns dias mais tarde,
a 26 de fevereiro, foi abortado um movimento de oficiais militares no Rio que também
estavam tentando que a Constituição espanhola fosse adoptada provisoriamente.
A tendência das exigências constitucionalistas no Brasil cresceu consideravelmente nos
primeiros meses de 1821. O clima era de incerteza, à medida que os rumores sobre o
regresso de D. João VI a Portugal foram agravados pela escassa informação sobre o tipo
de poder "regencial" que permaneceria no Rio de Janeiro.
Finalmente, em março, foram publicados os decretos que anunciavam a partida definitiva
do monarca, a convocação de eleições e a regência do Príncipe Pedro. Os eleitores do Rio
reuniram-se na Praça do Comércio da cidade, numa tumultuada sessão a 21 de abril de
1821, convocada pelo juiz distrital. Esta reunião, que deveria ter sido uma mera
formalidade, transformou-se numa assembleia e quase numa convenção. Após discursos
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exortando o rei a não regressar a Portugal, a atmosfera tornou-se cada vez mais quente,
sob a pressão de uma multidão de pessoas que nada tinha a ver com as eleições, e
acabou por transformar o que era uma reunião de eleitores numa assembleia permanente
que não seria dissolvida até que o rei fizesse um juramento a um texto constitucional,
que, na ausência de um texto português definitivo, deveria ser a Constituição espanhola
de 1812. Uma comissão foi enviada para a residência real em São Cristóvão. O rei foi
acordado no meio da noite na Quinta da Boa Vista e reuniu o seu gabinete ministerial,
tendo o Príncipe D. Pedro também participando na reunião. D. João, entre espantado e
sonolento, com a aprovação dos ministros e do próprio príncipe, aceitou o pedido dos
comissários e assinou a Constituição espanhola (Oliveira Lima, 1996, 687). O decreto
de adopção de La Pepa, que foi imediatamente publicado, dizia como segue:
Tendo tomado em consideração o termo de juramento que os eleitores da
paróquia deste distrito, a pedido e declaração unânime do povo, prestaram à
constituição espanhola, e que trouxeram à minha presença real, (...) a fim de
que a dita presença, (...) para que a dita constituição espanhola esteja em
vigor interinamente a partir da data do presente decreto até à instalação da
constituição em que as atuais Cortes de Lisboa estão a trabalhar... (Monteiro,
1981 [1927]).
A Constituição de Cádiz, assim promulgada por D. João VI, foi a mais curta de todas as
constituições que teve o Brasil, uma vez que só esteve em vigor durante um dia. Em 22
de Abril, um regimento de caçadores cercou o edifício da Bolsa de Valores e entrou com
baioneta calada matando três e ferindo muitos. Assim terminou a chamada "assembleia
permanente" de eleitores no Rio, em palavras de Oliveira Lima: “O arremedo de
convenção vivera... l'espace d'une nuit” (Oliveira Lima, 1996, p. 687).
Tendo recuperado do susto e tendo medido o seu apoio entre o exército, o rei decidiu
revogar o decreto anterior e também confirmar a proclamação do seu filho D. Pedro como
Regente do Brasil, a partir do momento da sua partida para Portugal, que deveria ter
lugar no dia 26 de abril. Havia um sentimento de terror no Rio de Janeiro, e cartazes
apareceram na Praça do Comércio com as palavras: "Açougue dos Bragança" (Santos
Pérez, 2021, p. 228).
Esta resistência à aplicação da Constituição espanhola não foi tão grande em termos
práticos: no processo de eleição dos deputados para os tribunais constituintes em Lisboa,
foi adoptado o sistema eleitoral previsto na Constituição. De facto, em instruções
promulgadas a 23 de novembro de 1820, em plena efervescência da Revolução Liberal
do Porto, todo o método de eleição previsto na Constituição de 1812 foi adoptado
literalmente, adaptando todos os artigos à realidade portuguesa (Berbel, 2008, p. 231;
Berbel & Sobrinho, 2022, passim). Os artigos definiram que "a base da representação
nacional é a mesma nos dois hemisférios", caracterizando o sufrágio indireto a três
níveis: paróquias, condados e províncias (Berbel, 2008, p. 231). Este foi um dos mais
importantes efeitos da influência gaditana: a divisão em províncias, que o Brasil teria até
1891, foi uma derivação do sistema eleitoral espanhol.
A Constituição de Cádiz, portanto, no que diz respeito ao processo eleitoral, estava em
vigor nos territórios portugueses naqueles primeiros momentos do movimento
revolucionário de 1820, até à proclamação das Bases da Constituição Política da
Monarquia Portuguesa, aprovadas a 9 de março de 1821. Quando estas Bases foram
enviadas ao Brasil, para que as novas províncias pudessem ser constituídas para
substituir as capitanias, foram acompanhadas pelas instruções para o processo eleitoral
emanadas do texto de Cádiz, o que significava que o Brasil já estava imerso no processo
constituinte (Berbel, 2008, p. 231).
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A Constituição de Cádiz também influenciou a forma como as Juntas Governativas
estavam organizadas, com um certo grau de autonomia, mas estreitamente
supervisionadas pelo poder militar dependente do governo central, e também no carácter
centralista que foi concebido na Pepa. Com efeito, todos os poderes, executivo, legislativo
e judicial, deveriam estar baseados em Lisboa, o que significava a supressão da Casa da
Suplicação e de todos os outros órgãos de governo que tinham sido criados desde a
chegada do tribunal português ao Rio de Janeiro. Foi sobre esta questão que surgiram
os primeiros desacordos entre os deputados eleitos pelas Juntas Governativas no Brasil
e os representantes das províncias portuguesas peninsulares. Os primeiros defenderam
a autonomia e mesmo a Independência de cada uma das províncias brasileiras, que os
representantes tinham o dever de defender ao lado ou acima da nação portuguesa,
enquanto que os segundos eram a favor da recentralização. Embora o sistema colonial
tenha sido declarado extinto em vários decretos devido ao seu carácter absolutista, ao
mesmo tempo foi lançada uma política "recolonizante", no sentido de que o Brasil deveria
regressar ao seu antigo estatuto subordinado ao centro do poder em Lisboa, e não
permanecer numa situação paralela ao de Portugal continental com a proclamação do
Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves em 1815. As antigas disputas sobre o
grau de autonomia ou soberania que já tinham caracterizado os debates de Cádiz e da
Revolução Liberal de 1820, estavam agora a ser reproduzidas no sistema luso-brasileiro,
no calor das influências do texto de Cádiz e do acordo com as diferentes formas de
compreensão do liberalismo constitucional.
Mas, a partir da convocação das cortes do Brasil a 3 de junho, ficou claro que o argumento
centralista se aplicaria ao Brasil, e que os defensores da independência das províncias
nas cortes de Lisboa, como Antônio Carlos de Andrada, eram agora defensores de uma
completa unidade. Márcia Berbel e outros autores veem aqui uma possível influência de
Cádiz.
Isto nos dá outra interessante comparação: segundo Annino, na América Hispánica.
A crise do império produziu a independência e não o contrário. O que resultou
foi uma divisão dos países de acordo com o território das elites locais
governadas por caudillos, que garantiam a soberania dos organismos
intermediários, que era o que tinha sido inicialmente pedido em Cádiz (mas
Bolívar era completamente contra isto) (Annino, 1995, passim).
Podemos dizer que, onde fracassou Bolívar, ganharam os Andradas.
Uma vez proclamada a Independência em 1822 e após a coroação de Dom Pedro I como
Imperador do Brasil, o processo de elaboração de uma constituição para o novo Império
foi posto em marcha. Como mencionado acima, embora a maioria dos liberais que
apoiaram o imperador na sua ruptura com Portugal fossem a favor da monarquia
constitucional, houve uma divisão entre radicais e conservadores baseada principalmente
na maior ou menor restrição do poder do imperador. Os apoiantes do sistema restritivo
viram a Constituição de Cádiz como o modelo a seguir. Isto esteve presente aquando da
abertura da Assembleia Constitucional de 3 de Maio de 1823 e é por isso que D. Pedro
no seu discurso de abertura deu como exemplos as constituições da França de 1791,
Espanha de 1812, e Portugal de 1822, e chamou-as "totalmente teóricas e metafísicas e
portanto insustentáveis", ao mesmo tempo que fazia uma ameaça velada aos deputados
mais "democráticos": "Espero que a Constituição que fazeis mereça a minha verdadeira
aprovação", declarou.
Ao que JoBonifácio respondeu dizendo: "Até onde chega a minha voz, declaro, perante
a Assembleia e todo o povo, que teremos de organizar uma Constituição não
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democrática, mas monárquica; serei o primeiro a conceder ao Imperador o que lhe é
devido" (Silva, 1986, p. 428).
É possível que Cádiz tenha tido essa influência mais marcante, mas é claro que depois
do monarca ter encerrado a Assembleia em novembro de 1823, tentou que os aspectos
mais radicais de Cádiz ficassem fora do processo brasileiro. Existe um debate sobre até
onde chegou a influência da Pepa na constituição resultante, outorgada de 1824. Uma
visão mais ampla que os grandes princípios constitucionais liberais franceses foram
introduzidos na constituição brasileira do ano 24 através do constitucionalismo espanhol,
malgré as palavras de D. Pedro na abertura da assembleia. Assim, segundo Barreto e
Pereira, questões chave de Cádiz aparecem também no texto da primeira constituição do
Brasil, como são:
1) A soberania nacional e representatividade;
2) A separação de poderes;
3) A monarquia constitucional;
4) A religião oficial;
5) O direito natural racionalista. (Barretto & Pereira, 2011, pp. 201-223).
Já para Márcia Berbel, existem duas reminiscências importantes de “La Pepa” em 1824:
a forma como a cidadania foi concedida no texto (incluindo os libertos) e o espírito
profundamente centralista do primeiro texto constitucional brasileiro (Berbel, op. cit.).
3) A intervenção
O terceiro plano de análise é o da dupla intervenção espanhola nas questões luso-
brasileiras, que tem claramente uma dimensão: as pretensões de Carlota Joaquina e, de
outro lado, a invasão portuguesa da Cisplatina.
O denominado por Pimenta “projeto carlotista” apareceu em 1808, com o “Manifesto
dirigido aos fieis vassalos de Sua Majestade Católica El rey de las Españas e Indias por
su Alteza Real Doña Carlota Joaquina”. Nele pretendia ser reconhecida como sucessora
do monarca. Também solicitava o auxílio de D. João para expulsar os franceses da
península e para “manter na América a integridade e os princípios de legitimidade
dinástica ameaçados”. Ao que D. João contestava afirmativamente.
O projeto carlotista contou ao início com o apoio britânico, até que apareceu o decreto
de Libre Comercio dos portos do Rio da Plata. O projeto aparecia e desaparecia e foi
cogitado ainda com os sucessos de 1810-11 e 12-13. Estava definitivamente superado
em 1814 com a volta de Fernando VII.
O projeto criou outra situação para um projeto de “União Ibérica”, desta vez do lado
legitimista, quando, em setembro de 1810, Pedro de Sousa Holstein enviou uma memória
aos deputados espanhóis que preparavam a constituição na que afirmava que a rejeição
de Portugal e Espanha da expansão francesa aproximava as “Duas nações filhas da
mesma península e que o destino criou para ser irmãs, ... e que (…) unidas ofereceriam
à França uma massa ainda maior de resistência, e poderia surgir o mais resplandecente
Império do Mundo...“. Pimenta comentou que a medida renovaria a União Ibérica de
1580-1640 (Pimenta, 2017).
Também, quando se incluiu a Carlota Joaquina na linha sucessória em 1812, um
comentário no Correio Brasiliense de abril de 1812, também citado por Pimenta, dizia o
seguinte:
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Se esta união se realizar agora, com a sábia medida que adotaram as cortes
de Hespanha; parecenos, que nenhum acontecimento político poderia ser
mais útil e interessante aos Portuguezes e Hespanhoes; porque a proximidade
da linguagem, dos costumes, das leys, &. faz com que Portugal se deva
considerar uma parte integrante da Peninsula; e como neste supposto
acontecimento fica salvo o orgulho nacional; porque os Portuguezes podem
dizer que he um Príncipe seu quem vai governar Hespanha visto que a varonia
he Portugueza; cessam os motivos de zelo, e descontentamento que alias
cempre existiriam
2
.
Esse era a primeira proposta de “União Ibérica” do período. A segunda chegaria das mãos
dos liberais dos dois reinos logo da revolução do Porto de agosto de 1820. Como
destacou rcia Berbel, os integrantes do Sinédrio e os revolucionários do movimento
de Riego na Espanha tiveram intensas conversações desde agosto de 1820. Os liberais
portugueses esperavam o apoio dos espanhóis para a revolução do Porto e inclusive
chegaram a falar de uma “União Ibérica Constitucional”. É mesmo possível que o termo
“União Ibérica”, que depois, equivocadamente, se usou para definir o período 1580-1640,
tenha aparecido pela primeira vez neste momento.
O projeto mais sério foi o que foi pensado depois da morte de João VI.
Segundo Braz Brancato:
... entre os exilados liberais [espanhóis], a outorga da Carta lusitana [de
1826] produziu uma verdadeira euforia, ao mesmo tempo em que apresentou
o Monarca português como a mais viva esperança para verem restabelecido
na Espanha o regime pelo que lutavam, além de apresentar, já, como se pode
verificar, a proposta de uma união ibérica sob o cetro de D. Pedro (Brancato,
1995, p. 90).
Uma parte dos exilados espanhóis pensaram na possibilidade de que o Imperador do
Brasil aceitasse cingir a Coroa espanhola ou, amesmo, criar um Império Ibérico sob
sua direção, concretizando, assim, um antigo sonho de alguns peninsulares.
Dois meses depois do conhecimento da notícia de que D. Pedro IV havia concedido,
voluntariamente, ao seu reino uma Constituição, alguns emigrados lhe enviaram desde
Gibraltar um documento no qual propunham que aceitasse assumir a Coroa espanhola.
Fundou-se em Londres também um Clube Hispano-lusitano, com liberais dos dois países,
com o intuito de conseguir as condições necessárias para levar a cabo a revolução que
restaurasse o constitucionalismo nos Reinos peninsulares, quer através de uma união de
ambos ou através da formação de uma Monarquia dual com D. Pedro à cabeça.
Parece, portanto, que os exilados espanhóis buscavam manter a ideia da revolução liberal
com o apoio de Pedro I, depois da morte de Joao VI. Depois da volta de D. Pedro à Europa
abriu-se uma nova perspectiva para a luta dos liberais peninsulares, e de novo ressurgiu
a possibilidade de criar uma "União Ibérica”.
Conclusão
2
Correio Brasiliense, VIII, nº 47, abril de 1812, p. 555.
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Portugal, Espanha e Brasil, nas suas versões anteriores de Reinos, Estados e Vice-reino,
tem uma história relacional que é interessante analisar. Passa pela união das coroas e
pelo processo da Independência.
O papel da Espanha e dos vizinhos hispano-americanos do Brasil no processo de
Independência deste país foi muito mais importante do que a historiografia tradicional
nos apresentou. Passa por comparações interessantes, influências mútuas e intervenções
fundamentais. Esperamos que mais investigadores possam somar-se no futuro para
continuar conhecendo melhor esta parte da nossa história comum.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
21
A GRANDE COLÔMBIA: POLÍTICA EXTERNA E DESINTEGRAÇÃO REGIONAL
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
ngomes@autonoma.pt
Doutora em Relações Internacionais (FCSH - Universidade Nova de Lisboa). Mestre em Relações
Internacionais (ISCSP - Universidade de Lisboa). Licenciada em Estudos Internacionais
(FACES - Universidade Central da Venezuela). É Professora Associada da Universidade
Autónoma de Lisboa (Portugal), onde lecciona desde 1995. Foi Coordenadora científica da
Licenciatura em Relações Internacionais na UAL (20202023). É Coordenadora do Curso
Avançado de Estudos sobre a América Latina (UAL IDN OEI), Coordenadora da
Cátedra de Estudos Ibero-Americanos (OEI UAL), e Investigadora do CEI (ISCTE-IUL) e
do OBSERVARE (UAL). É Diretora da Delegação da Fundação Universitária Ibero-
Americana (FUNIBER) em Portugal, desde 2022. Exerceu funções de Consultoria no
Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian (entre 2001 e 2005).
Ciência ID 4815-8FA4-D2C2.
Resumo
Neste artigo propomo-nos analisar a política externa da Grande Colômbia à luz da perspectiva
realista. Na medida em que procuramos relacionar a política grandecolombiana com as causas
da sua desintegração, colocaremos o foco nos instrumentos típicos utlizados, a Diplomacia e
a Guerra. A descrição do potencial de poder da nova República e do impacto das acções e
decisões adoptadas para dentro e para fora deste espaço regional servirá para validar a
hipótese de que a política externa da Grande Colômbia desempenhou um papel catalisador
da sua própria desintegração.
Palavras-chave
Grande Colômbia, Diplomacia, Guerra, Integração, Desintegração.
Abstract
In this article we propose to analyze the foreign policy of Gran Colombia from a realist
perspective. Insofar as we seek to relate Grand Colombian policy to the causes of its
disintegration, we will focus on the typical instruments used, Diplomacy and War. The
description of the power potential of the new Republic and the impact of the actions and
decisions adopted within and outside this regional space will serve to validate the hypothesis
that Gran Colombia's foreign policy played a role in catalyzing its own disintegration.
Keywords
Gran Colombia, Diplomacy, War, Integration, Disintegration.
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A Grande Colômbia: Política Externa e Desintegração Regional
Nancy Elena Ferreira Gomes
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RESUMEN
En este artículo nos proponemos analizar la política exterior de la Gran Colombia desde una
perspectiva realista. Buscamos relacionar la política grancolombiana con las causas de su
desintegración centrándonos en los instrumentos típicos utilizados, la Diplomacia y la Guerra.
La descripción del potencial de poder de la nueva República y el impacto de las acciones y
decisiones adoptadas dentro y fuera de este espacio regional servirán para validar la hipótesis
de que la política exterior de la Gran Colombia desempeñó un papel catalizador de su propia
desintegración.
PALABRAS CLAVE
Gran Colombia, Diplomacia, Guerra, Integración, Desintegración.
Como citar este artigo
Gomes, Nancy Elena Ferreira (2024). A Grande Colômbia: Política Externa e Desintegração
Regional. Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 - Portugal e Brasil:
história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.2
Artigo recebido em 12 de Dezembro de 2023 e aceite para publicação em 28 de Janeiro
de 2024
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A GRANDE COLÔMBIA: POLÍTICA EXTERNA
E DESINTEGRAÇÃO REGIONAL
NANCY ELENA FERREIRA GOMES
Introdução
No seu livro com o título The Children of Light and The Children of Darkness, Reinhold
Niebuhr começa com a citação de um texto da Bíblia: “The children of this world are in
their generation wiser than the children of light”
1
(Lucas, 16:8), para precisar mais
adiante o seguinte,
(…) we may well designate the moral cynics, who know no law beyond their
will and interest, with a scriptural designation of children of this world” or
“children of darkness.” Those who believe that self-interest should be brought
under the discipline of a higher law could then be termed “the children of
light”
2
(Niebuhr, 1944, p. 9).
Niebuhr conclui, entre outras coisas, que:
The preservation of a democratic civilization requires the wisdom of the
serpent and the harmlessness of the dove. The children of light must be
armed with the wisdom of the children of darkness but remain free from their
malice. They must know the power of self-interest in human society without
giving it moral justification. They must have this wisdom in order that they
may beguile, deflect, harness and restrain self-interest, individual and
collective, for the sake of the community
3
(Niebuhr, 1944, pp. 40- 41).
Para Niebuhr, diz-nos Medina (1983, p. 75), os filhos da luz são os representantes do
idealismo que acabam muitas vezes servindo a causa da escuridão por não levarem em
1
Em português: “Os filhos deste mundo são, na sua geração, mais sábios do que os filhos da luz” (tradução
da autora).
2
Em português: “(…) podemos muito bem designar os cínicos morais, que não conhecem nenhuma lei além
da sua vontade e interesse, com a designação bíblica de "filhos deste mundo" ou "filhos das trevas". Aqueles
que acreditam que o interesse próprio deve ser colocado sob a disciplina de uma lei superior poderiam
então ser chamados de "os filhos da luz” (tradução da autora).
3
Em português: “A preservação de uma civilização democrática requer a sabedoria da serpente e o carácter
inofensivo da pomba. Os filhos da luz devem estar armados com a sabedoria dos filhos das trevas, mas
permanecer livres da sua malícia. Devem conhecer o poder do interesse próprio na sociedade humana sem
ter de o justificar moralmente. Eles devem possuir essa sabedoria para que possam enganar, desviar,
controlar e restringir o interesse próprio, individual e coletivo, para o bem da comunidade” (tradução da
autora).
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conta a complexidade da natureza humana, “(…) en la que el afán de poder y gloria
puede deshacer los más bellos sueños”
4
.
É à luz desta perspectiva realista das Relações Internacionais que iremos fazer a análise
da política da Grande Colômbia (1819-1830), detendo-nos nos objectivos, acções, e
decisões do governo grandecolombiano, e como para isso, foram instrumentalizadas a
diplomacia e a guerra.
5
O objectivo passa por relacionar a política externa da Grande
Colômbia com as causas da sua desintegração.
A exposição narrativa da realidade que nos propomos estudar será feita no contexto das
independências. A variável temporal converte-se aqui, portanto, num elemento decisivo
para a análise pelo que a descrição histórica terá em conta a cronologia dos
acontecimentos. O método analítico tornar-seimprescindível para poder descobrir as
principais relações de causalidade que existem entre os sucessos ou variáveis da
realidade em estudo. A pesquisa bibliográfica tendeà sistematização dos conteúdos
das várias obras disponíveis, a maioria clássicos, mas inclui também autores e obras
mais recentes.
I. A Grande Colômbia, potência emergente
De la Reza refere que, “A poco tiempo de su creación, Colombia es el país
hispanoamericano de mayor prestigio (…) En mayo de 1823, John Quincy Adams, futuro
presidente de la Unión americana y entonces secretario de Estado, la cree “llamada a ser
en adelante una de las naciones más poderosas de la tierra” (2015, pp. 74-75)
6
.
Com efeito, a Grande Colômbia apresentava-se com um potencial de poder considerável,
atendendo à sua localização geográfica privilegiada, com fronteiras no Mar das Caraíbas,
Atlântico e Pacífico, atravessada pela Cordilheira dos Andes, perto do coração da região
na Amazónia, e com duas enormes bacias hidrográficas no seu interior: Orinoco e
Magdalena; com uma extensão territorial de umas 679.200 léguas quadradas, e uma
população de aproximadamente 2.677.000 habitantes (1.327.000 - Nova Granada,
800.000 - Venezuela, e 550.000 - Equador) (Ocampo López, 1984, p. 227). Liehr (1989,
p. 465), citando a Soetbeer refere ainda que, na região “entre 1781 y 1820, Colombia
contaba cada año con la mayor producción nacional de oro”
7
.
Em relação ao poder militar, Toro Jiménez refere que para Novembro de 1820, o exército
colombiano era constituído por um número aproximado de 36.000 homens (2008, pp.
329-330), sendo que a maioria dos oficiais militares eram de origem venezuelana.
Tratava-se, efectivamente, de um número considerável quando comparado com o
exército espanhol ou dos Estados Unidos da América (EUA) (Idem, p. 330). Para o mesmo
autor, a Marinha colombiana era uma força modesta mas eficaz. A presença dos corsários
4
Em português: “em que o desejo de poder e glória pode desfazer os mais belos sonhos” (tradução do autor).
5
Para José Calvet de Magalhães (1995, p. 25), os instrumentos pacífico e violento mais típicos da política
externa são a diplomacia e a guerra, respetivamente.
6
Em português: “Pouco tempo depois da sua criação, a Colômbia é o país hispano-americano de maior
prestígio (…) Em maio de 1823, John Quincy Adams, futuro presidente da União Americana e então
Secretário de Estado acredita que (a Colômbia) é chamada a ser daí em adiante uma das nações mais
poderosas da terra” (tradução da autora).
7
Em português: “entre 1781 e 1820, a Colômbia contava com a maior produção nacional de ouro” (tradução
da autora).
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colombianos nas Caraíbas inspirava respeito e era levada em conta no momento das
negociações diplomáticas. Toro Jiménez refere ainda que, a partir de 1822, a Colômbia
iniciou um ambicioso plano de organização da sua Marinha de Guerra, incluindo a
aquisição de novos navios nos estaleiros dos EUA. Foram criadas Academias Navais em
Cartagena e Guaiaquil, e uma Infantaria da Marinha. No auge da Colômbia, a Marinha
chegou a dispor de dois navios, oito fragatas e 14 corvetas (Ibidem, p. 331).
À luz da “nova” terminologia introduzida por Nye, o potencial de poder da Grande
Colômbia podia também ser considerado do tipo “soft”.
8
De facto, Simón Bolívar à frente
da nova República capitalizou prestígio, resultado do seu empenho e dedicação à luta
pela libertação dos territórios americanos, mas também pela “dedicação das autoridades
grandecolombianas à educação das populações para moralizá-las e civilizá-las” (Uribe de
Hincapié, 2011: p. 23), procurando ao mesmo tempo “uma legitimidade cosmopolita,
universal e abstracta” (Idem, 2011, p. 23). Jaramillo-Mutis (2022, pp. 83-84) refere
ainda, citando o trabalho de Cavalier (1997), que a Colômbia constituía um poder maior
que os Estados Unidos naquela época, poder não só material mas também moral.
Foi no Congresso de Angostura, através da Lei Fundamental promulgada em 17
Dezembro de 1819, que vemos emergir a República da Grande Colômbia como um novo
actor, com a união da Venezuela e a Nova Granada.
9
Mais tarde foram integrados os
territórios do Panamá e Quito. Silva Otero, citando Blanco-Fombona (1967, pp. 9-10),
lembra-nos que naquela oportunidade, Simón Bolívar apresentou o seu projecto para a
criação de um novo Estado:
La reunión de Nueva Granada y Venezuela ha sido el voto unánime de los
pueblos y gobiernos de estas Repúblicas. La suerte de la guerra ha verificado
este enlace tan anhelado por todos los colombianos; de hecho estamos
incorporados. Estos pueblos hermanos ya os han confiado sus intereses, sus
derechos, sus destinos
10
.
Para o mesmo autor, Colômbia significava no pensamento de Bolívar, a criação de uma
nação forte capaz de assegurar, através do esforço conjunto dos seus homens, a
emancipação americana e com poder para ocupar um lugar proeminente na comunidade
internacional (Silva Otero, 1967, p. 10). Para além da independência e a união era
evidente que Bolívar preocupava-se com o reconhecimento por parte dos outros Estados.
Isto ficou patente por onde passou, perante a Corte de Londres, em Caracas, Cartagena
e Jamaica, nos seus discursos e nas muitas cartas que escreveu.
11
8
Ver Nye, J. S. (2004). Soft power: The means to success in world politics. PublicAffairs.
9
Antecede à criação desta nova República, o tratado subscrito em Santa Fé de Bogotá, em 1811, que levou
à criação da Federação das Províncias Unidas da Nova Granada. Convém lembrar também que na época
colonial existia o Vice-Reino de Nova Granada, abrangendo os países que hoje conhecemos por Colômbia,
Panamá e o Equador.
10
Em português: “A reunião da Nova Granada e a Venezuela foi o voto unânime dos povos e dos governos
destas Repúblicas. O destino da guerra mostrou este nculo tão desejado por todos os colombianos;
estamos de facto incorporados. Estes povos fraternos confiaram-vos os seus interesses, os seus direitos e
os seus destinos” (tradução da autora).
11
O investigador Carlos Malamud lembra-nos na sua obra El sueño de Bolívar y la manipulación bolivariana.
Falsificación de la historia e integración regional en América Latina que Simón Bolívar o era um intelectual,
era um militar, um homem de acão do seu tempo, e que o seu pensamento ficou plasmado nas mais de
3.500 cartas e discursos que ficaram registados e formam parte do seu legado. Para Silva Otero, Bolívar
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Cuando el triunfo de las armas de Venezuela complete la obra de su
independencia, o que circunstancias más favorables nos permitan
comunicaciones s frecuentes, y relaciones s estrechas, nosotros nos
apresuraremos con el más vivo interés, a entablar, por nuestra parte, el pacto
americano que, formando de todas nuestras Repúblicas un cuerpo político,
presente la América al mundo (…)
12
(Carta ao Supremo director das Províncias
Unidas do Rio de la Plata, Juan Martín Pueyrredón, 12 de Junho de 1818).
Eleito Presidente da Nova República da Colômbia, em 7 de Setembro de 1821, Simón
Bolívar designou Pedro Gual como o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros. Pouco tempo
depois, Bolívar passou a ocupar-se com a preparação da Campanha Militar do Sul, que
acabaria com a dominação espanhola na América. A estratégia de Bolívar incluía a
diplomacia e a guerra.
II. A Política da Grande Colômbia
A Política da Grande Colômbia caracterizou-se desde o seu início pelo seu dinamismo e
ímpeto em relação às potências europeias, em relação aos EUA e aos outros novos
Estados no continente americano. Em 1823, a república colombiana contava com
delegações diplomáticas em todas as grandes cidades da região. A Diplomacia foi
instrumentalizada pela política para alcançar os seus objectivos, e também a Guerra.
II.1. A Diplomacia Bolivariana
Para Silva Otero (1967, p. 65), a diplomacia grandecolombiana (ou bolivariana) para
além de ser democrática e pacifista
13
, era do tipo hispano-americanista e normativa, ou
seja, promotora da lei antes mesmo que da política
14
.
Relativamente ao hispano-americanismo, o mesmo autor (Silva Otero, 1967, p. 9) refere
que foi na Circular de 27 de Abril de 1810 dirigida aos Ajuntamentos coloniais espanhóis
no continente americano, que a Junta de Caracas expressou esse ideário internacional,
baseado numa possível confraternidade hispano-americana. Simón Bolívar, diplomático
dessa Junta, expôs e defendeu a criação de uma União Hispano-Americana perante a
não era um filósofo nem um jurista, era um político, e a sua ação e pensamento estavam entrelaçados.
(1967, p. 66).
12
Em português: “Quando o triunfo das armas da Venezuela completar a obra da sua independência, ou
quando circunstâncias mais favoráveis nos permitirem comunicações mais frequentes, e relações mais
estreitas, apressar-nos-emos com o mais vivo interesse, a entrar, pela nossa parte, no pacto americano
que, formando de todas as nossas Repúblicas um corpo político, apresenta a América ao mundo”
(tradução da autora).
13
Até 1870, partindo da revolução emancipadora, podemos falar de um período que coincide com o
romantismo na Europa (Salazar Bondy, 1983, p. 10). Para autores, como Cândido (1999, pp. 106-107) “é
preciso não esquecer que com o Romantismo coincidem os movimentos de independência da América
Latina, cronologicamente ligados à grande aventura iniciada na segunda metade do século XVIII, que
redefiniu a posição do homem na natureza, através da técnica, questionou as relações em sociedade, abriu
a era das utopias sociais modernas, quebrou a noção de modelos intangíveis e eternos. O Romantismo
forneceu uma espécie de enquadramento ideológico ao sentimento nacionalista, desenvolvido com os
movimentos latino-americanos de independência (…)”.
14
Certamente para se distinguirem do diretório da Santa Aliança.
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Corte de Londres, em Caracas, Cartagena e Jamaica, insistindo até conseguir a
materialização destas aspirações, em 1819.
a) A partir de 1819, assistimos às negociações do governo da Grande Colômbia com as
potências europeias, Espanha, Grã Bretanha, França, e também com os EUA, tendo em
vista a obtenção do reconhecimento:
Com a Espanha, encontramos o Tratado de Armistício, de 1820, assinado durante o
período liberal de Riego (1820-1823). Bolívar quis aproveitar o ambiente favorável que
gerava este interregno político, mas com o regresso de Fernando VII, as relações entre
a Grande Colômbia e o reino espanhol pioraram.
Para Pita Pico (2019, p. 193), do lado da Grande Colômbia qualquer negociação de paz
com a Espanha seria condicionada ao reconhecimento da soberania e independência do
novo Estado. O governo republicano fez várias propostas “generosas” de projecto de paz,
mas a polarização que reinava entre o partido liberal e os sectores conservadores
monárquicos espanhóis impossibilitou o consenso necessário para avançar nas
negociações.
Com os ingleses, para além de objectivar a obtenção do reconhecimento, a estratégia
grandecolombiana passou por tirar proveito do histórico do apoio inglês à causa patriota,
e como fonte de informação sobre o que se passava na Europa, em particular, sobre as
negociações entre a Espanha e os EUA para a compra da Flórida e do Louisiana.
Em 1825 foi assinado o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, incluindo a Cláusula
da Nação Mais Favorecida, e de forma simultânea, os grandecolombianos obtiveram o
reconhecimento por parte dos ingleses.
O reconhecimento da Colômbia por parte dos francesesocorreu em 1830. As causas
complexas da instabilidade política que vivia a França naquele momento, e as discórdias
que envolveram as negociações diplomáticas entre representantes franceses e
colombianos para instituir uma monarquia constitucional na Grande Colômbia ideia
rejeitada reiteradamente por Bolívar atrasaram a decisão. Não podemos esquecer,
contudo, a enorme influência do espírito revolucionário francês e dos ideais de liberdade
na causa dos patriotas. Como afirmou Elias Ortiz (1971, p. 11), Seguramente de
Filadelfia vino a los pueblos de Indias de dominación hispana y portuguesa el ejemplo
patente de que no era imposible emanciparse para constituirse en estado libre y
soberano, pero de Francia salió la chispa de inspiración ideológica”
15
.
Em relação aos EUA, em 1815, a política do grande vizinho do Norte era de neutralidade
ou de “não beligerância”. Para Whitaker (1964, pp. 148-149), a nota fundamental da
politica norte-americana era mais a de uma “espera vigilante”.
Antes da assinatura do Tratado Transcontinental entre os EUA e a Espanha, em 1819, e
a sua ratificação pelas partes dois anos depois com a consequente anexação da Flórida
por parte dos EUA ‒, seria um risco reconhecer as independências hispano-americanas,
15
Em português: “Foi certamente da Filadélfia que os povos das Índias sob domínio espanhol e português
receberam o exemplo claro de que não era impossível emanciparem-se para se tornarem um Estado livre
e soberano, mas foi da França que veio a centelha de inspiração ideológica” (tradução da autora).
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contudo, Flagg Bemis (1943, pp. 41-57) lembra-nos que a neutralidade foi violada várias
vezes abertamente a favor dos revolucionários
16
.
Em Junho de 1822, os EUA reconheceram oficialmente a Colômbia, reconhecimento que
será assumido mais tarde em todas as suas consequências pelo Presidente James
Monroe, quando em 2 de Dezembro de 1823, dirigindo-se ao Congresso, disse que,
(…) the American continents, by the free and independent condition which
they have assumed and maintain, are henceforth not to be considered as
subjects for future colonization by any European powers (…) we should
consider any attempt on their part to extend their system to any portion of
this hemisphere as dangerous to our peace and safety
17
(Monroe Doctrine,
1823).
A Doutrina de Monroe (a partir de 1823) vai dar àquilo que, na literatura latino-
americana do pensamento político (Indalecio Liévano Aguirre, entre outros), é conhecido
também por monroísmo, passando a ser associado à estratégia americana com
pretensões hegemónicas, em oposição ao bolivarianismo, associado ao projecto hispano-
americano de unidade estratégica e igualdade.
Em 1824, a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, incluindo a
Cláusula da Nação Mais Favorecida, entre a Grande Colômbia e os EUA, comprometeu as
partes a concederem-se reciprocamente as vantagens negociadas com outros Estados.
Colômbia terá, pois, de seguir esta regra de conduta no âmbito das suas relações
comerciais, criando-lhe certos constrangimentos na hora de assinar novos acordos.
b) A partir de 1821, foram enviadas missões diplomáticas para o Peru, Chile, Buenos
Aires, e o México, para subscreverem um Tratado de Liga ou Confederação ou Convenção
Federativa, e tratados comerciais, na base de uma estrita reciprocidade. As instruções
dadas aos plenipotenciários passavam pela proposta de adopção dos princípios do utis
possidetis iuris, integridade territorial e a solução pacífica de controvérsias através da
arbitragem obrigatória ou a conciliação. As Instruções incluíam também uma
advertência: nenhuma das partes poderia entrar em negociações com a Espanha sem
ser na base do reconhecimento da independência e integridade dos respectivos
territórios. (Silva Otero, 1967, p. 20); e a promoção de uma assembleia geral de
plenipotenciários de todos os estados hispano-americanos.
Com efeito, as orientações dadas por Bolívar aos seus plenipotenciários eram as de que
concluíssem um pacto de federação para a defesa da causa comum. Os representantes
diplomáticos levariam consigo, inclusive, um texto de projecto de um tratado. O governo
que melhor acolheu a proposta colombiana foi o Peru.
16
“Estados Unidos, dentro de los límites impuestos por la neutralidad, continuó acogiendo amistosamente en
sus puertos a los barcos de los nuevos beligerantes. Los agentes de los gobiernos revolucionarios, al igual
que los de la monarquía española, podían comprar contrabando de todas clases y exportarlo en sus propios
barcos o en embarcaciones de ciudadanos norteamericanos (…) Podían hasta comprar o construir barcos
en Estados Unidos y exportarlos (…)” (Flagg Bemis, 1943, pp. 41-57).
17
Em português: “(…) os continentes americanos, pela condição livre e independente que assumiram e
mantêm, não devem, doravante, ser considerados como objeto de futura colonização por quaisquer
potências europeias (...) devemos considerar qualquer tentativa da sua parte de estender o seu sistema a
qualquer parte deste hemisfério como perigosa para a nossa paz e segurança” (tradução do autor).
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O Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua entre a Colômbia e o Peru foi
subscrito em 6 de Julho de 1822, ratificado pelo governo colombiano em 12 de Julho de
1823, e pelo governo peruano, em 17 de Novembro de 1823. Apesar do acordo
alcançado, ficariam pendentes assuntos de demarcação fronteiriça que mais tarde, entre
1828 e 1829, irão provocar uma guerra entre os dois países.
Com o Chile, inserido num contexto político nacional muito instável, o processo foi muito
mais difícil. O tratado de União, Liga e Confederação negociado entre ambas as partes ‒
assinado com amplas modificações tendo em conta a proposta inicial colombiana , nem
sequer chegou a ser ratificado pelas autoridades chilenas.
Com Buenos Aires, os colombianos conseguiram assinar um tratado de Amizade e
Aliança que, pelo conteúdo das suas disposições estava longe da proposta colombiana
de tratado de União, Liga e Confederação. Para Silva Otero (1967: p. 51) a missão
colombiana em Buenos Aires fracassou devido à desconfiança que Rivadavia
18
tinha em
relação aos planos de Confederação de Bolívar. As objecções de Rivadavia incluíam o
facto de não terem convidado os EUA para integrar a Liga americana (Silva Otero, 1967,
p. 46).
Com os mexicanos, conseguiu-se no meio de câmbios políticos profundos (proclamação
de Agustín de Itúrbide como emperador do México, em Maio de 1822, para pouco depois
ser derrubado por uma revolução) a assinatura e ratificação em Setembro de 1825, de
um tratado de Amizade, União, Liga e Confederação proposto por Colômbia, com algumas
excepções.
Em relação à América Portuguesa, o reconhecimento da Grande Colômbia, em 8 de
Junho de 1822, por parte do Reino de Portugal, animou as autoridades
grandecolombianas a tentar negociar a definição das fronteiras a sul da região. A morte
prematura do plenipotenciário da Colômbia em Portugal e os acontecimentos no Brasil
vão adiar esta tarefa. O Grito de Ipiranga, em Setembro de 1822, alimentou os receios
de Bolívar face um eventual apoio da Santa Aliança ao Novo Emperador do Brasil contra
as rebeliões americanas
19
.
c) No Congresso Internacional do Panamá, de Junho de 1826, Simón Bolívar propõe a
criação de uma Liga ou Confederação Hispano-Americana. Argentina não esteve presente
alegando problemas internos. Chile não assistiu por falta da autorização do Congresso.
As autoridades bolivianas, indecisas, também falharam o encontro. O Brasil absteve-se
pela sua neutralidade frente a Espanha, estando também comprometido com a Santa
Aliança. Como observadores assistiram a Holanda e a Grã Bretanha. O representante
dos EUA apresentou-se no fim do evento
20
.
Para Bolívar, com a realização do Congresso e a constituição de um corpo político
conseguir-se-ia obter garantias de poder frente à Europa, redundando no
reconhecimento da independência de todas as nações que desse mesmo corpo fossem
parte. Conseguir-se-ia também obter um equilíbrio politico entre os membros da União
18
Bernardino Rivadavia foi o primeiro chefe de Estado das Províncias Unidas do Rio da Prata.
19
Há o registo de uma tentativa por parte do Brasil de invadir a Província de Chiquitos (no Alto Peru) desde
Matto Grosso, a pedido do governador espanhol de Chiquitos, em 28 de março de 1825, mas o emperador
brasileiro desautorizou a invasão em dezembro do mesmo ano (Toro Jiménez, 2008, pp. 356-357).
20
Apesar dos receios que Bolívar tinha sobre os interesses e intenções dos EUA na região, não deixou de
propor a amizade entre os dois Estados.
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ou Confederação; e a “defesa colectiva” frente a eventuais agressões por parte de um
inimigo externo ou interno.
Entre os princípios que Simón Bolívar propõe no Congresso, podemos referir, o utis
possidetis iuris (de 1810) e a integridade territorial; a solução pacífica de controvérsias
através da arbitragem e a conciliação. É nisto, podemos dizer, em que se traduz a
orientação normativa da diplomacia grandecolombiana:
O utis possidetis iuris de 1810 (ou para alguns, o utis possidetis bolivariano) seguindo
a delimitação ou demarcação de cada capitania geral ou vice-reinado
21
.
Las nuevas nacionalidades americanas se erigieron sobre dos principios
fundamentales: la libertad de cada sección administrativa colonial para
constituirse por misma; y el señalamiento de los límites que debían
separarlos por medio de la legislación dictada durante el régimen español, o
sea, utilizando el utis possidetis bolivariano
22
(Silva Otero, 1967, p. 15).
Isto significava que, não podendo alegar considerações de carácter político, as partes
poderiam justificar as suas pretensões com leis expedidas pelo Reino de Castela. Se a
adopção deste princípio foi útil para que os governos pudessem orientar-se no início de
vida dos Estados independentes, não foi suficiente para evitar os conflitos que daí
resultariam quando estamos a falar de demarcações feitas com a inexatidão dos mapas,
a existência de terras por ocupar e de recursos ainda inexplorados.
A garantia da integridade territorial ficava associada ao princípio do utis possidetis.
Isto ficou plasmado em vários documentos assinados por Bolívar, a partir de 1823, e no
Congresso de Panamá, aparece no tratado subscrito em 15 Junho 1826 (Art XXI e XXII).
Arbitragem obrigatória e conciliação. Bolívar difunde e propõe a arbitragem através
dos tratados a serem celebrados ad hoc em toda a Hispano-América. A arbitragem
proposta nos tratados multilaterais seria geral, obrigatória e permanente para todas as
partes. A opção do recurso à conciliação aparece de igual modo, nas propostas de
tratados que levaram consigo os plenipotenciários da nova República.
No Congresso, Bolívar propõe também a abolição progressiva da escravatura e do tráfico
de escravos em todo o território libertado. A ideia era que todos os Estados reunidos no
Panamá adoptassem estes princípios políticos.
Bolívar parecia prever uma série de conflitos que iriam surgir depois de terminadas as
guerras pela independência. O seu projecto de paz, como vimos, estava baseado no
Direito, mas contrariamente às suas ambições, nenhum resultado concreto nesse sentido
sairia do encontro.
Em carta dirigida ao General José António ez, em 8 de Agosto de 1826, Bolívar escreve,
Cada provincia tira para la autoridad y el poder; cada una debería ser el
centro de la nación. No hablaremos de los demócratas y de los fanáticos;
21
O utis possidetis bolivariano significava possuir em conformidade com a demarcação correspondente feita
pelo antigo soberano, apoiando-se nos títulos vigentes ao tempo da sua emancipação.
22
Em português: “As novas nacionalidades americanas assentavam em dois princípios fundamentais, a
liberdade de cada secção administrativa colonial se constituir por si própria; e a marcação das fronteiras
que as separavam através da legislação ditada durante o regime espanhol, ou seja, utilizando o utis
possidetis bolivariano” (tradução da autora).
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tampoco diremos nada de los colores; - porque al entrar en el hondo abismo
de estas cuestiones, el genio de la razón iría sepultarse en él, como es la
mansión de la muerte. Qué no deberemos temer de un choque tan violento y
desordenado de pasiones, de derechos, de necesidades y de principios?
23
(Carta dirigida ao General José António Páez. Lima, 4 de Agosto de 1826).
II.2. Guerra
Para além da diplomacia, a guerra e a ameaça do uso da violência foram
instrumentalizadas pela política da Grande Colômbia para alcançar os seus objectivos.
Por outra parte, a inacção, não ingerência ou não intervenção em contextos de conflito
que demandavam o desempenho de um papel mais interventivo, por parte dos
grandeolombianos, mostraram as contradições ou falta de coerência da sua política
externa.
a) Acções militares: Empenhadas numa campanha militar libertadora, as tropas
republicanas ocuparam a zona central, faixa norte-oriental e a província de Antioquia. Os
esforços concentraram-se em libertar o norte da costa Caribe e a sul, as províncias de
Pasto e Popayán (Pita Pico, 2019, p. 166). Das vitórias no teatro de guerra a sul, resulta
a incorporação de Guayaquil à Grande Colômbia, em 13 de Julho de 1822. Mais tarde,
em 1825, a Bolívia tornou-se um Estado independente. A Colômbia parecia estar no auge,
não fossem as tensões que lhe colocavam as questões de fronteira ainda por resolver.
Como resultado da inimizade entre os líderes do governo peruano e colombiano,
precisamente por causa do desentendimento sobre a delimitação fronteiriça, o Congresso
peruano decidiu, em 17 de Maio de 1828, autorizar uma invasão às províncias a sul da
Colômbia. A Guerra entre o Peru e a Colômbia teve início naquele momento e vai
estender-se até Fevereiro de 1829 (Toro Jiménez, 2008, pp. 384-385). Com o fim das
hostilidades e a vitória colombiana, o tratado de paz (Convénio de Girón) estipulou que
os limites seriam definidos de acordo com o utis possidetis. Mais tarde, em 1830, o
Protocolo Pedemonte-Mosquera alterou o que ali foi acordado, e a divergência fronteiriça
manter-se-á pendente (até aos nossos dias)
24
.
b) Ameaça do uso da força: Bolívar proclamou uma e outra vez a sua aspiração de
conseguir a liberdade para toda a Hispano-América e Caraíbas. Em Cuba, até 1850, as
elites dependentes da Espanha, pareciam satisfeitas pelo clima de prosperidade da
indústria açucareira, mas isso não impediu que em 1823, surgisse um movimento pró-
independentista (com o nome Los Soles y Rayos de Bolívar) que rapidamente foi
neutralizado pelas autoridades espanholas. Alguns cubanos deste movimento fugiram
para o sul do continente à procura do auxílio do exército republicano.
Entre 1824 e 1825, foram evidentes as preocupações e vacilações de Simón Bolívar sobre
um plano colombo-mexicano para libertar Cuba e Porto Rico que implicasse uma possível
invasão às Antilhas. Para fins de 1825, houve de facto uma concentração das forças
23
Em português: “Cada província puxa para si a autoridade e o poder; cada uma deve ser o centro da nação.
Não falaremos de democratas e fanáticos; nem falaremos de cores - porque entrar no abismo profundo
destas questões enterraria nele o génio da razão, como é a mansão da morte. O que não devemos temer
de um choque tão violento e desordenado de paixões, de direitos, de necessidades e de princípios?”
(tradução da autora).
24
No século XX, o conflito armado entre o Equador e o Peru (1995-1998) pode ser considerado a continuação
da guerra entre a Grande Colômbia e o Peru.
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navais colombianas e mexicanas no porto de Cartagena. No pensamento de Bolívar, diz-
nos Silva Otero (1967, p. 61) “Pesaba la circunstancia de que la propia España
reconociera la independencia de Colombia, y ambas cosas parecían resultar
excluyentes”
25
. Ao mesmo tempo, a diplomacia de Washington e Londres pressionava no
sentido de impedir qualquer modificação do status quo no Caribe, o custo seria,
certamente, o não reconhecimento da independência da Colômbia. Nesse sentido,
Lievano Aguirre (1969, p. 55) refere que as pretensões do Secretario de Estado Norte-
Americano John Quincy Adams contidas na Nota que enviou em 1823 ao Ministro Norte-
Americano em Madrid, Hugo Nelson convenceram ao presidente mexicano Victoria e
ao General Santander a renunciar à expedição sobre Cuba. Depois do Congresso de
Panamá, os projectos sobre as Antilhas ficaram esquecidos. Para Ghotne (2020) a
“política antillana” da Grande Colômbia acabou por obedecer aos imperativos realistas.
c) Não ingerência ou não intervenção: no caso do Haiti considerado um foco de
instabilidade e de contágio revolucionário desde 1804 em toda a extensão caribenha que
incluía sociedades esclavagistas mereceu “uma política euro‒norte-americana de
exclusão e isolamento” (Toro Jiménez, 2008, p. 359) ou a imposição, podemos dizer, de
um cordão sanitário a volta da ilha. Em começos de 1824, perante uma iminente invasão
francesa, o presidente haitiano Jean Pierre Boyer designou uma missão diplomática
perante o governo da Colômbia à procura de aproximação e protecção. A resposta da
Colômbia foi negativa, “una alianza cambiaría la posición favorable de Colombia en
relación a las potencias europeas”
26
. Efectivamente, o Haiti ficaria fora dos planos de
libertação de Bolívar. Para Toro Jiménez (2008, p. 362), o Haiti ficou fora do Congresso
de Panamá e não foi reconhecido por Colômbia para não provocar as potências europeias.
No mesmo contexto, perante o conflito que se desenvolvia mais a sul, na Banda Oriental,
entre o Império Brasileiro e as Províncias do Rio da Prata, desde 1825 e até 1828 ‒ onde
os ingleses tinham uma grande influência política, desempenhando o papel de
mediadores ‒ , a politica da Grande Colômbia orientou-se também pelo princípio de não
ingerência.
III. A desintegração da Grande Colômbia
Em 1826, ainda no contexto da realização do Congresso de Panamá, surge o movimento
separatista na Venezuela, apoiado relatam académicos como Toro Jiménez (2008),
citando autores como, José Manuel Restrepo, Rafael María Baralt, e Alberto Filippi ‒,
principalmente, pelos ingleses e norte-americanos. Nesse sentido, testemunhos e
provas directas e indirectas que corroboram, por exemplo, a existência e magnitude da
conspiração inglesa contra Colômbia (2008, p. 395). Para o mesmo autor, a secessão da
Venezuela foi um golpe mortal para a República Colombiana.
Dicho golpe de gracia fue el resultado de una habilidosa diplomacia que, al
mutilar la República, dejó en su lugar pseudo Estados inflables sin
25
Em português: “O facto de a própria Espanha reconhecer a independência da Colômbia pesava muito e as
duas coisas pareciam excluir-se mutuamente” (tradução da autora).
26
Em português: “uma aliança alteraria a posição favorável da Colômbia em relação às potências europeias”
(tradução da autora).
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consistencia interna, al garete, aislados unos de otros, fáciles de someter a
dependencia y subordinación secular
27
(p. 386).
Toro Jiménez refere ainda que o aparecimento da Colômbia como um interlocutor de
peso na região desafiava a hegemonia comercial dos ingleses, e em relação aos EUA,
constituía um grande rival na zona do Golfo do México, onde a história da escravatura
com o comércio do açúcar, tabaco e algodão vivia um dos seus capítulos mais oprobriosos
(2008, pp. 390-392).
A Grande Colômbia dividiu-se definitivamente em 1830. Observando para dentro,
Boersner (1996, pp. 100-101) refere que a Venezuela e Quito rejeitaram o predomínio
da Nova Granada a maior das partes, dos pontos de vista territorial e populacional -, e
pelo facto de que na América Latina perduravam as limitações de um sistema feudal ou
semifeudal, a tendência era a de que cada latifundiário militar se considerasse “dono
absoluto da sua comarca”. “(…) Isto acabou por reflectir-se na politica do continente por
meio de correntes centrífugas e regionalistas de todo o tipo”. Portanto, para além das
tensões externas, forças internas poderão ter incidido de igual forma no final deste
exercício de integração política na região.
Para Lezama (2021), “la construcción republicana no concluyo con las victorias militares
apenas iniciaba e, en gestación, enfrentaba las aspiraciones, contradicciones y
complejos, de amplios sectores sociales”
28
(2021, p. 106). No mesmo sentido Uribe de
Hincapié fala-nos do enorme desafio que era conseguir dotar de identidade este amplo
território, onde existiam povos distintos e etnias diferenciadas com poucas coisas em
comum, uma grande diversidade de culturas, crenças e costumes e tradições, nenhuma
das quais com força suficiente para converter-se no centro aglutinador da nação (2011,
p. 27). A Grande Colômbia surge, pois, desprovida de uma nação, de uma identidade
própria.
Ainda para dentro, no plano das ideias e sobre o ideário internacional hispano-americano
abraçado pelas elites nacionais das nascentes repúblicas, Salazar Bondy (1983, p. 10)
alertou-nos para a nova etapa que se segue à independência política na Hispano-
América, em que o pensamento expande-se livremente mas com a precariedade que
impõe a crise político-social que confrontavam quase todas as repúblicas no século XIX.
O pensamento escolástico colonial foi imposto pelos interesses das metrópoles, os
sistemas que o substituíram foram acolhidos pela classe dirigente e sectores intelectuais
dos países de acordo com as suas preferências imediatas e afinidades sentidas no
momento, obedecendo a uma lógica histórica estranha à consciênciadas populações, à
sua condição social e económica e por isso foram abandonadas tão rapidamente e
facilmente como foram acolhidas (Salazar Bondy, 1983, pp. 18-9).
27
Em português: “Este golpe de misericórdia foi o resultado de uma diplomacia hábil que, ao mutilar a
República, deixou no seu lugar pseudo-Estados insufláveis, sem consistência interna, isolados uns dos
outros, fáceis de submeter à dependência e à subordinação secular” (tradução da autora).
28
Em português: “a construção da república não terminou com as vitórias militares, apenas começou e, em
gestação, enfrentou as aspirações, contradições e complexos de amplos sectores sociais” (tradução da
autora).
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Este desfasamento entre, por uma lado, o pensamento dominante e as elites que o
adoptam, e por outro, o conjunto da comunidade, foi uma constante na história política
e social destes países. Para Uribe de Hincapié,
Algunos sectores del demos tanto entre los plebeyos como entre los patricios en cuyo
nombre se reclamaba la soberanía, se mostraban indiferentes o francamente hostiles a
los propósitos emancipatorios de los intelectuales, y en varias provincias de Venezuela y
la Nueva Granada se presentaron levantamientos de negros e indios a favor del rey
29
(2011, p. 27).
Outros factores internos são referidos pelos estudiosos como causas da desintegração da
Grande Colômbia como, a inexistência de um mercado comum, e todavia, o problema da
descapitalização e o endividamento externo colombiano pela contratação de enormes
empréstimos dos ingleses (Liehr, 1989, pp. 465-488).
Para Toro Jiménez (2008, p. 355) o Tratado Colombo-Britânico de 1825 contribuiu para
criar um vínculo de dependência económica com a Grã Bretanha e uma dificuldade certa
para empreender uma politica de integração hispano-americana, um exemplo disso terá
sido o impacto negativo da compra de produtos ingleses sobre o sector têxtil em Quito,
local a partir de onde ‒ nos tempos da colónia distribuíam-se produtos, desde o Vice-
reinado de Nova Granada até ao território do Chile. A mesma coisa se poderia dizer em
relação ao Tratado de Amizade, Comércio e Navegação com os EUA, subscrito um ano
antes. Para o mesmo autor, as generosas concessões por parte da Grande Colômbia irão
constituir um precedente que impediu Colômbia de desenhar e estabelecer uma política
aduaneira a favor das repúblicas sul-americanas e centro-americanas (Idem, p. 354).
Se echaba por la borda la experiencia del antiguo comercio intracolonial, que
tanto provecho había producido en algunos sectores y regiones. Ejemplo, la
experiencia del comercio venezolano-mexicano del cacao y otros productos
agrícolas que favoreció un aumento del capital y crecimiento económico en la
provincia de Venezuela a fines del siglo XVIII
30
(Idem, 2008, p. 354).
Quanto ao endividamento externo, os custos da guerra determinaram a necessidade de
acudir à empréstimos disponibilizados pelos ingleses. Até finais de 1827, a vida
colombiana teria atingido a soma de 12.400.971 pesos (Liehr, 1989, p. 475).
Conclusão
A perspectiva realista clássica, apesar das insuficiências dos paradigmas teóricos no
âmbito da nossa ciência, revelou-se útil à procura de uma (re)interpretação dos
acontecimentos ocorridos numa época que se bem estudada é lembrada muitas vezes ‒
em linha com o que nos diz Malamud (2021) ‒ numa versão que resulta da manipulação
29
Em português:Alguns sectores do demos - tanto entre os plebeus como entre os patrícios -, em nome dos
quais se reivindicava a soberania, eram indiferentes ou francamente hostis aos objetivos emancipatórios
dos intelectuais, e em várias províncias da Venezuela e da Nova Granada houve revoltas de negros e índios
a favor do rei” (tradução da autora).
30
Em português: A experiência do antigo comércio intra-colonial, que tinha sido tão rentável nalguns sectores
e regiões, foi atirada borda fora. Por exemplo, a experiência do comércio venezuelano-mexicano de cacau
e de outros produtos agrícolas que favoreceu o aumento do capital e o crescimento económico da província
da Venezuela no final do século XVIII” (tradução da autora).
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da história, principalmente, por parte de certas classes políticas que teimam em associar
o fracasso do projecto bolivariano exclusivamente com factores exógenos e alheios às
acções e decisões adoptadas pelos responsáveis políticos de então.
O “sonho belo de Bolívar” desfez-se, e no lugar de uma Hispano-América unida, surgiu
um espaço regional de desintegração. A política tendeu ao contraditório, e em ocasiões,
mostrou-se incoerente no quadro das suas acções e decisões, consoante os objectivos e
os princípios assumidos. A política externa da Grande Colômbia constituiu, podemos
dizer, um elemento catalisador da desintegração da Grande Colômbia.
Se por um lado, as acções militares dos colombianos conseguiram a libertação dos
territórios, por outro, algumas das decisões adoptadas criaram outras novas formas de
dependência. As concessões comerciais generosas para norte-americanos e ingleses em
troca do reconhecimento da nova República, por exemplo, comprometeram o
desenvolvimento do comércio intra-regional, mesmo que incipiente.
A Colômbia propôs a União Hispano-Americana de toda uma região com estruturas e
padrões de conduta económica favoráveis à divisão entre as províncias, desprovida de
uma identidade comum diferente da consciência (subjectiva) comum imposta pela
metrópole, o que acabou por gerar desconfianças entre as elites políticas e comerciais
dos novos Estados, incentivou as rivalidades e reforçou os nacionalismos. Ao mesmo
tempo, o potencial emergente do novo Estado republicano, promotor da abolição da
escravatura e do comércio de escravos aumentou os receios das potências externas,
podendo este ser o interlocutor de toda uma região que apesar de imersa num clima de
grande instabilidade política, económica e social, somava num contexto de configuração
de forças.
Por último, foi encontrada uma solução de compromisso com a adopção do princípio do
utis possidetis para a delimitação dos territórios, proposta por Bolívar, contudo, a
realidade da existência de fronteiras mal definidas pelos tratados anteriores, e o potencial
dos recursos contidos nestes territórios ainda por explorar tornou esta solução
claramente insuficiente, e nalguns casos garantiu a perpetuidade dos conflictos.
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AS INDEPENDÊNCIAS IBERO-AMERICANAS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS (1800-1825)
NUNO CANAS MENDES
ncanasm@gmail.com
Professor Associado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de
Lisboa (Portugal) e presidente do Instituto do Oriente, centro de investigação acreditado e
financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Doutor em Relações Internacionais pela
Universidade Técnica de Lisboa, tem-se dedicado à investigação na área dos Estudos Asiáticos,
Diplomacia e Política Externa e História das Relações Internacionais. É diretor da revista
Daxyiangguo: Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos. É autor de 8 livros e co-autor de 11, de
18 capítulos de livros e de 30 artigos. Orientou cerca de 30 dissertações de Mestrado e teses de
Doutoramento. Membro do Conselho Consultivo da Janus-net,e-journal of International Relations.
Foi professor no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (2009-2018),
professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina e conferencista no Instituto de
Defesa Nacional, Universidade Autónoma de Lisboa, Instituto Nacional de Administração, na
Academia das Ciências Sociais e Tecnologia (Angola) e no Instituto de Defesa Nacional (Timor-
Leste).
Resumo
As independências ibero-americanas e em particular a do Brasil ocorrem num contexto
específico das relações internacionais do que alguns consideram ser a primeira vaga da
descolonização, com um descentramento do poder da Europa que resultou das revoluções
americana e francesa e do advento de Napoleão. Estas independências introduzem uma
cesura importante que mudará o panorama das relações internacionais, com a entrada em
cena de um conjunto de novos Estados e de um que cedo assumirá a dianteira dos mesmos:
os Estados Unidos da América.
Palavras-chave
Relações internacionais, Ibero-América, Independências, Estados Unidos da América,
Doutrina de Monroe.
Abstract
The Ibero-American independence, particularly that of Brazil, occurred within a specific
context of international relations that some have considered the first wave of decolonization.
This period saw a shift in power away from Europe due to the American and French revolutions
and the rise of Napoleon. These independences mark a significant rupture that will alter the
landscape of international relations, ushering in a new set of states, with one in particular
soon taking the lead: the United States of America.
Keywords
International relations, Ibero-America, Independence, United States of America, Monroe
Doctrine.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 38-47
As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações internacionais (1800-1825)
Nuno Canas Mendes
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Resumen
Las independencias iberoamericanas, y en particular la de Brasil, se produjeron en un contexto
específico de las relaciones internacionales, en lo que para algunos fue la primera ola de
descolonización, con una descentralización del poder en Europa derivada de las revoluciones
americana y francesa y del advenimiento de Napoleón. Estas independencias introdujeron una
importante ruptura que cambiaría el panorama de las relaciones internacionales, con la
entrada en escena de una serie de nuevos Estados y de uno que pronto tomaría la delantera:
los Estados Unidos de América.
Palabras clave
Relaciones Internacionales; Iberoamérica; Independencias; Estados Unidos de América;
Doctrina Monroe.
Como citar este artigo
Mendes, Nuno Canas (2024). As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações
internacionais (1800-1825). Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 -
Portugal e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.3
Artigo recebido em 1 de Novembro de 2023 e aceite para publicação em 25 de Janeiro
de 2024
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AS INDEPENDÊNCIAS IBERO-AMERICANAS NO CONTEXTO DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS (1800-1825)
NUNO CANAS MENDES
Introdução
O presente artigo incidisobre o cenário internacional de ocorrência das independências
das colónias espanholas e do Brasil no primeiro quartel do século XIX, contextualizando-
as e relacionando-as com as grandes transformações ocorridas na Europa e das
respetivas réplicas no Novo Mundo. O mote para o escrever foi a comemoração do
segundo centenário do estado brasileiro situando a fundação do mesmo no pano de fundo
internacional
1
. O seu objetivo é fornecer uma súmula sobre a dinâmica do processo e dos
intervenientes no mesmo, não se avançando com dados inéditos ou interpretações
inovadoras sobre um período histórico de consabida complexidade. Para atingir tal
objetivo, optou-se por uma metodologia que, embora assente na discussão bibliográfica,
deliberadamente a omite em benefício de fornecer, a traço grosso, a síntese.
Com efeito, já muito foi escrito sobre o tema e consequentemente o que se ensaia aqui
é a apresentação de um quadro geral e amplo, que permite identificar a génese das
referidas independências e do protagonismo dos Estados Unidos da América no seu’
hemisfério, assim como da formação e evolução das ideias pan-americanas. o se
avançará, pela impossibilidade de o fazer num artigo com propósitos ‘panorâmicos’, para
uma revisão sistemática da vasta literatura existente mas antes para uma seleção
‘cirúrgica’ de algumas obras de referência, como 1822 - Das Américas Portuguesas ao
Brasil, coordenado por Roberta Stumpf e Nuno Gonçalo Monteiro (2022); ou o
incontornável The Congress of Vienna: Power and Politics after Napoleon, de Biran E.
Vick (2014); ainda para enquadramento da reflexão na perspetiva de um mundo pós-
revolucionário, em deambulação por uma espécie de longo século XIX de corte e
transformação: The Birth of the Modern World, 1780 1914, C. A. Bayly (2003)
2
.
O artigo focará igualmente as novidades que o sistema de Viena de 1815 introduziu na
Europa daquele tempo e de como os nacionalismos e a não-ingerência foram vivenciados
em ambas as margens do Atlântico. Este princípio da não-ingerência, de que o
‘esplêndido isolamento’ e a doutrina de Monroe são expressões manifestas, acolhe zonas
1
Agradeço às professoras Nancy Gomes e Roberta Stumpf o convite para participar no colóquio internacional
“Portugal e Brasil: História, Presente e Futuro”, ocorrido no dia 3 de novembro de 2022, na Universidade
Autónoma de Lisboa.
2
Sobre a independência do Brasil, há extensa obra, das quais destacaria, entre as mais recentes, Proença,
M.C. (1999). A Independência do Brasil. Edições Colibri; Cervo, A. L.; Magalhães, J. C. de (orgs.). Depois
das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil, 1808-2000 (2000). Editora da UnB, 2000; Pimenta, J.P.
(2022). A independência do Brasil. Editora Contexto. Sobre a emancipação ibero-americana, sugere-se:
Chasteen, J.C. (2008). Americanos: Latin America’s Struggle for Independence. Oxford University Press e
Echeverri, M; Soriano, Cristina (2023). The Cambridge Companion to Latin American Independence.
Cambridge University Press. Para o Congresso de Viena e Europa do século XIX, recomenda-se Abbenhuis,
M. (2014). An Age of Neutrals: Great Power Politics, 1815-1914. Cambridge University Press e Jarrett, M.
(2021). The Congress of Vienna and its Legacy: War and Great Power Diplomacy after Napoleon.
Blooomsbury Academic.
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de intervenção natural dentro de um princípio de divisão de esferas de influência. o
será exatamente uma novidade na história das relações internacionais, ainda que aqui o
que é novo é ele ocorrer numa realidade pós-colonial, com uma Grã-Bretanha em
crescendo global e uma Europa a tomar forma para acomodar o primado da Alemanha.
1. As relações internacionais depois do Congresso de Viena
Num primeiro momento, vamos considerar as primeiras três décadas do século XIX em
que as independências ibero-americanas ocorrem no momento de grandes mudanças no
sistema internacional, de que destacaria o surto napoleónico e a coligação que lhe resistiu
até ao estertor em Waterloo, os rearranjos da ordem definida no Congresso de Viena e
os efeitos da doutrina de Monroe. O citado surto determinará uma alteração de lógica
de resto não totalmente inédita e com raízes importantes no pensamento do P. e António
Vieira e de D. Luís da Cunha que converte o Brasil em cabeça do império, com a família
real e a elite no Rio de Janeiro, a subsequente abertura dos portos ao comércio
internacional em 1810 e, em 1815, com o Reino Unido que elimina formalmente o pacto
colonial já desmantelado pela citada abertura dos portos. Ao invadir Portugal, Napoleão
precipita o que já havia sido pensado nos séculos XVII e XVIII, noutros contextos, sem,
no entanto, conseguir destituir a dinastia de Bragança. O pequeno retângulo europeu
passava a uma posição subalterna, de metrópole convertida em colónia e sob uma tutela
britânica que cria o caldo de cultura que vem a desembocar na revolução de 1820 e no
regresso de D. João VI a Portugal. Nestas circunstâncias, tendo os Franceses ficado a
“ver navios” e tendo ocorrido esta transferência transatlântica da sede do poder, a
independência do Brasil era uma inevitabilidade. A par de um conjunto de sintomas e
manifestações anteriores de descontentamento perante o status-quo colonial, a
conjuntura política iniciada com a Revolução Americana precipitaria o processo.
Mas neste primeiro momento, na descrição do quadro internacional considerar-se-ão dois
elementos estruturantes do sistema diplomático pós-napoleónico: isto é, a Viena e à
Doutrina de Monroe. Qualquer um destes factos têm uma importância crucial para as
independências que estamos a considerar. Não é, de resto, possível entender o processo
sem nos determos no que se passava no velho continente (incluindo a dimensão prática
no apoio à separação - dinheiro, provisões, comércio, navios, munições - e o
reconhecimento oficial dos novos governos)
3
. A chamada ‘ordem’ de Viena de que saiu a
Santa Aliança e o Concerto Europeu resultou numa dinâmica tipicamente alternativa,
entre o continentalismo europeu a dar continuidade à herança do Ancien Régime e o
Splendid Isolation britânico muito mais adaptado a um século XIX industrial e à imposição
do rule britannia global, que abre o caminho para a apresentação do discurso do
presidente James Monroe onde define um alinhamento geopolítico para o hemisfério
ocidental. Vale a pena determo-nos nos nexos entre uma coisa e outra:
a) Viena e o novo equilíbrio de poderes oitocentista nela lançado abrem caminho
para uma tensão e um acerto entre uma tendência contrarrevolucionária, reacionária,
legitimista, e em grande medida continental em torno das autocráticas Rússia e Áustria
e da cada vez mais poderosa Prússia, unidas na Santa Aliança e outra revolucionária,
liberal, animada pelo legado de 1776 e 1789, pela soberania popular materializada em
nacionalismos, a que se tinha de apor o desvio britânico, concentrado nos negócios
ultramarinos a uma escala cada vez mais global. É este confronto entre renovação e
poderes estabelecidos, que se situa a erupção latino-americana, favorecida pela fratura
3
A América ibérica, não considerando o Brasil-Império, viveu um período pós-independência muito
conturbado: o reconhecimento pela Espanha demorou décadas, a identidade e configuração territorial causa
de muitas disputas sobre limites, dissolução da Grã-Colômbia logo em 1830, militarismo e caudilhismo,
governos instáveis, problemas económicos, endividamento, etc. Tal alimentava o receio do
intervencionismo europeu.
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napoleónica e o golpe que desferiu junto das monarquias hispânicas, e por um
‘amadurecimento’ das elites locais permeáveis a novos ideários e em desconforto com os
ditames e desmandos metropolitanos.
A centúria de oitocentos caracteriza-se pela paz e estabilidade que se viveram no
continente europeu (Anderson, 1993, 181-201). É claro que a aludida estabilidade não
esteve isenta de crises e mesmo conflitos, mas numa escala muito mais modesta quando
comparada com o século anterior marcada pela magnitude de ocorrências de grande
impacto: a Guerra da Sucessão de Espanha, a Guerra dos Sete Anos, a Revolução
Francesa e o império napoleónico (Mendes, 2017).
A doutrina de Monroe, de que saíram os fundamentos da política externa dos Estados
Unidos e que definia a sua primazia no hemisfério ocidental, que passava assim a zona
reservada para a respetiva intervenção política, económica e comercial, estancando a
veleidade de restaurar a ordem colonial, formal ou informalmente, pela Espanha e por
outros países europeus e reconhecendo os governos de facto. Os termos eram claros:
à defesa do nosso [sistema político], que foi conquistado com o
derramamento de muito sangue e recursos, e amadurecido graças à
sabedoria dos seus mais iluminados cidadãos, e sob o qual experimentámos
inusitada felicidade, esta nação inteira se devotou. Devemos-lhes isso;
porém, para garantir imparcialidade e relações amigáveis entre os Estados
Unidos e estas potências [europeias], devemos considerar que qualquer
tentativa da sua parte de estender o seu sistema a alguma parte deste
hemisfério pode ser perigosa para a nossa paz e segurança. Nas colónias
existentes e dependências de qualquer potência europeia não interferimos e
não tencionamos interferir. Mas com os governos que declararam a sua
independência e a mantêm, e cuja independência, com grande consideração
e com justos princípios, reconhecemos, o podemos encarar qualquer
interposição de qualquer potência europeia, com o propósito de os oprimir ou
controlar de qualquer outra maneira o seu destino, a qualquer outra luz que
não seja a da manifestação de uma disposição não amigável em relação aos
Estados Unidos (Monroe, 1823)
4
.
Assumia-se assim uma disposição de evitar o envolvimento com a opressora’ Europa,
prevenindo qualquer tentativa de intervenção que dela pudesse surgir (“não podemos
encarar qualquer interposição de qualquer potência europeia”), garantindo uma
reciprocidade de não-interferência (“nas colónias existentes (...), não interferimos”) e
proclamando um princípio de solidariedade que remetia para um princípio de segurança
coletiva (“a alguma parte deste hemisfério”, “disposição não amigável em relação aos
Estados Unidos”).
4
Tradução do original: to the defense of our own [political system], which has been achieved by the loss of
so much blood and treasure, and matured by the wisdom of their most enlightened citizens, and under
which we have enjoyed unexampled felicity, this whole nation is devoted. We owe it, therefore, to candor
and to the amicable relations existing between the United States and those powers to declare that we should
consider any attempt on their part to extend their system to any portion of this hemisphere as dangerous
to our peace and safety. With the existing colonies or dependencies of any European power we have not
interfered and shall not interfere. But with the Governments who have declared their independence and
maintain it, and whose independence we have, on great consideration and on just principles, acknowledged,
we could not view any interposition for the purpose of oppressing them, or controlling in any other manner
their destiny, by any European power in any other light than as the manifestation of an unfriendly disposition
toward the United States”.
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Com estas disposições, Monroe assumia uma postura de assertividade continental que
lhe permitiria ao mesmo tempo promover uma consolidação interna, que abriria caminho
à definição do território e à assunção do destino manifesto. Os termos desta política
acabariam por ser reinventados depois da guerra hispano-americana, terminada em
1898, data que marca o fim da presença política da Espanha no continente (e o fim do
respetivo império) e o início de um ciclo de cariz colonial, com a aquisição das Filipinas
pelos EUA.
Em suma, a doutrina de Monroe estabeleceu uma colossal esfera de influência, que serviu
de base a uma função de policiamento e estabilização do hemisfério, inicialmente contra
a Europa e, depois de 1945, contra a influência comunista. Vale a pena mencionar que
nos seus antecedentes mais próximos está a conclusão da guerra anglo-americana em
1812, a qual veio reforçar o nacionalismo norte-americano, assente num expansionismo
territorial e comercial e no acerto de fronteiras com a Grã-Bretanha e a Espanha. Esta
guerra foi, portanto, decisiva para garantir um estatuto de potência aos Estados Unidos,
permitindo-lhes mostrar os recursos da sua Marinha e desenvolver uma vontade
crescente de afastamento dos perigos da diplomacia europeia em geral. É neste contexto
de definição de fronteiras que se insere o objetivo de Monroe, presidente desde 1817, de
comprar a Flórida à Espanha e definir os limites com o vice-reino da Nova Espanha, o
que o Tratado Transcontinental de 1819 permitiu
5
. De referir que os EUA sentiam a
ameaça dos russos e dos britânicos na costa do Pacífico e a criação de um pequeno posto
comercial no Oregon Astoria foi um sinal desta vontade de demarcação. À custa do
“derramamento de muito sangue e recursos”, as vulnerabilidades de um país em
formação eram superadas graças a esta autonomia estratégica em conquista.
O Bolivarismo tem semelhanças com a doutrina de Monroe na medida em que também
propunha separação, neutralidade americana face à Europa e preocupação com a
segurança dos novos Estados sobretudo no que toca a tentativas de recolonização e na
promoção de um ‘sistema americano’: por iniciativa de Bolívar realizou-se em 1826 o
Congresso Interamericano do Panamá, uma reação à Santa Aliança no pressuposto de
uma solidariedade e cooperação pan-americanas de muito difícil implantação naquele
momento (Hilton, 2001)
6
.
2. O equilíbro de poderes
Num segundo momento, consideraremos outro conceito fundamental das relações
internacionais, o equilíbrio de poderes então estabelecido na relação entre continentes.
Um dos aspetos fundamentais de Viena para o qual contribuiu decisivamente a
formação do Concerto Europeu que deveria fazer os ajustamentos necessários e
preservar a paz, uma espécie de sistema de segurança coletiva avant la lettre foi o
estabelecimento de um novo equilíbrio de poderes que garantiu, pelo menos até à eclosão
da Guerra da Crimeia o predomínio de uma contenção. o que o ambiente tenha sido
isento de alguns sobressaltos ou que não tenham emergido iniciativas que punham em
causa esse equilíbrio, como sucedeu aquando do projeto de uma intervenção de alcance
5
Tratado de amizade, resolução de diferenças e limites, conhecido pelo nome de Tratado de Adams-Onís,
ratificado em 1821 entre a Espanha e os EUA, onde se fixou a fronteira entre os EUA e o vice-reino da Nova
Espanha. Os EUA adquiriam a Flórida Oriental por 5 milhões de dólares, reconhecia-se a anexação da Flórida
Ocidental definia-se a fronteira oeste da Luisiana e a Espanha deixava cair as suas pretensões em relação
ao Oregon.
6
Entre as ideias então apresentadas, a formação de uma confederação hispano/ibero-americana, arbitragem
em caso de disputas interamericanas, assembleia legislativa com plenos poderes em política externa,
aliança defensiva e exército comum. Durante o século XIX realizaram-se mais quatro conferências pan-
americanas, mas o seu contributo foi sobretudo para o desenvolvimento do Direito Internacional.
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restaurador a expedição dos 100 mil filhos de São Luís que deu força à lógica do
esplêndido isolamento de Canning e da doutrina de Monroe.
Se é verdade que o multilateralismo se robusteceu em Viena e a prática da diplomacia
se complexificou, esta primeira descolonização começando na formação dos EUA e
alastrando a todas as Américas introduziu uma alteração de monta no sistema
internacional: a um sistema centrado nos Estados europeus, grosso modo os oito que se
sentaram em Viena, vêm juntar-se os novos Estados americanos. As primeiras
organizações internacionais a União Internacional de Telégrafos (fundada em 1865)
mais tarde União Internacional de Telecomunicações foi fundada na Europa e por países
europeus, mas a União Postal Universal (1874) já admitiu os EUA, apenas e só. O inter-
regionalismo americano avançou também, com a União Internacional das Repúblicas
Americanas que veria a luz do dia em 1890, na sequência da Primeira Conferência
Internacional Americana, convocada pelos EUA para adotar um plano de arbitragem para
a resolução de litígios e onde participaram 18 países, um ‘concerto americano’ com cariz
institucionalizado e mais técnico. A instituição esteve na génese da futura União Pan-
Americana. Mas o verdadeiro get together multilateral foi o Tratado de Paz de Versalhes,
em 1919, onde foram signatários a Bolívia, o Brasil, Cuba, o Equador, Guatemala, Haiti,
Honduras, Nicarágua, Panamá, Uruguai e os EUA, bem-entendido. Somente um século
depois das independências uma integração real numa discussão sobre problemas
mundiais, pontuada pelo seu protagonista americano Wilson - que vem a ser derrotado
em casa e pelo definhar de uma Europa em declínio.
3. Novas formas de governança e os procedimentos de legitimação das
potências nos conflitos
O equilíbrio de Viena assentou num diretório a cinco a pentarquia -, mas a Grã-Bretanha
apressou-se a demarcar-se definindo uma ordem mundial sob a sua hegemonia e uma
Pax Britannica que sucumbiria finalmente em 1914, apesar dos ameaços anteriores. Até
lá, como foi referido, o sistema encarregou-se não de evitar crises ou mesmo guerras,
mas de uma contenção. Valorizava-se mais a estabilidade e a moderação, valores não
comungados pelo Kaiser Guilherme II que com os seus planos de uma weltpolitik
comprometeu irremediavelmente este equilíbrio. Em certa medida, do outro lado do
oceano, foi uma pax americana que os EUA propuseram no seu hemisfério, numa espécie
de subsistema autónomo que, como diria Adriano Moreira, traça uma descentralização
do governo do Ocidente e se inspira num ‘anticolonialismo branco, burguês e liberal’.
A governação por um diretório fundamentava-se na força, sob o pretexto de uma
comunidade espiritual e de um legitimismo que enformava uma aliança dita santa,
criando um sistema em que a assimetria entre pares era natural. Do outro lado do
Atlântico, a revolução americana e os levantamentos de Bolívar e San Martin não deram
lugar a uma aliança contrarrevolucionária nem a um diretório, mas a um equilíbrio de
um só protagonista, com ingerência incluída.
O mencionado Concerto Europeu institucionalizou a realização de congressos periódicos,
embora esta inovação tenha estado na origem da criação de um mecanismo de
legitimação das intervenções externas. Foi o que sucedeu em Laybach (1821), em que a
Áustria de restabelecer a ordem na península itálica, ou seja, repor o absolutismo nos
reinos de Nápoles e da Sardenha (Mendes, 2017, p. 50). Foi no Congresso de Verona
(1822) que se decidiu que a França deveria debelar a revolução espanhola e restituir o
poder a Fernando VII, daqui resultando a intervenção acima aludida dos "cem mil filhos
de São Luís", eficaz no derrube dos regimes liberais de Espanha e Portugal, mas sem
êxito no objetivo de restabelecer os domínios americanos dos Bourbons e dos Braganças
(entretanto retornados ao Velho Continente, ainda que continuados em D. Pedro I,
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imperador do Brasil). Como muito justamente conclui Jean-Baptiste Duroselle (1990, p.
317): "na sua globalidade, o «concerto europeu», muito imperfeito, e o reflexo de uma
vaga união europeia, desempenharam, relativamente a Espanha e a Portugal, um papel
destruidor". De resto, a independência do Brasil, nesse mesmo ano de 1822,
representava uma solução original, e um quase compromisso entre a pulsão
revolucionária separatista e o legitimismo monárquico com um soberano de uma nova
dinastia de Bragança brasileira, casado com uma arquiduquesa austríaca: quer a Grã-
Bretanha quer a Santa Aliança não tardaram em reconhecer o novo governo.
Como referido, a decisão de intervir em Espanha teve um efeito de diluição do sistema,
criando espaço para o avanço da contrarrevolução e cindindo a quíntupla aliança, com a
aludida autoexclusão da Grã-Bretanha relativamente aos assuntos da Europa continental.
Este posicionamento era uma espécie de equivalente lateral àquele que Monroe adotaria,
mas neste caso para estender o seu poder ao resto do mundo, incluindo a América ibérica
através do comércio (e com algum desrespeito pela doutrina de Monroe, como comprova
o caso da ocupação das Malvinas, em 1833, que viria a estar na origem da famosa guerra
com a Argentina nos anos 80 do século XX)
7
.
Novos tumultos foram eclodindo, pondo em causa, uma vez mais, o equilíbrio de Viena.
O fenómeno dos nacionalismos e em particular a manifestação do grego, veio suscitaru
a questão dos Balcãs e do domínio do Mediterrâneo, convocando assim a ssia e a Grã-
Bretanha (Mendes, 2017, p. 50). A derrota dos otomanos ficou estabelecida, em 1829,
através do tratado de Andrinopla, de que resultou a independência da Grécia. E assim se
inaugurou uma vaga de independências baseadas no princípio da soberania popular de
que os nacionalismos se nutriam. Em certa medida, a independência grega contestava
um poder imperial em apuros como tinha acontecido na América ibérica.
O citado Georges Canning depois de anunciar o princípio de o-intervenção na
Câmara dos Comuns, em 1822, trouxe, assim, um embaraço ao chanceler Metternich.
Pugnando pela neutralidade relativamente aos assuntos continentais, não obstante
considerar que o interesse nacional era incompatível com a intervenção na Europa
continental, apoiou os revoltosos gregos, reconhecendo-lhes o estatuto de beligerantes
e deu força à sua causa; já a Rússia, viu nesta atitude uma oportunidade para fragilizar
o império otomano e para estender os seus interesses nos Balcãs, para onde queria
estender uma esfera de influência de matriz eslava. Como seria expectável, Metternich
não desejava este expansionismo russo na península balcânica por trazer riscos aos
frágeis fundamentos do império austríaco, o que determinou o alinhamento do governo
da Áustria com o da Grã-Bretanha (Mendes, 2017, 51). A Rússia não queria hostilizar a
Grã-Bretanha, para poder fazer valer os seus objetivos expansionistas e conter a Áustria.
Na mesma senda dos nacionalismos, desenhou-se um eixo Paris-Londres, convergente
na política de não-ingerência, como ficaria demonstrado aquando da revolução belga. O
equilíbrio funcionava num entendimento comum: o nacionalismo belga não podia ser
neutralizado pela ideia de uma afinidade natural com a França, que o não contrariou e
se absteve de intervir, aliás com uma ameaça dissuasora de Palmerston (Mendes, 2017,
p. 51). A independência seria declarada na conferência de Londres em 1830
8
. A
7
Os Estados Unidos não se manifestaram contra a ocupação, mas em 1845 e 1848 fizeram-no, durante a
presidência de James Polk, à luz da doutrina do Destino Manifesto. Monroe fechou o hemisfério ocidental
ao colonialismo europeu; Polk foi mais longe, afirmando que os países europeus não deveriam interferir na
expansão territorial dos Estados Unidos. Em 1904, Theodore Roosevelt introduzirá um Corolário extensivo
da doutrina de Monroe, segundo o qual os Estados Unido, em caso de flagrante e crónica conduta de
países da América Latina, poderiam intervir nos respetivos assuntos internos, em modo de polícia (Marcos,
2014, 168-170).
8
O primeiro rei dos Belgas, Leopoldo de Saxe-Coburgo-Saalfeld, que fora casado com a princesa Carlota,
filha de Jorge IV, rei da Grã-Bretanha, casaria depois de soberano do novo país, com Luísa d’Orléans,
filha do rei dos Franceses, Luís Filipe. Assim se expressava o referido eixo Paris-Londres e se expandia essa
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insurreição na Polónia, no mesmo ano, não permitiu que esta sintonia produzisse algum
efeito: o exército czarista esmagou o movimento (Kissinger, 1995).
Assim, a política de não-ingerência e os nacionalismos estavam em crescendo dos dois
lados do Atlântico. Mas do lado americano, o imperialismo out-of-area despertaria
tardiamente. Com efeito, o big stick saide forma assumida para a América Latina
transposto o século XIX. Curiosamente, a intervenção ou ingerência fora da sua esfera
de influência definida veio introduzir, como vimos, uma modulação interessante na
política externa norte-americana, fazendo-a assumir no Sudeste Asiático uma postura de
sucessor colonial da pouco presente Espanha, no arquipélago das Filipinas. Foi aliás a
este mesmo propósito, de olhos postos em Theodore Roosevelt, que Rudyard Kipling
escreveu o seu célebre poema sobre o fardo do homem branco, exortando-o à conquista
das Filipinas (McGrath, 2019).
Conclusões
Como observou Jean-Pierre Bois, o mundo em 1815 pertencia ainda à Europa (Bois,
2003). Ao sobressalto revolucionário sucedeu um período de paz duradoura a que a
chama do nacionalismo inspirado na doutrina da soberania popular viria dar uma demão
de instabilidade. Mas é outra revolução, a Industrial, que garante um domínio europeu
que vingará até 1914. Uma nova ‘conquista’ do mundo, incluindo aquele que escapara
ou sentira menos a presença e penetração europeia. O Congresso Viena trouxe um
‘concerto’ que instrumentalizaria simultaneamente uma reação à mudança e um regresso
ao passado, mas não conseguiu impedir, graças a uma convergência de vontades, ainda
que por motivos diferentes, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, este descentramento
da ‘ordem’ europeia, com uma autonomia a que a Doutrina de Monroe deu corpo,
mitigada pelos interesses mais dispersos dos creolos da América espanhola ou pela
originalidade brasileira de uma inversão dos termos da lógica imperial.
Este desdobramento hemisférico, com réplicas e inovações, e as transformações políticas
e económicas no Velho Continente, com destaque para a citada Revolução Industrial e o
ambiente antiesclavagista que se generalizou, abriram caminho para mais um século de
relações internacionais ‘eurocentrizadas’, com o início do scramble for Africa e de uma
presença e domínio intensos na Ásia Oriental. As Américas, com a tração dos Estados
Unidos, consolidaram, nas suas diferenças intrínsecas, fragilidades, assimetrias e
equilíbrios instáveis, uma autonomia de mudança e de promessa que mobilizou correntes
migratórias, negócios e tecnologia.
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e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 38-47
As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações internacionais (1800-1825)
Nuno Canas Mendes
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
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FORÇAS E DINÂMICAS NA ORIGEM DA GUERRA DO PARAGUAI
UMA PERSPETIVA
RAQUEL DE CARIA PATRÍCIO
raqueldecariapatricio@gmail.com
Licenciada e mestre em Relações Internacionais pelo ISCSP/UTL. Doutorada em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília, onde iniciou a sua carreira académica, é especialista
em questões latino-americanas, possuindo diversos artigos e livros sobre a temática e sobre
teoria das Relações Internacionais, área à qual também se dedica. É hoje Professora Associada
no ISCSP, Universidade de Lisboa (Portugal) e Professora Convidada da Universidade Autónoma
de Lisboa.
Resumo
O objetivo central deste artigo é o de compreender e analisar as motivações internas e
regionais dos Estados da Bacia do Prata e as suas vinculações externas, por forma a elucidar
a conjuntura política que haveria de levar o Império do Brasil a realizar, em abril de 1864,
um ultimatum ao governo uruguaio e, na sequência, a adentrar em território uruguaio,
provocando a intervenção paraguaia no Mato Grosso e no território argentino contíguo, para
alcançar o Rio Grande do Sul, dando início à Guerra do Paraguai, em dezembro. Considerando-
se que as causas do conflito se centram, fundamentalmente, nas relações interplatinas,
particularmente envolvendo a livre navegação nos rios Paraná e Paraguai, os interesses do
Brasil no Uruguai, a ambição da Argentina de Bartolomé Mitre (1862-1868) de consolidar a
unidade política recém-alcançada e as ameaças à reduzida estabilidade regional colocadas
pela política expansionista e militarista do ditador paraguaio Solano pez (1862-1870),
conclui-se que o Reino Unido não orquestrou a guerra, tampouco que esta foi resultado do
imperialismo britânico, antes sendo expressão da tradição de violência da década de 1860,
que caracterizara o processo de construção do Estado nacional na Bacia do Prata. Na verdade,
o fim do conflito haveria de tornar claro o nacionalismo, antes desconhecido de todos, como
elemento determinante para esse processo de construção do Estado nacional na região.
Palavras-chave
Guerra do Paraguai, Império do Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai.
Abstract
The central aim of this article is to understand and analyse the internal and regional
motivations of the River Plate Basin states and their external ties, in order to elucidate the
political situation that would lead the Empire of Brazil to issue an ultimatum to the Uruguayan
government in April 1864 and, subsequently, to invade Uruguayan territory, provoking the
Paraguayan intervention in Mato Grosso and in the adjoining Argentine territory, in order to
reach Rio Grande do Sul. The Paraguayan War would begin in December. We consider that
the causes of the conflict were fundamentally centred on inter-Platin relations, particularly
involving free navigation on the Paraná and Paraguay rivers, Brazil's interests in Uruguay, the
ambition of the Argentinian leader Bartolomé Mitre (1862-1868) to consolidate the newly
achieved political unity and the threats to the limited regional stability posed by the
expansionist and militaristic policy of the Paraguayan dictator Solano López (1862-1870). We
conclude that the United Kingdom did not orchestrate the war, nor that it was the result of
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Forças e Dinâmicas na Origem da Guerra do Paraguai uma Perspetiva
Raquel de Caria Patrício
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British imperialism, but rather an expression of the tradition of violence of the 1860s, which
characterised the process of building the national state in the River Plate Basin. In fact, the
end of the conflict would make nationalism, previously unknown to everyone, clear as a
determining element in the process of building a national state in the region.
Keywords
Paraguayan War, Empire of Brazil, Argentina, Paraguay, Uruguay.
Resumen
El objetivo central de este artículo es comprender y analizar las motivaciones internas y
regionales de los Estados de la Cuenca del Plata y sus vínculos externos, con el fin de dilucidar
la coyuntura política que llevaría al Imperio de Brasil a dar un ultimátum al gobierno uruguayo
en abril de 1864 y, posteriormente, a penetrar en territorio uruguayo, provocando la
intervención paraguaya en Mato Grosso y en el contiguo territorio argentino, hasta llegar a
Rio Grande do Sul, dando inicio a la Guerra del Paraguay en diciembre. Considerando que las
causas del conflicto se centraron fundamentalmente en las relaciones interplatinas, en
particular en lo que se refiere a la libre navegación de los ríos Paraná y Paraguay, los intereses
de Brasil en Uruguay, la ambición de la Argentina de Bartolomé Mitre (1862-1868) de
consolidar la recién lograda unidad política y las amenazas a la reducida estabilidad regional
que representaba la política expansionista y militarista del dictador paraguayo Solano López
(1862-1870), se puede concluir que el Reino Unido no orquestó la guerra, ni que ésta fuera el
resultado del imperialismo británico, sino más bien una expresión de la tradición de violencia
de la década de 1860, que había caracterizado el proceso de construcción del Estado nacional
en la Cuenca del Plata. De hecho, el fin del conflicto pondría en evidencia que el nacionalismo,
hasta entonces desconocido, fue un elemento determinante en el proceso de construcción del
Estado nacional en la región.
Palabras clave
Guerra del Paraguay, Imperio de Brasil, Argentina, Paraguay, Uruguay.
Como citar este artigo
Patrício, Raquel (2024). Forças e Dinâmicas na Origem da Guerra do Paraguai uma Perspetiva.
Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 - Portugal e Brasil: história,
presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.4
Artigo recebido em 31 de Outubro de 2023 e aceite para publicação em 26 de Janeiro
de 2024
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Forças e Dinâmicas na Origem da Guerra do Paraguai uma Perspetiva
Raquel de Caria Patrício
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FORÇAS E DINÂMICAS NA ORIGEM DA GUERRA DO PARAGUAI
UMA PERSPETIVA
RAQUEL DE CARIAS PATRÍCIO
1. Introdução
As causas e as origens da Guerra do Paraguai (1864-1870) centram-se no contexto de
interesses entrecruzados que envolvia o Império do Brasil, a Argentina, o Uruguai e o
Paraguai, ameaçando a estabilidade na Bacia do Rio da Prata.
O Brasil gozava de equilíbrio interno, em função da forma como decorrera a sua
independência (1822), apresentando, também, uma inserção no capitalismo mundial
significativa, sobretudo enquanto exportador de matérias-primas (Toral, 1995) e possuía
uma política externa caracterizada pelo expansionismo iniciado pelos colonizadores,
procurando ter, frente aos vizinhos do Prata, uma posição hegemónica.
A fragmentação interna da Argentina, dividida entre os federalistas e os unitários,
favorecia o Brasil, que procurava conter a ambição expansionista dos unitários, até que
Bartolomé Mitre (1862-1868) assumisse a presidência da República e alcançasse a
unificação do Estado, após a Guerra do Paraguai (Menezes, 1998).
No Uruguai, intensa instabilidade caracterizou, também, o período pré-conflito, em
função da guerra anterior à criação do Estado do Uruguai, da influência económica do
Brasil na região, dos interesses britânicos por detrás da criação do Uruguai e da
alternância, no poder, dos Partidos Blanco e Colorado, que haveria de gerar, no país,
uma guerra civil de vinte anos (Menezes, 1998).
O pior seriam as medidas contra o Império do Brasil e o governo argentino de Bartolomé
Mitre adotadas durante a presidência do Blanco uruguaio Bernardo Berro (1860-1864),
que levaram o Brasil e a Argentina a apoiar o Partido Colorado. Como consequência,
Berro recorreria aos federalistas argentinos e ao governo paraguaio.
O Paraguai, por seu lado, não apresentava uma conjuntura interna e uma inserção
regional menos instável, desde logo porque uma parte do seu território surgia como alvo
das pretensões brasileiras e, outra, como alvo da ambição argentina. Por outro lado, o
Paraguai pré-guerra, da independência ao fim do conflito, vinha sendo gerido por
governos autocráticos. Na ditadura de José Gaspar Rodriguéz de Francia (1811-1840),
El Supremo, o país se recusara a se inserir no mercado capitalista mundial e com a
ascensão de Carlos António López (1844-1862), apesar de o governo continuar a ser
autoritário, foi trazida uma visão mais progressista para o Paraguai. Com a morte de
Carlos López (1862), assume o poder o seu filho Francisco Solano López (1862-1870),
que dá continuidade à política autoritária dos seus antecessores e aumenta a participação
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do país nas decisões e nos conflitos na Bacia do Prata, criando problemas com o Rio de
Janeiro, Buenos Aires e com os Colorados uruguaios.
A conjuntura estava, em 1864, densa e, em abril, o Brasil, sentindo-se lesado pelo
governo Blanco uruguaio, o tardaria a fazer um ultimatum a Bernardo Berro, naquilo
que, em dezembro, desencadearia a Guerra do Paraguai (Maestri, 2014).
Considerando que as causas do conflito se centram, fundamentalmente, nas relações
interplatinas, particularmente nos conflitos que envolviam os direitos à livre navegação
nos rios Paraná e Paraguai, os interesses do Brasil no Uruguai, a ambição da Argentina
de Mitre de consolidar a unidade política recém-alcançada e as ameaças ao equilíbrio
regional colocadas por Solano López, a verdade é que a partir da década de 1980 a
Guerra do Paraguai tornou-se num objeto de estudo respeitável na Academia. Sendo
estudada sob inúmeros pontos de vista, chegou-se à conclusão de que o Reino Unido não
orquestrara a guerra, sequer que esta havia resultado do imperialismo britânico
(Menezes, 2012), antes se ligando ao violento processo de construção do Estado nacional
na Bacia do Prata (Moniz Bandeira, 1985, 1998).
O argumento aqui defendido vai ao encontro desta linha de pensamento, de modo que o
objetivo central deste artigo é compreender e analisar a conjuntura política dos Estados
envolvidos na guerra nos anos que a precederam, por forma a averiguar as motivações
regionais que desembocaram na tragédia platina do culo XIX. Pretende-se
compreender e analisar a conjuntura política dos Estados da Bacia do Prata e as suas
vinculações externas, visando elucidar as causas internas e regionais que motivaram os
desentendimentos, inserindo os acontecimentos no contexto histórico em que foram
gerados e com sentido crítico de interpretação.
Tendo em conta que a literatura é vasta e prolixa, este paper concentra-se na análise
das causas e origens do conflito. Ainda assim, e como é inviável cobrir mais de um século
de publicações, procura-se avaliar a literatura clássica sobre o enunciado e, ao menos,
introduzir o leitor nos principais debates e questões que enformam a pesquisa.
2. Abordagens à Guerra do Paraguai
As explicações das causas da Guerra do Paraguai divergem em algumas linhas de
pensamento. As memórias foram um importante meio de se abordar o conflito. No
Paraguai, este estilo floresceu por cerca de três décadas após o fim da guerra, suportando
ou condenando o legado de Solano López. Escritores dos países aliados também
contribuíram para esta forma de caracterizar o conflito, retratando o heroísmo das suas
forças vitoriosas. Identicamente, viajantes estrangeiros deixaram testemunhos
interessantes sobre a resistência paraguaia como uma epopeia pela sobrevivência
nacional e, ainda, testemunhos dando conta do estilo centralizado da liderança de Solano
López (Izecksohn, 2019).
Outra forma de abordar a Guerra do Paraguai, feita posteriormente, centrou-se nos
assuntos militares e diplomáticos, com extensa revisão do pensamento sobre o conflito,
que acompanhou a evolução da agenda política (Schneider, 1875).
De acordo com a historiografia tradicional, o ditador paraguaio Francisco Solano López
era o líder quase desequilibrado de um Estado agrícola e atrasado, autor dos erros
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militares e da condução das operações militares que custaram a vida a milhares de
soldados paraguaios. Considerado o responsável pela destruição do seu país e pelo
conflito, ao invadir o Mato Grosso, López era, também, considerado responsável pela
derrota, em lugar de pôr fim ao conflito. Esta historiografia conservadora reduziu a
explicação da guerra às características pessoais do líder paraguaio, tido como ambicioso
e magnânimo. Mas não admira que assim tenha sido, uma vez que lhe faltaram
conhecimentos metodológicos, documentação acessível e, até, sentido crítico (Doratioto,
2002).
O criticismo emergiu, entretanto, em qualquer lugar onde houvesse livre circulação de
materiais impressos. Nesses lugares, tanto para os militares que haviam participado na
guerra, quanto para as populações civis em geral, de ambos os lados, o conflito era
impopular e a sua experiência estava marcada pela violência, pela fome, pela miséria e
pelo medo constante da morte. Porém, o debate público acerca do conflito era mais
intenso na Argentina, que aqui o final da guerra havia mexido com o processo de
unificação nacional ainda em decorrência (Izecksohn, 2019). A literatura crítica produzida
na Argentina foi rica, sobretudo do ponto de vista da condenação da participação do país
na guerra, através da culpabilização da ambição do presidente Bartolomé Mitre de render
o Paraguai e grande parte do Norte da Argentina ao expansionismo brasileiro. Afinal, o
Paraguai era apresentado como um defensor do republicanismo latino-americano, contra
o despotismo monárquico, sendo certo que o Brasil expansionista teria a ambição de
submeter, à servidão, o Paraguai e a Argentina (Alberti, 1988).
No final do século XIX e início do seguinte, vozes discordantes a esta historiografia
surgiram. No Brasil, os positivistas demonstravam-se antimonárquicos, de modo que
passaram a responsabilizar o Império pelo início da guerra. No Paraguai, essa
argumentação transcendeu o período de guerra e ressurgiu mais tarde, nos trabalhos
dos revisionistas, que haveriam de se consolidar no país no início do século XX.
Em conformidade, o revisionismo sobre Solano López originou a reconstrução da sua
imagem como um estadista e um chefe militar, um líder nacionalista que lutou pela
soberania do Paraguai e sob cujo regime os interesses e as necessidades do país foram
atendidos.
A Guerra do Paraguai foi encarada como uma conspiração contra a independência
paraguaia e, na sequência, os revisionistas paraguaios retrataram o Paraguai como um
país moderno e progressista, ainda que destruído pelas ações de guerra dos Aliados.
Assim, a história surgia como um instrumento para formatar um nacionalismo que
realçava um passado glorioso e um regime político paternalista, que dava crédito à
versão histórica do grande líder paraguaio, que se transformou na base da versão oficial
paraguaia dos factos (O’Leary, 1919).
Se esta revisão da imagem de López é elaborada por razões financeiras, a mesma é feita,
também, por ditadores que, desde os anos 1930, vinham procurando legitimar-se. Rafael
Franco (1936-1937) oficializou a nova imagem de Solano López, Higino Morinigo (1940-
1948) fortaleceu-a e Alfredo Stroessner (1954-1959) transformou-a em ideologia oficial
de Estado, fazendo a apologia da ditadura lopizta. Esta historiografia, tendo
acompanhado a ascensão do autoritarismo no país, permitiu que o Partido Colorado
mantivesse a hegemonia durante a maior parte do século XX, seguindo o legado de
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López. Ademais, tendo-se disseminado pelas Forças Armadas e por outras instituições,
esta abordagem ao passado é ainda forte em diversos setores da sociedade paraguaia.
Por outro lado, o revisionismo paraguaio passou a influenciar outros países da América
Latina, designadamente após a Segunda Guerra Mundial, em conjunto com as Teorias da
Dependência e o Marxismo. Um dos aspetos mais interessantes do revisionismo histórico
foi a sua apropriação por distintas correntes de pensamento, como a esquerda peronista
argentina, os trotskyistas e as diferentes gerações de marxistas (Izecksohn, 2019).
Na década de 1960, a esquerda argentina, sob influência das Teorias da Dependência,
apropriou-se do revisionismo e acrescentou-lhe dois elementos: a influência britânica
como força motriz por detrás da Tríplice Aliança e o isolamento paraguaio como
alternativa ao livre comércio na Bacia do Prata. Do mesmo modo, o subdesenvolvimento
latino-americano e a dependência que a região desenvolvera frente aos Estados Unidos
da América (EUA) após a Segunda Guerra Mundial eram amplamente criticados,
enquanto a derrota paraguaia era encarada como epopeia, mas também como uma
antecipação das lutas do Terceiro Mundo contra os centros do capitalismo internacional
(Galeano, 2010).
Novas versões abordando a dependência argentina frente aos capitais britânicos eram
igualmente elaboradas, bem como análises do Paraguai enquanto vítima da unificação
argentina e reflexões sobre a influência britânica neste processo (Pomer, 1968). Na
verdade, à época, as interpretações do conflito do ponto de vista da Pax Britannica,
especialmente de como o Reino Unido influenciara os Aliados a manter o domínio sobre
o status quo regional, predominavam (Pomer, 1968; Peñalba, 1979).
No Brasil, o revisionismo chegou no final dos anos 1970, com análises sobre a dizimação
da população paraguaia pré-conflito, genocídios raciais ocorridos entre a população
escrava negra brasileira, desigualdades no seu sistema de recrutamento e ainda sobre a
própria resistência popular ao longo da guerra (Chiavennato, 1979), sendo certo que, se
essas interpretações contribuíram para avaliar a herança militar do país, reposicionar
heróis nacionais e incitar polémicas sobre o movimento negro brasileiro, contribuíram,
também, para o debate nacional em torno do papel que o Brasil teria a desempenhar na
América do Sul (Izecksohn, 2019).
Assim, entre os finais dos anos 1960 e a década de 1980, intelectuais nacionalistas e de
esquerda da região platina promoveram Solano López a líder anti-imperialista, num novo
revisionismo que tombaria para uma postura populista. Esta apresenta o Paraguai pré-
conflito como um país progressista, no qual o Estado havia proporcionado a
modernização do país e o bem-estar socioeconómico da população, tendo estruturado
um modelo de desenvolvimento autónomo, que substituía o modelo liberal capitalista
imposto pelos britânicos na região (Bethell 1995; Doratioto, 2002). De acordo com esta
explicação, o Brasil e a Argentina terão sido manipulados pelos interesses britânicos no
sentido de, através do conflito, extinguir o desenvolvimento autónomo paraguaio, de
modo que as origens da guerra devem ser procuradas no extraordinário envolvimento
do imperialismo britânico no Prata (Bethell, 1995).
Assim, o Paraguai era descrito como vítima da agressão capitalista e imperialista (Pomer,
1968), o Reino Unido surgia como um inimigo implacável do Paraguai e um poderoso
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aliado do Brasil, da Argentina e do Uruguai na Tríplice Aliança (Peñalba, 1979;
Chiavennato, 1979; Galeano, 2010).
Ao promover, apoiar e financiar a guerra de agressão contra López, mantida por essa
aliança, o Reino Unido pretendia, o apenas abrir o Paraguai, única economia da
América Latina a permanecer fechada, após a independência, aos manufaturados e aos
capitais britânicos, como também assegurar novas fontes de matérias-primas, visando a
falência dos suprimentos norte-americanos na sequência da Guerra Civil (1861-1865),
como, ainda, destruir o esforço de desenvolvimento autónomo que o Paraguai havia feito,
substituindo o modelo capitalista imposto pelos britânicos (Bethell, 1995). Esta
interpretação revisionista da Guerra do Paraguai tem que explicá-la no momento
histórico em que foi gerada um período, nos anos 1960-1970, durante o qual as
sociedades da América do Sul viviam sob ditaduras. Uma das formas de combatê-las era
desmoralizar os seus referenciais históricos e os seus alicerces ideológicos, daí que a
Academia tenha aceitado reproduzir conhecimento revisionista sobre o conflito,
mistificando Solano López e encontrando, no Império britânico, o responsável pela guerra
(Doratioto, 2002).
Não obstante o estímulo intelectual desta argumentação, a verdade é que pouca ou
nenhuma evidência empírica pode suportá-la, como afirma a literatura (Pla, 1970; Krauer
& Herken, 1983; Moniz Bandeira, 1985; Abente, 1995; Toral, 1995; Bethell, 1989, 1995;
Doratioto, 1989, 1998, 2002; Menezes, 1998, 2012). Se, efetivamente, o Reino Unido
tivesse sido a maior força por detrás da Guerra da Tríplice Aliança, o país teria adotado
políticas e comportamentos contrários aos que regiam as suas relações com a América
Latina no século XIX (Bethell, 1989).
Neste sentido, uma outra linha de pensamento sobre as origens da Guerra do Paraguai
considera que as mesmas assentam nas relações interplatinas, particularmente nas
disputas territoriais que ocorriam, à época, na região da Bacia do Prata, entre o Brasil e
o Paraguai e entre a Argentina e o Paraguai. Estes conflitos envolviam os direitos à livre
navegação nos rios Paraná e Paraguai; os crescentes interesses do Império do Brasil e,
especialmente, do Rio Grande do Sul, no Uruguai; o desejo da Argentina, sob a
presidência de Bartolomé Mitre, de consolidar a unidade política recém-alcançada; e as
ameaças ao equilíbrio regional de poder colocadas, sobretudo, pela política expansionista
de López.
Na verdade, se ao longo dos anos 1960-1970, o liberalismo económico estivera sob
ataque e, concomitantemente, uma visão amplamente positiva de López e da primeira
república paraguaia (1811-1870) emergira, nos anos 1980 a Guerra do Paraguai tornou-
se num objeto de estudo respeitável na Academia. A dissidência política criou um clima
intelectual favorável ao florescimento de pesquisas sobre questões específicas em busca
de novas perspetivas sobre o conflito na América Latina, proliferando ainda as
abordagens militares, enquanto em França, na Alemanha e nos EUA novos estudos eram
igualmente desenvolvidos, reforçando o interesse internacional no tema. Os académicos
abordavam-no do ponto de vista do processo de edificação do Estado nacional, refletindo
sobre o incipiente nacionalismo emergente nos países envolvidos na guerra, ao avaliar
os apelos feitos aos civis no sentido de se levantarem em defesa da sua terra. A Guerra
do Paraguai foi estudada também da perspetiva do fenómeno global da violência
intraestatal, característica da década de 1860, com a grande maioria das análises
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refutando as abordagens revisionistas (Izecksohn, 2019), enquanto se chegava também
à conclusão de que o Reino Unido não havia orquestrado a guerra, nem que esta havia
sido uma representação do imperialismo britânico (Menezes, 2012), antes se ligando ao
violento processo de construção do Estado nacional na Bacia do Prata (Moniz Bandeira,
1985, 1998).
3. Estados da Bacia do Prata às Vésperas da Guerra do Paraguai
Findos os processos independentistas do Paraguai (1811), da Argentina (1816), do Brasil
(1822) e do Uruguai (1828), inúmeras desconfianças das repúblicas recém-emancipadas
frente ao Império geraram-se.
De facto, em matéria de constituição, o Brasil contara com incalculáveis vantagens
relativamente a essas repúblicas, o que lhe possibilitara a detenção de um poder
incomparavelmente maior. A independência do Brasil não fora, como nesses Estados,
realizada contra os órgãos e os representantes metropolitanos; antes o fora pelo próprio
príncipe herdeiro do trono português. Assim, o Brasil não sofrera, como essas repúblicas,
qualquer espécie de vácuo de poder, que herdara, praticamente intactas, as
instituições administrativas, políticas e militares criadas pelos outrora colonizadores
portugueses, de modo que havia um aparato estatal cuja relativa fragilidade era
minorada pela experiência dos seus membros. Por outro lado, as regiões brasileiras não
eram economicamente autárquicas e comunicavam-se com facilidade através da
navegação marítima e fluvial
1
. Desta forma, a unificação e a centralização do novo
Estado, sob a forma imperial, ocorreram no momento mesmo da independência
(Doratioto, 1989, 1998).
No Vice-Reino do Rio da Prata a evolução foi distinta. A burguesia mercantil de Buenos
Aires, que assentava, no porto dessa cidade, o foco de irradiação de poder, não conseguiu
unificar, sob sua hegemonia, as economias das províncias do antigo Vice-Reino, para
assim construir um mercado nacional, que as oligarquias regionais reagiram, em
defesa da sua autonomia e dos seus privilégios locais, optando pela via federal
(Doratioto, 1989, 1998). Consequentemente, a fragilidade da Argentina, enquanto
Estado, era uma realidade, perante a coesão do Império do Brasil, cuja supremacia
evidenciara-se rapidamente no Cone Sul.
Do mesmo modo, as questões pendentes sobre o estabelecimento de fronteiras com o
Paraguai, a Bolívia e o Uruguai geravam desconfianças das repúblicas do Prata
relativamente ao Brasil, que aquelas acreditavam que o Brasil teria pretensões
expansionistas sobre elas e poderia, até, ser um instrumento da Santa Aliança visando a
recolonização de antigos territórios.
Na verdade, na primeira metade do século XIX, o Brasil procurou ter, frente aos vizinhos
da Bacia do Prata, uma posição hegemónica, não apenas em função das relações
económicas que mantinha com as principais potências europeias, como também graças
1
Apenas o Mato Grosso constituía um território de maior vulnerabilidade, já que, isolado por terra do resto
do Império, precisava, para com este contatar, de navegar pelo estuário do rio da Prata e pelos rios Paraná
e Paraguai.
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à sua posição privilegiada e grandeza geográficas, o que lhe angariava fatores de poder
objetivos que se convertiam em poder de negociação frente aos Estados europeus.
Também a política externa imperial relativamente aos vizinhos platinos, durante a
primeira metade do século XIX, tinha como principais orientações a demarcação das
fronteiras, especialmente com o Paraguai, a contenção da ambição da Argentina de
recompor o antigo Vice-Reino do Rio da Prata, do qual esta seria o epicentro, e o alcance
da livre navegação sobre o rio da Prata, a via de comunicação principal e mais rápida
com o distante Mato Grosso (Doratioto, 2002).
A situação interna da Argentina era muito diferente e bem mais complexa, já que, desde
a independência e o fim do antigo Vice-Reino do Rio da Prata, a república se encontrava
dividida entre os federalistas, que lutavam pela Confederação Argentina, e os unitários,
que desejavam recriar o Vice-Reino do Rio da Prata.
A fragmentação da Argentina, sobretudo atentando que as províncias do interior, Entre
Rios e Corrientes, não se consideravam subordinadas a Buenos Aires, favorecia o Brasil,
que procurava conter a ambição expansionista dos unitários. Uma simples aproximação
da Argentina aos restantes países do Prata poderia significar a reconstrução do Vice-
Reino, um Estado que faria frente ao Brasil, quer geográfica, quer demograficamente,
logo também politicamente, sendo certo que o presidente argentino, Juan Manoel Rosas
(1829-1832, 1835-1851), buscava por todos os meios alcançar a antiga união. Por esta
razão, o Brasil apoiava as províncias que compunham a Confederação, Entre Rios e
Corrientes (Menezes, 1998).
O apogeu da crise argentina ocorreu em 1856, quando Justo José Urquiza, então
governador da província de Entre Rios, após vários levantes contra Rosas, foi nomeado
presidente da Confederação Argentina de 1856 a 1860. As desavenças entre federalistas
e unitários continuaram e, em 1861, Bartolomé Mitre, governador de Buenos Aires,
liderou uma ofensiva contra Urquiza, após outra falhada, e assumiu a presidência da
República, iniciando a última e exitosa campanha para a unificação da Argentina, que
viria a terminar após a Guerra do Paraguai (Menezes, 1998).
O período pré-conflito também seria de intensa instabilidade no Uruguai.
Apenas após uma guerra de três anos entre o Império do Brasil e a Argentina seria criado
o Uruguai como Estado soberano. Graças aos seus interesses económicos na região
platina, ao Reino Unido interessava-lhe a criação do Uruguai para permitir a livre
navegação no estuário do Prata. O Brasil, por seu lado, exercia grande influência
económica na região, visando particularmente garantir a livre navegação na Bacia do
Prata e, desta forma, o acesso à Província do Mato Grosso. Para além de ser palco destes
interesses cruzados, durante a primeira metade do século XIX, o Uruguai foi também
caracterizado por forte instabilidade resultante da alternância, no poder, dos Partidos
Blanco e Colorado uma instabilidade que haveria de gerar, no país, uma guerra civil
que duraria dos anos 1830 aos finais da década de 1850 (Menezes, 1998).
Durante a presidência de Bernardo Berro, do Partido Blanco, a agitação foi intensa, muito
em função das medidas tomadas contra o Império do Brasil e os esforços de unidade de
Bartolomé Mitre no sentido de erigir um Estado nacional na Argentina, que as
Províncias da Confederação mantinham bom relacionamento com o Paraguai e com os
Blancos que estavam no poder no Uruguai. Berro estabeleceu impostos que afetavam
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diretamente produtores rurais brasileiros riograndenses que possuíam propriedades no
Uruguai e denunciou um Tratado de Comércio e Navegação assinado com o Brasil.
Simultaneamente, apoiou as forças federalistas da oposição a Mitre, que chegavam,
mesmo, a utilizar o porto de Montevidéu para o comércio.
Neste sentido, o Brasil e a Argentina encararam o apoio à oposição a Berro como uma
oportunidade para alcançar os seus objetivos, passando a suportar o Partido Colorado.
Berro sentir-se-ia ameaçado e recorreria aos federalistas argentinos e ao governo
paraguaio, nos quais encontraria apoio para suster os avanços dos Colorados.
O Paraguai, por seu lado, o apresentava uma situação interna e uma inserção regional
menos instável. Desde logo, porque uma parte do seu território surgia como alvo das
pretensões brasileiras e, outra, como alvo da ambição argentina. O Brasil disputava com
o Paraguai territórios incorporados na época da expansão colonial brasileira, enquanto a
Argentina ambicionava incorporar ao seu território parte da região do Chaco paraguaio
que era considerada, pelos argentinos, como área litigiosa mesmo antes do conflito
(Doratioto, 2002).
Ademais, o Paraguai pré-Guerra da Tríplice Aliança, da independência ao fim do conflito,
vinha sendo gerido por governos autocráticos.
Se na ditadura de José Gaspar Rodriguéz de Francia, El Supremo, o Paraguai se recusara
a inserir no mercado capitalista mundial, sendo um produtor quase exclusivo de géneros
agrícolas, cujas poucas exportações eram controladas pelo governo, e sendo um Estado
politicamente isolado do resto do mundo, com a ascensão de Carlos António López, ainda
que o governo continuasse a ser autoritário, uma visão mais progressista para o Paraguai
foi trazida, através do investimento na educação de jovens em escolas na Europa.
Ademais, Carlos López procurou uma aproximação do Paraguai aos vizinhos do Prata,
numa atitude que foi bem-recebida pelo Brasil tanto que este seria o primeiro país a
reconhecer oficialmente o país como Estado independente, em setembro de 1844. Com
a sua morte (1862) assume o poder o seu filho Francisco Solano López, então ministro
da Guerra, que continuidade à política autoritária dos seus antecessores e,
influenciado pelo ministério que havia gerido, passa a destinar grandes verbas do
governo para a preparação de um Exército forte e bem armado para o Paraguai, enquanto
adota posturas mais ativas de política externa, fazendo aumentar a participação do país
nas decisões e nos conflitos da Bacia do Prata. Consequentemente, cria problemas com
o Brasil e com Buenos Aires e opõe-se ainda aos Colorados do Uruguai, apoiando os
Blancos, grandemente por causa da utilização do porto de Montevidéu, principal via de
comunicação e de escoamento da produção paraguaia para o resto do mundo (Menezes,
1998; Doratioto, 2002).
A complexa conjuntura interna que envolvia o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai
tornava denso o cenário regional e, no intrincado jogo de interesses cruzados que se
erigia, não tardaria que o Paraguai, na sequência da intervenção brasileira na Guerra
Uruguaia, invadisse o Mato Grosso, dando início à Guerra do Paraguai.
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4. Causas e Origens da Guerra do Paraguai
O contexto de interesses entrecruzados que envolvia o Império do Brasil, a Argentina, o
Uruguai e o Paraguai ameaçava a reduzida estabilidade na Bacia do Prata, considerada a
segunda maior da América do Sul, e o Brasil, sentindo-se prejudicado pelo governo
uruguaio, não tardaria a fazer um ultimatum a Bernardo Berro, em abril de 1864, naquilo
que, em dezembro, desencadearia o conflito (Maestri, 2014).
No início dos anos 1860, grandes transformações ocorriam na Bacia do Prata,
relativamente à composição das forças políticas, económicas, sociais e institucionais, que
teriam profundos reflexos nas relações entre os Estados da região. Na Argentina, Mitre
vencia Urquiza em 1861 e ascendia à presidência da República no ano seguinte, o que
significava o triunfo dos unitários sobre os federalistas, do liberalismo sobre a economia
pré-capitalista, enquanto, por afinidade ideológica, se erguia como aliado natural da
Argentina de Mitre o Brasil.
O Uruguai surgia, ante a Argentina e o Brasil, como o desestabilizador do sistema, que
Berro, um Blanco, na presidência desde 1860, ainda que à frente de um governo
moderado, envolvia-se simultaneamente nos dois contenciosos mencionados, com o
Brasil e com a Argentina, que se fundiam na guerra na qual o Rio Grande do Sul, em
defesa dos seus interesses ameaçados, intervinha. O governo Blanco uruguaio buscava
apoio no Paraguai de Solano López, que estava determinado em marcar presença efetiva
no rumo dos acontecimentos regionais, estruturando, segundo o pensamento Blanco
uruguaio, o equilíbrio dos Estados. Esta tese significa, na prática, a intenção de preservar
os pequenos, o Uruguai e o Paraguai, das ambições e intervenções imperialistas dos
grandes, a Argentina e o Brasil e, na teoria, a possibilidade de se construir um terceiro
Estado, de dimensão e poder similares aos dois grandes, formado pelo Uruguai, Paraguai,
Corrientes, Entre Rios e, eventualmente até, as missões riograndenses (Cervo & Bueno,
2011).
Entretanto, haviam sido estruturados dois eixos, que se cruzavam em Montevidéu: um
ligando o Rio de Janeiro a Buenos Aires, outro fazendo a ligação entre Montevidéu e
Assunção. As iniciativas do governo López dispersavam-se, todavia, na direção de
Buenos Aires, Rio de Janeiro, Montevidéu e Corrientes (Cervo & Bueno, 2011).
O eixo Rio de Janeiro-Montevidéu-Buenos Aires comprometia-se a solucionar o conflito
interno do Uruguai e era coordenado pelo Brasil, com o pretexto de obter reparações
pelas violações praticadas contra os brasileiros residentes no Uruguai, porém o seu real
objetivo era restabelecer o controlo brasileiro sobre o Uruguai e salvaguardar os
interesses imperiais. Com estas finalidades, e perante o fracasso dos entendimentos de
paz, os liberais brasileiros fizeram um ultimatum ao governo Blanco de Berro. As tropas
brasileiras penetraram no território uruguaio e aliaram-se à sublevação (Cervo & Bueno,
2011).
Sendo aliado dos Blancos, Solano López opôs-se à invasão brasileira e atacou o Mato
Grosso, dando início à Guerra do Paraguai.
O segundo eixo, Montevidéu-Assunção, era o centro principal de gravitação das atenções
de Solano López. Aliás, os Blancos insistiam para que López transitasse das intenções às
ações, que, em lugar de verdadeiramente pôr em marcha o equilíbrio dos Estados,
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Solano López buscou, durante muito tempo ainda, entendimentos com Buenos Aires e o
Rio de Janeiro e apenas ameaçou responder ao ultimatum brasileiro ao Uruguai caso
fosse executado. Na Bacia do Prata, todavia, não havia Estado que lhe desse atenção,
não fosse o Paraguai o país que dispunha de forças superiores às dos vizinhos juntos
somadas. Por isso, Solano López procurava criar o seu espaço diplomático e alimentava
o sonho do Grande Paraguai. Ainda assim, o Brasil e a Argentina consideravam que o
Paraguai não faria a guerra e desqualificavam-no internacionalmente (Cervo & Bueno,
2011).
O maior conflito internacional ocorrido, até hoje, na América Latina, a Guerra do Paraguai
termina, oficialmente, com a morte de Solano López pelas tropas brasileiras, em março
de 1870, na batalha do acampamento paraguaio de Cerro Corá, ainda que em setembro
de 1866, López, após a derrota na batalha de Curuzu, tivesse já percebido que a guerra
estivesse perdida e estivesse pronto para assinar um tratado de paz com os Aliados.
Todavia, nenhum acordo fora alcançado, já que as condições de Mitre para o efeito eram
que todos os artigos do Tratado da Tríplice Aliança fossem cumpridos, condições que
Solano López não pôde aceitar. A guerra prolongar-se-ia por mais uns anos ainda até
que, com López em fuga e o Paraguai sem governo, D. Pedro II trataria de dar ao país
um governo provisório que sofreria, em 1870, renúncias sucessivas, até que em
setembro desse mesmo ano um golpe de Estado colocasse Cirilo Antonio Rivarola (1870-
1871) como presidente constitucional do país, até que em novembro de 1871 renunciaria
também na sequência de violentas manifestações e revoltas. Entretanto, Solano López,
com cerca de duzentos homens, organizava a resistência paraguaia na cordilheira do
Nordeste de Assunção. Mas o Paraguai sofria de grave escassez de armas e
suprimentos, enquanto os soldados lutavam até ao fim, nesse movimento de resistência
que lhes custaria a própria vida (Doratioto, 2002).
Efetivamente, após a invasão do Paraguai, os paraguaios transformaram-se em soldados
ferozes, pois apesar do medo das represálias autocráticas, consideravam que estariam
em pior situação nas mãos do inimigo, de tal modo que a longa resistência paraguaia,
em lugar de ser meramente atribuída à coerção do Estado, deve antes atribuir-se a
crenças profundamente enraizadas que reforçaram a sua luta pela nacionalidade contra
a Tríplice Aliança.
A resistência paraguaia, pelas terras devastadas do Paraguai, ao longo da guerra, foi-se
constituindo como um importante elemento na estruturação da identidade paraguaia.
Ainda que o conflito tenha reforçado o caráter repressivo do regime lopizta, a maioria
dos paraguaios encarava a causa de López como uma luta pela independência.
(Izecksohn, 2019).
Neste sentido, além dos problemas colocados pelo regresso à casa dos veteranos da
Guerra do Paraguai
2
, da completa destruição causada e da desorganização social
especialmente após o fim das hostilidades, com escassez de alimentos, fome, doenças,
péssimas condições sanitárias e evacuações forçadas dizimando soldados e civis dos
2
A respeito do regresso, ao Império do Brasil, dos veteranos da Guerra do Paraguai, é importante notar que,
mais do que a reinserção desses veteranos na sociedade, estava em causa a politização desse regresso, ou
seja, descortinar a qual partido político os militares pertenceriam uma vez regressados do conflito. Afinal,
as diversas famílias políticas procuravam chamar, a si, os militares regressados, provocando desconfianças
no governo conservador durante todo o ano de 1870 (Soares, 2018).
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países beligerantes e, particularmente no Paraguai, o fim do conflito tornou evidente um
sentimento até então desconhecido de todos, o nacionalismo, que veio interferir no
processo de construção do Estado nacional na Bacia do Prata.
Ainda assim, os processos de independência e de construção do Estado brasileiro
guardam em si especificidades que os distinguem da América espanhola, que se
caracterizam pela preservação da unidade territorial da América portuguesa, pela adoção
do regime monárquico e pela continuidade dinástica. Em contraposição a essa
interpretação, desenvolveu-se outra vertente historiográfica que enfoca
as ruturas e as tensões presentes nesses processos. Sem negar as
continuidades, estas revelam as diversas dimensões de um processo que
envolveu resistências, negociações e composições, partindo-se do
pressuposto de que a aspiração de independência, a nação e a unidade
territorial não surgiram juntas e que, ao longo da primeira metade do século
XIX, o processo de construção do Estado nacional envolveu o enfrentamento
entre as medidas centralizadoras e as reações centrífugas, as quais
expuseram as tensões e os conflitos que envolviam a imposição do projeto
que se estabelecia a partir do centro político do novo Império.
Estes movimentos evidenciam
a ocorrência de divergências relativamente ao encaminhamento que vinha
sendo dado ao processo e à existência de projetos alternativos que atendiam
a aspirações não contempladas pela continuidade, ou mesmo pelo sentido das
mudanças em curso. Nas primeiras décadas do século XIX, diante do
enfrentamento dos desafios da construção do Estado nacional brasileiro, as
formas assumidas pelas negociações entre o poder central que se constituía,
os diferentes setores da sociedade e as várias províncias brasileiras
envolveram tensões, as quais espelhavam a inconformidade com o sentido
das mudanças, envolviam questões políticas e demonstravam insatisfação
com a constituição dos instrumentos de poder específicos do Estado (Costa &
Miranda, 2010, p. 72).
Considerações Finais
Considerando a linha interpretativa seguida por este artigo, de acordo com a qual as
causas da Guerra do Paraguai se fundam nas relações interplatinas, especialmente nas
disputas que então ocorriam, na Bacia do Prata, entre o Brasil e o Paraguai e entre a
Argentina e o Paraguai, não tendo o conflito sido gerado pelos britânicos, tampouco sido
uma imagem do seu imperialismo (Menezes, 2012), antes resultando do violento
processo de construção do Estado nacional no Prata (Moniz Bandeira, 1985, 1998), é
possível afirmar-se que os objetivos propostos inicialmente foram alcançados.
Tendo os acontecimentos sido inseridos no contexto histórico em que foram gerados, os
mesmos foram analisados sob o ponto de vista das motivações individuais e regionais
dos Estados envolvidos no conflito, nos anos que o precederam, por forma a elucidar as
causas internas e regionais que motivaram os desentendimentos e desembocaram na
Guerra do Paraguai, em 1864.
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Na realidade, as conjunturas interna e regional dos Estados que haveriam de se defrontar
na Guerra do Paraguai adensavam-se e, paralelamente, no início dos anos 1860, grandes
transformações concorriam para esse fenómeno.
Enquanto, na Argentina, os unitários venciam os federalistas, com Mitre, no Uruguai,
Berro envolvia-se em dois contenciosos, um com o Brasil e outro com a Argentina, que
se fundiam na guerra na qual os riograndenses, em defesa dos seus interesses,
intervinham. O governo Blanco uruguaio, em guerra contra os Colorados, buscava apoio
em Solano López, que estava determinado em marcar presença no rumo dos
acontecimentos regionais, de acordo com o equilíbrio dos Estados e o sonho
expansionista e militarista de erigir o Grande Paraguai (Doratioto, 2002). Dependente de
uma saída para o mar, o Paraguai concentrava, no porto de Montevidéu, os seus
interesses comerciais, designadamente na estruturação de um eixo Montevidéu-
Assunção, que a debilidade económica paraguaia frustrara em 1865 e voltaria a frustrar
no pós-guerra, porquanto o projeto continuava a existir, todavia a debilidade económica
guarani também. Buscando ultrapassar esta situação, a fim de sanar as dificuldades
económicas e, alcançando aquela saída, obter os recursos necessários ao seu
desenvolvimento, o Paraguai ambicionava edificar um Estado. Este projeto contara,
desde logo, com o apoio das províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes, mas
chocara com os interesses da burguesia mercantil de Buenos Aires e do Império do Brasil
(Moniz Bandeira, 1998).
Como resultado, o Brasil, procurando restabelecer o controlo sobre o Uruguai em guerra
civil e salvaguardar os interesses imperiais, e uma vez falhados os entendimentos
conducentes à paz, fez um ultimatum a Berro, em abril de 1864, na sequência do qual
adentrou em território uruguaio, para estabelecer um governo que lhe fosse favorável
o que, desencadeando a ira do Paraguai, levou-o a invadir o território brasileiro do Mato
Grosso e o território argentino contíguo, pretendendo chegar ao Rio Grande do Sul.
Constituindo a Tríplice Aliança desde maio de 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai
enfrentaram militarmente o Paraguai.
Envolvendo as Forças Armadas num conflito que não poderia vencer, López conseguiu
fazer a resistência paraguaia prolongar-se por cinco anos ainda, embora, em setembro
de 1866, tivesse percebido que a guerra estivesse perdida e estivesse resignado a
assinar um tratado de paz com os Aliados. Porém, nenhum acordo fora alcançado, que
as condições impostas eram inaceitáveis para López (Doratioto, 2002). Assim, após a
invasão do Paraguai, os paraguaios transformaram-se em ferozes soldados. É verdade
que lutavam por medo de represálias autocráticas. Mas lutavam, também, e sobretudo,
porque consideravam que nas mãos do inimigo estariam em pior situação, de modo que
a resistência paraguaia, em lugar de atribuir-se somente à coerção do Estado, deve antes
atribuir-se a crenças enraizadas que reforçaram a sua luta pela nacionalidade contra os
Aliados.
Na verdade, a Guerra do Paraguai marca o ponto alto numa longa tradição regional de
violência, que, na Bacia do Prata, após as independências, viveu-se num estado de
conflituosidade interna e regional permanente, que acompanhava a integração da região
na economia capitalista mundial e que, sobretudo, refletia o processo de construção dos
Estados nacionais, a partir de duas visões da soberania nacional, a centralização estatal
e o federalismo. A Guerra do Paraguai é, assim, um importante elemento na estruturação
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das identidades nacionais (Izecksohn, 2019). Além da destruição causada, das inúmeras
perdas materiais e, sobretudo, humanas, e da desorganização social, o fim do conflito
vem tornar claro um sentimento até então desconhecido de todos, o nacionalismo, que
passa a interferir no processo de construção do Estado nacional na Bacia do Prata.
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CIRCUITOS GOVERNATIVOS E OS DIFERENTES PROJETOS POLÍTICOS NO
CONTEXTO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
ROBERTA STUMPF
rstumpf@autonoma.pt
Professora Associada e subdiretora para a investigação do Departamento de História, Artes e
Humanidades da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigadora integrada do
CIDEHUS.UAL. Seus temas de investigação incluem História das dinámicas administrativas nos
Impérios Ibéricos e História social do Brasil (séculos XVII e XIX). Publicou vários capítulos de
livros, artigos em revistas académicas e tem 2 livros monográficos e 6 livros coletivos. Dentre os
quais: Las distancias en el gobierno de los imperios ibéricos: Concepciones, experiencias y
vínculos (Casa de Velázquez, 2022) [com G. Gaudin] e 1822. Das Américas ao Brasil (Casa das
Letras, 2022) [com N.G. Monteiro].
Resumo
O objetivo neste texto é fazer um exercício de reflexão exploratório que partiu de uma
hipótese de trabalho: a importância de se relacionar os acontecimentos vividos no Império
português, entre 1808 e 1822, quando a capital passou da cidade de Lisboa para a cidade do
Rio de Janeiro, a partir da análise dos circuitos imperiais governativos e de comunicação
política. Frente às contingências trazidas pela invasão napoleônica na Península Ibérica, trata-
se de pensar o Rio de Janeiro como o novo centro da rota de peregrinação administrativa que,
se por um lado atendeu às necessidades governativas da monarquia portuguesa, por outro
desagradou parcela das elites luso e luso-brasileiras que irá converter tais desafetos em
reivindicações políticas.
Palavras-chave
Independência do Brasil, circuitos administrativos, Rio de Janeiro, reivindicações políticas.
Abstract
The aim of this text is to carry out an exploratory reflection exercise based on a working
hypothesis: the importance of relating the events that took place in the Portuguese Empire
between 1808 and 1822, when the capital moved from the city of Lisbon to the city of Rio de
Janeiro, by analysing the imperial circuits of government and political communication. Faced
with the contingencies brought about by the Napoleonic invasion of the Iberian Peninsula, Rio
de Janeiro is seen as the new center of the administrative pilgrimage route which, on the one
hand, met the governmental needs of the Portuguese monarchy and, on the other, generated
a great deal of disaffection on the part of the Portuguese and Luso-Brazilian elites, who would
turn these grievances into political demands.
Keywords
Brazilian independence, administrative circuits, Rio de Janeiro, political demands.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 64-79
Circuitos governativos e os diferentes projetos políticos no contexto
da Independência do Brasil
Roberta Stumpf
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Resumen
El objetivo de este texto es realizar un ejercicio exploratorio de reflexión a partir de una hipótesis
de trabajo: la importancia de relatar los acontecimientos que tuvieron lugar en el Imperio
portugués entre 1808 y 1822, cuando la capital se trasladó de Lisboa a Río de Janeiro, analizando
los circuitos imperiales de gobierno y comunicación política. Frente a las contingencias provocadas
por la invasión napoleónica de la Península Ibérica, Río de Janeiro es visto como el nuevo centro
de la ruta de peregrinación administrativa que, si por un lado satisfacía las necesidades de gobierno
de la monarquía portuguesa, por otro, generaba una gran desafección por parte de algunas élites
portuguesas y luso-brasileñas, que convertirían estos agravios en reivindicaciones políticas.
Palabras clave
Independencia de Brasil, circuitos administrativos, Río de Janeiro, reivindicaciones políticas.
Como citar este artigo
Stumpf, Roberta (2024). Circuitos governativos e os diferentes projetos políticos no contexto da
Independência do Brasil. Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 - Portugal
e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.5
Artigo recebido em 15 de Janeiro de 2024 e aceite para publicação em 31 de Janeiro de
2024
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CIRCUITOS GOVERNATIVOS E OS DIFERENTES PROJETOS
POLÍTICOS NO CONTEXTO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
ROBERTA STUMPF
O estudo da independência do Brasil invoca muitos temas, alguns trabalhados há muito,
outros inéditos até poucos anos atrás quando a historiografia deu um salto significativo
na diversificação das temáticas, patente desde logo nas publicações que acompanharam
as comemorações do bicentenário desta efeméride, em 2022. Ainda assim, é seguro dizer
que muitas das opiniões consagradas permaneceram irrefutadas. Dentre estas, a ideia
de que a transposição da Corte e da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em
1808 teve uma importância crucial para o evento que convencionamos datar de 7 de
setembro de 1822
1
. Como é sabido, o príncipe regente D. João na primeira parada que
fez no continente americano, em Salvador, decretou a abertura dos portos dando por
terminado o exclusivo colonial metropolitano, ou seja, o monopólio comercial que
Portugal mantinha com o Brasil (Novais, 1986 [1979]; Dias, 2009 [1972]). Não se tratava
de uma solução momentânea ou
um remédio passageiro para a crise ou colapso da balança de comércio
portuguesa. (…) A abertura dos portos brasileiros aos navios e negociantes
britânicos, eufemisticamente tratados na Carta Régia como «potências, que
se conservam em paz, e harmonia com a minha Real Coroa» consolida um
movimento irreversível de transição de um sistema de comércio internacional
protegido pelo regime de exclusivo colonial para um sistema de comércio livre
sem exclusivos de qualquer espécie (Cardoso, 2008)
2
.
1
Os títulos dos livros publicados no Brasil no intervalo de 2020-2022 dão uma ideia das inovações propostas.
Tal diversidade temática pode ser observada também no fórum proposto pela Revista Almanack que a cada
semana do ano de 2022 publicou um texto breve de historiadores que analisam a independência sob
perspetivas diversas, algumas bastante inovadoras em particular para o público mais amplo ao qual estava
destinado. Um dos temas tratados está a incerteza desta data como marco da independência do Brasil, o
que não deixa de ser mais um exemplo de como a história, e suas efemérides, são muitas vezes
rememoradas como dados efetivos sem que saibamos se na altura dos acontecimentos eram ou não
consensuais. Ver: Kraay, H. (2010). A invenção do sete de setembro, 1822-1831. Almanack Braziliense,
n°11, pp. 52-61.
2
Cardoso, J. (2008). A abertura dos portos do Brasil em 1808: dos factos à doutrina. Ler História, nº 54.
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.2342.
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A Inglatera, beneficiada com tal medida, viu-se definitivamente favorecida em 1810
quando muitos tratados o assinados com Portugal, como o Tratado de Amizade,
comércio, e navegação
3
.
Outras medidas régias se seguirão reforçando a tendência voltada para a alteração do
estatuto económico e político, do Brasil, cuja situação anterior muitos passarão a
designar de colonial”
4
. Em 1815, este é elevado à categoria de Reino Unido com Portugal
e Algarves, fazendo com que a Casa real portuguesa se tornasse uma monarquia
composta, ou seja, abrangendo diversos reinos com as suas instituições próprias, à
semelhança do que era a espanhola que, com a queda de Napoleão Bonaparte e o
Congresso de Viena, seria restaurada juntamente com outras monarquias européias.
Neste tortuoso contexto iniciado em 1807, ou em 1777, se quisermos retomar outras
propostas de cronologia de forma a abarcar a crise do Antigo Regime (Novais, 1986
[1979]), as mudanças eram sentidas de maneiras diversas nas capitanias e territórios
da América portuguesa. Afinal, mesmo depois do Rio de Janeiro ter se tornado a capital
do Império luso, e de lhe ser outorgado o título de Reino que o igualava estatutariamente
a Portugal, o Brasil continuou a carecer de coesão política. Na verdade, mesmo após a
proclamação da sua independência em relação a Portugal, podemos dizer que nem todos
os atores politicos partilhavam deste projeto que se saiu vitorioso.
Os movimentos separatistas que se seguiram ao 7 de setembro de 1822 não foram
poucos, e muitos contaram com um apoio socialmente mais vasto. O primeiro, conhecido
como Confederação do Equador de 1824, recuperou alguns dos anseios da Revolução
Pernambucana (1817), como a defesa do republicanismo regional, tendo suas ideias sido
apoiadas também em algumas províncias vizinhas (Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte
e Piauí) nas quais parcela da elite vai aderir à proposta de constituir um Estado
independente no norte do país.
Tal como esta, outras manifestações emergirão questionando a legitimidade do Império
brasileiro, com a capital no Rio de Janeiro, a qual não se sentiam pertencentes. O período
regencial (1831-1840), após o retorno a Portugal de D. Pedro I (IV de Portugal) e a
minoridade de seu herdeiro D. Pedro II, foi um contexto favorável para a manifestação
de eventos de oposição a um Império que não correspondia aos sentimentos políticos de
muitos. Ainda que seja difícil generalizar, pode-se dizer, considerando os espaços
geográficos donde ocorreram tais levantes, que era nas províncias mais distantes do Rio
de Janeiro que os descontentamentos se intensificaram, devido a questões que iremos
abordar adiante. Cada um deles, evidentemente, apresentou características muito
particularidades sobretudo se considerarmos as razões mais imediatas para a sua
ocorrência. Todavia, as contestações indicam na generalidade a discordância referida
acima que deve ser devidamente relacionada, por um lado, a um contexto anterior a
1808 e, por outro, ao que vai sendo gestado com a introdução de uma nova dinâmica
político-administrativa. A primeira revolta a insurgir a partir da regência é designada por
Sabinada e teve como palco a Bahia em 1837-38. Com alguma simultaneidade, eclode
3
Tratado de Amizade, commercio, e navegação entre sua alteza real o príncipe regente de Portugal e sua
magestade britannica. Assignado no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1810 (1810). Biblioteca Brasiliana
e Guita José Mindin. https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7405?locale=en
4
Qualificação que, por influência do mercantilismo e depois da economia política, muitos faziam antes,
mas que nunca foi designação oficial.
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no Maranhão a Balaiada (1838-41), assim como na Província do Grão-Pará, em 1835-
40, tem lugar a Cabanagem, todas elas sendo reprimidas e vencidas pelo centro político.
A mais longa avança no Segundo reinado no extremo sul do país: era a Farroupilha, em
São Pedro do Sul, entre os anos de 1835-45.
A ocorrência de tais eventos tem sido lembrada pela historiografia para realçar sua
discordância com a tese de que a independência do Brasil foi um processo linear, tido
como “natural”, como se o questionamento da colonização portuguesa, acentuado no
início do século XIX, permitisse que se contemplasse, em toda a sua plenitude, uma
identidade brasileira existente. Esta análise histórica, crédula desta espécie de
predestinação, desconsidera evidentemente a existência, neste contexto e nos
anteriores, de diversos projetos políticos que traduziam interesses diversos e refletiam a
coexistência de identidades políticas regionais ou locais, contrárias a qualquer alternativa
que abrangesse a totalidade das províncias.
Por isso, embora possamos fazer uma ligação entre os eventos que ligam os
acontecimentos que se iniciam em 1808 e “terminam” com aquele ocorrido em 1822 (ou
em 1825, quando a independência é reconhecida por Portugal), convém estar atento
para o fato de que tal percurso não foi linear, e muito menos “óbvio”, pois eram muitos
os projetos políticos que gravitavam e eram tidos, de facto, como possíveis. Se o
desfecho foi o que conhecemos, o mais importante é saber porque se saiu vitorioso não
obstante fosse talvez o mais inesperado
5
, ao menos se levarmos em conta o desenrolar
dos acontecimentos na América espanhola. Ali a crise do início do século XIX foi vivida
diferentemente e levou a desintegração político-administrativa de seu território, não sem
a ocorrência de conflitos e guerras locais como aqueles vividos na Grande Colómbia
6
, ou
no território conhecido à altura como Vice-reinado do Prata. É verdade que, como
explicou o historiador João Paulo Garrido Pimenta, o exemplo da América vizinha serviu
para que as autoridades bragatinas direcionassem a sua política de forma a evitar que
se passasse o mesmo do lado da América portuguesa, o que revela uma influência ao
revés que contribuiu para que se investisse na unidade de um todo (Pimenta, 2015). Esta
perspectiva comparada entre as independências latino-americanas ajuda a pensar o caso
brasileiro, sobretudo porque é possível formular com mais evidência o problema que
colocamos, e que é anunciado faz muito tempo pela historiografia. Ou seja, porque,
no processo das independência das colónias ibéricas no continente americano, a América
hispânica se fragmentou em diversas unidades políticas autónomas enquanto o Brasil,
ao romper os laços políticos com Portugal, não se dividiu? Os eventos de contestação,
referidos parágrafos antes, devem ser compreendidos dentro do contexto em que
emergiram, porém é inegável que também refletem uma pertença política a territórios
que constituíram parte do Império do Brasil mas que poderiam (e lutaram por isso) ter-
se configurado como entidades políticas independentes. Estes sentimentos que traduziam
um amor à terra tria) e que mais tarde, ao serem politizados, evidenciam uma
oposição à metrópole portuguesa, como também a um todo brasileiro com centro no Rio
de Janeiro, não são exclusivos destas províncias (Bahia, Maranhão, Pará e São Pedro do
Sul). Estudos sobre a Inconfidência mineira (1789), a Conjuração carioca (1791) e a
5
Cf. Um texto de divulgação, irónico e contrafactual: Carvalho (2008).
6
Ver artigo de Nancy Gomes neste Dossier.
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Inconfidência Baiana
7
(1798) mostram que estavam presentes, com maior ou menor
intensidade, em outra capitanias (Jancsó & Pimenta, 2000; Stumpf, 2010, 2014).
Entretanto, o objetivo deste texto não é analisar este processo de emergência do Estado
nacional brasileiro seguindo o viés das identidades políticas, intensamente estudadas,
ainda que necessariamente devamos dialogar com esta perspectiva analítica. Tendo
como ponto de partida a questão que acima se colocou, ou seja, a artificialdade do Brasil
enquanto um todo político coeso, entendemos que parte deste processo deve ser
compreendido considerando também as dinâmicas administrativas introduzidas no
Império português depois de 1808 quando o Rio de Janeiro tornou-se a sua capital.
O que aqui se apresenta é uma hipótese de trabalho que nos levou a este estudo ainda
em andamento, ao qual daremos continuidade sobretudo aprofundando a pesquisa
documental a ser realizada em arquivos de Lisboa e do Rio de Janeiro, cidades que
continuam a dividir, em decorrência destes anos de 1808-1822, as fontes produzidas no
passado pelas instituições centrais da monarquia portuguesa.
A América Portuguesa Acéfala e as Instituições Locais e Imperiais
Quando analisamos as dinâmicas administrativas do Brasil ao longo do período em que
foi uma colónia portuguesa, vemos que ele nunca teve de fato um centro, tal como existia
em outra região do ultramar português. Refiro-me ao Estado da Índia, em cuja capital,
Goa, foi instalada a maioria das instituições centrais existentes também em Lisboa, mas
que nunca existiram, até 1808, na América Portuguesa. Enquanto os assuntos decisivos
ao funcionamento do espaço asiático eram resolvidos maioritariamente por lá, nas duas
partes da América portuguesa, o Estado do Grão Pará e Maranhão e o Estado do Brasil,
a questão dava-se diferentemente. A ausência de um poder centralizado, para onde as
rotas de comunicação com as suas diversas capitanias confluíriam, obrigou as
autoridades locais (sobretudo as camarárias), e as regionais (situadas nas capitanias) a
manter com constância uma comunicação direta com os tribunais e conselhos régios em
Lisboa.
A partir de 1548, no caso do Estado do Brasil, a sua maior autoridade, o governador-
geral, mais tarde intitulado vice-rei, residia em Salvador e no Rio de Janeiro quando este,
em 1763, passou a ser a sua capital. Nestas cidades se sediava igualmente o mais alto
oficial da Justiça, o ouvidor-mor, e o da Fazenda, o provedor-mor, que assim como aquele
detinham jurisdições sobre todo o território português na América. A extensão de seus
poderes era enorme apesar de somente no Setecentos a colonização portuguesa avançou
para o interior do continente (sertões), criando novos municípios e instalando câmaras à
medida que eram fundadas novas capitanias como as de Minas Gerais, Goiás, Mato
Grosso, de extração aurífera. Até então, o Estado do Brasil limitava-se praticamente à
zona costeira e, mesmo assim, algumas das atribuições contidas nos regimentos
entregues a estas autoridades eram impossíveis de cumprir.
Os oficiais de maior escalão na hierarquia administrativa encontraram dificuldade em
assumir uma função centralizadora, na qual pudessem responder pelo poder régio, ou
7
Ou, como outrora foi conhecida, a Revolta dos Alfaiates. Hoje tem prevalecido outra denominação: Revolta
dos Búzios.
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mesmo servir como intermediários entre as demais autoridades ultramarinas e aquelas
do reino. No caso da administração civil, os que estavam imediatamente abaixo dos
oficiais residentes na capital, ou seja, os governadores e provedores das capitanias e os
ouvidores, das comarcas, foram assumindo maior protagonismo e autonomia e, tal como
os oficiais camarários, dirigiam-se sem intermediários a Lisboa. Certamente que se
comunicavam também entre si e com os oficiais na Bahia e mais tarde no Rio de Janeiro.
Entretanto, o que estamos querendo sublinhar é que estes últimos nunca tiveram na
prática a importância que julgamos que haveriam de ter por ocuparem cargos de topo
na hierarquia da administração portuguesa no Brasil.
Na verdade, nas capitais do Estado do Brasil sequer foram instaladas instituições e órgãos
que as tornassem um polo central de governação frente a todas as terras que estavam
sob a sua jurisdição. Nestas, os oficiais e requerentes acabavam por remeter os seus
papéis às autoridades de Lisboa, que serviam no Conselho Ultramarino, nos tribunais de
justiça de segunda e terceira instância, a Casa de Suplicação e o Desembargo do Paço,
e na Casa dos Contos/Conselho da Fazenda, entre outros. Alguns exemplos desta
comunicação política que ligava os dois lados do Atlântico ajudam a perceber melhor esta
dinâmica governativa.
Desde que foi criado o cargo de provedor-mor em Salvador, antes mencionado, em seu
regimento estava determinado que uma de suas obrigações era a de conferir os livros
com a escrituração das contas dos almoxarifes (cobradores de impostos) e dos
tesoureiros de todas as capitanias na América portuguesa, inclusive as capitanias
donatárias. Não podendo se deslocar a todas elas, os livros deviam chegar até ele para
então seguir para a Casa dos Contos em Lisboa, onde seriam conferidos e, se aprovados,
passadas as cartas de quitação que autorizavam aqueles oficiais menores da Fazenda a
continuar servindo à monarquia. então os livros regressavam às terras americanas,
numa peregrinação contínua. Todavia, este roteiro não era seguido à risca, pois os livros
não passavam pela Bahia, indo diretamente das capitanias para o Reino. Portanto, a
intermediação do provedor-mor, na capital do Brasil, não era observada. É digna de nota
a centralidade de Lisboa também na fiscalização das contas ultramarinas, o que se
procurou manter mesmo com a criação das Juntas de Fazenda (a partir de 1760) que
nas capitanias vieram a substituir lentamente as provedorias (Carrara, 2016; Stumpf,
2017), mas que continuaram a mandar para a Europa a sua contabilidade.
Esta comunicação com o Reino era intensa também quando foi preciso acionar os
tribunais de justiça de segunda e terceira instâncias. Em todo o Estado do Brasil, até à
criação do segundo Tribunal da Relação, no Rio de Janeiro, em 1751, existia um único
tribunal de segunda instância, localizado na Bahia. Concebido em 1588 passou a
funcionar somente em 1609 (Schwartz, 1979, 49). A Justiça em grande medida dependia
da atuação dos juízes camarários (juiz ordinário ou juiz de fora) e dos ouvidores que
atuavam, respectivamente, nas vilas e comarcas. No caso de existir recurso para um
tribunal superior, teriam que se deslocar a Salvador, ou ao Rio de Janeiro a partir da
segunda metade do século XVIII, ou enviar para estas localidades a papelada referente
às demandas em causa. Os homens, e os papéis, teriam que percorrer caminhos de difícil
acesso por terra, ou optar pela navegação fluvial e costeira por vezes mais difícil e
demorada do que se fossem diretamente a Lisboa. o surpreende que preferissem
“acionar” algum tribunal da capital lisboeta.
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Este fluxo comunicacional, ligando as terras ultramarinas a esta cidade, era mesmo
indispensável no caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão cujo Tribunal da Relação
foi criado em 1813. O padre António Vieira, quando ali missionava, afirmava que “mais
fácil se vai da Índia a Portugal do que desta missão ao Brasil”, ou seja, a Salvador da
Bahia (Muhana & Kantor, 2022, 32). Não é preciso dizer muito mais para explicar porque
os súditos residentes no imenso Estado do Grão-Pará e Maranhão tinham uma conexão
muito ativa e próxima com a Casa de Suplicação em Lisboa, que actuava como repectivo
tribunal superior.
Com distâncias tão vastas no interior da América, como entender a morosidade
portuguesa na criação de uma malha judiciária densa que atendesse de forma mais célere
(e eficaz) às demandas dos súditos e, ao mesmo tempo, estabelecesse uma ordem mais
compatível com os interesses da metrópole? Porque se preservou na América portuguesa
durante séculos uma comunicação institucional com Portugal que se chocava com o
“estilo” de governação implementado no Estado da Índia, muito mais autónomo
administrativamente? Seria esta opção governativa implementada em terras brasileiras
considerada na altura ideal, não tendo sido adotada nas Índias orientais porque estas
terras eram por demais distantes da Europa?
Como exercício analítico vale a pena lembrar que o Tribunal da Relação da Bahia foi
criado no período filipino como parte de uma reforma judicial que visava dinamizar a
justiça em Portugal e em todas as suas terras ultramarinas (Schwartz, 1979, 35-54). Se
esta forma de governação castelhana, que pressupunha a criação de instituições e o
aumento do número de letrados na ativa, perpetuou-se na monarquia vizinha, não
sabemos. Mas o fato é que na América espanhola no início do século XIX havia 12
audiencias o que, não sendo o equivalente aos Tribunais da Relação portugueses (o
terceiro dos quais criado na América em 1813) permite estabelecer muitas analogias
(Cunha & Nunes, 2016, 4). Claro que os tempos de comunicação também são aqui
relevantes.
À América pertence a capital do Império
Toda esta dinâmica governativa evidencia com exatidão aquilo que António Manuel
Hespanha se referiu como sendo o “Império do papel” . Trata-se de perceber, por um
lado, a administração portuguesa como estando fortemente pautada na produção e na
leitura de um volume gigantesco de documentos escritos e, por outro, de entender que
estes papéis percorriam caminhos que, em muitos casos, especialmente no que se refere
à governação da América portuguesa, tinham como ponto de chegada, e de partida, as
instituições sediadas em Lisboa. Perpetuar continuadamente o fluxo destas rotas não
fazia da monarquia lusa um Estado absolutista, centralista e controlador. Não temos
dúvida que às autoridades ultramarinas era concedida autonomia de atuação para que
conseguissem administrar os territórios para onde eram designadas, respeitando as
especificidades locais e as circunstâncias particulares dos contextos em que se
encontravam. Sem esta parcela de autonomia não poderiam primar pelo “bom governo”,
premissa obrigatória entre as monarquias modernas. Mas esta autonomia não impediu,
e por vezes estimulou, que Lisboa acompanhasse com atenção o que ocorria em suas
terras distantes, controlando seus oficiais a partir da adoção de meios de fiscalização que
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a historiografia prefere qualificar de “ineficazesrecorrendo, erroneamente, a critérios
anacrónicos.
Porém, a Coroa portuguesa deteve o privilégio de conduzir com exclusividade temas da
governação que evitou delegar a seus representantes. Nos referimos muito
concretamente ao sistema de concessão de graças e mercês absolutamente estratégico
para o reforço contínuo do poder do monarca. De origem medieval, inseria-se na lógica
do dom e contra-dom, cuja reciprocidade (entre partes desiguais, entretanto) contribuía
para estreitar os laços que ligavam, neste caso, os monarcas aos seus súditos, de
qualquer condição que fosse. Se o fazer justiça era o dever mais importante do poder
régio, os reis deviam agir como os juízes que davam a cada um o que lhe pertencia por
direito. O sistema de mercês, também denominado de justiça distributiva, só poderia ser
protagonizado por eles ainda que estivessem assessorados por funcionários de alto
escalão que pertenciam a órgãos e instituições que gravitavam ao redor da corte
(Hespanha, 1993; Olival, 2001).
Uma parte considerável da documentação pertencente ao Arquivo do Conselho
Ultramarino, órgão consultivo criado em 1642 e que detinha a jurisdição sobre a
totalidade dos assuntos dos territórios ultramarinos, é composto por petições. Trata-se
de solicitações ao monarca de mercês diversas: senhorios jurisdicionais, títulos
honoríficos, cargos civis, patentes militares, entre outros pedidos endereçados a este
Tribunal, em nome de coletividades (corpos) ou de indivíduos residentes no Ultramar.
A tais pedidos normalmente eram anexados documentos comprovatórios como, por
exemplo, dos serviços prestados, dos direitos anteriormente adquiridos, de forma a dar
legitimidade aos suplicantes e, se fosse feita justiça, a concessão da mercê requerida.
Assim, estes processos podiam se estender por muitas páginas e, se por ventura fosse
preciso obter mais alguma informação, ou ouvir a opinião de algum interveniente não
mencionado, o Conselho Ultramarino escrevia às autoridades no Brasil dando ordens para
remeterem a Lisboa os documentos (e os pareceres) em falta.
Este circuito permanente de informações a cruzar o Mar Oceano já foi matéria de alguns
trabalhos historiográficos relativos à comunicação política estabelecida entre a metrópole
portuguesa e as suas colónias na América (Fragoso & Monteiro, 2017; Slemian &
Fernandes, 2022). Todavia, mais raros são os estudos que procuram entender esta
questão relacionando-a com as mudanças trazidas na arquitetura institucional após a
transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1807/1808.
Neste período de transformações estruturais que culminaram na independência do Brasil,
apesar de que outros projetos políticos viessem a ser aventados como alternativa, foram
replicadas na nova sede do Império muitas instituições existentes no Reino português,
todas relativas à alta administração. Sem querer esgotar a lista, lembramos algumas:
- o Desembargo do Paço;
- a Casa da Suplicação (que levou a extinção da Relação do Rio de Janeiro);
- a Mesa da Consciência e Ordens (tribunal responsável por assuntos eclesiásticos que,
por exemplo, realizava as provanças para a concessão de hábitos das Ordens Militares);
- o Conselho Supremo Militar e de Justiça;
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- a Chancelaria-mor do reino;
- o Erário Régio (criado por Pombal em 1761);
- a Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação;
- a Intendência de Polícia;
- as Secretarias de Estado
8
.
A recriação destas e outras instituições exigiu a montagem de um aparato administrativo
que contou com recursos humanos locais, mas que procurou sobretudo inserir uma parte
significativa da comitiva que acompanhou o príncipe regente D. João ao Rio de Janeiro,
homens de estirpe social e grande experiência de governo. Foram anos de grande
agitação para tornar o Rio de Janeiro a capital do Império, administrativa ou
urbanisticamente falando (Malerba, 2000; Cavalcanti, 2004; Schultz, 2008). Não
obstante todos estes temas merecerem atenção pela sua relevância ou mesmo pelo
ineditismo daquele contexto histórico, nos interessa abordar aqui como o sistema de
mercês referido acima, central ao funcionamento e à legitimidade do poder régio,
independentemente de onde este se encontrava, foi reajustado às novas circunstâncias
e quais foram as consequências políticas que esta mudança pode ter trazido.
Embora tivesse ocorrido uma transposição ou duplicação da administração central na
nova capital do Império, como antes foi referido, o Conselho Ultramarino, enquanto órgão
consultivo a deliberar sobre assuntos das terras além-mar, não foi recriado na América
portuguesa, por razões evidentes. Sua função deixou de ser necessária quando a
metrópole passa a estar sediada em uma das suas colónias. Assim, o Desembargo do
Paço e a Mesa da Consciência e Ordens passaram a assumir, a partir de então, o papel
que antes o Conselho Ultramarino desempenhava em matéria de graças e mercês,
recebendo os requerimentos e as solicitações dos súditos portugueses de todas as
províncias da América (próximas do Rio de Janeiro, ou distantes, como a Província do
Maranhão).
Após a instalação da Mesa do Desembargo do Paço, por alvará de 1º de Agosto de 1808,
foram ali criados diversos ofícios criteriosamente regulados no que respeita ao valor de
seus emolumentos, tal como ocorreu no velho reino em 1754 quando, pela primeira vez,
se legislou com vista a controlar os rendimentos (ordinários e extraordinários) dos oficiais
régios, em Portugal e nas conquistas. Os valores arbitrados importam menos para nós
do que a descrição dos serviços a serem efetuados pelo oficial-menor, pelos dois oficiais
papelistas e pelo praticante, dentre os quais passar “alvarás de mercê de quaisquer
ofícios (…) e cartas de propriedade destes ofícios, em que se houverem de incorporar os
ditos alvarás de mercê e bem assim de quaisquer outros que se proverem pelo
expediente da Mesa”
9
(Stumpf, 2018, 356).
8
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarino, Secretaria de Estado dos Negócios
do Brasil antiga Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, e Secretaria de Estado da Guerra e Negócios
Estrangeiros.
9
Câmara dos Deputados (s.d.). Legislação Informatizada - Alvará de de Agosto de 1808 - Publicação
Original. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-40217-1-agosto-1808-
572273-publicacaooriginal-95390-pe.html
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A circulação de documentos neste período foi objeto de estudo de raros trabalhos que
normalmente estão voltados para o território brasileiro, ou seja, para o fluxo interno dos
papéis, entre as capitanias/províncias e a sede do Império no Rio. Praticamente não
existem análises que tentem explicar as vias de circulação que ligavam o restante do
Império, ou seja, Portugal, Madeira, Açores, colónias na África e domínios no Estado da
Índia com a nova capital, Rio de Janeiro. Vamos encontrando informações dispersas, mas
uma obra particularmente relevante de Ana Canas Delgado Martins intitulada
Governação e Arquivos: D. João VI no Brasil. Embora não se limite à documentação
referente à concessão de ofícios e outras mercês esclarece aspectos importantes para
entender a questão que aqui nos colocamos para os territórios referidos acima.
Se durante a ocupação francesa o Governo de Lisboa ganhou autonomia em alguns
aspectos, sobretudo económico e militar, depois da saída dos franceses de Portugal em
1809 foi decretada a obrigatoriedade dos orgãos ali sediados de manter uma ligação mais
estreita com o Rio de Janeiro, onde afinal o monarca residia e era o centro do poder do
Império. Tal era o caso dos Tribunais do Reino que deveriam enviar as consultas sobre
as matérias que tratavam juntamente com os pareceres emitidos por seus oficiais.
O responsável pelo Erário Régio de Lisboa ficaria assim subordinado ao do Real Erário do
Brasil. Todavia, dado o clima de paz, o Tribunal da Relação de Lisboa passava a receber
os pareceres dos magistrados das capitanias pertencentes ao Estado do Grão-Pará e
Maranhão, e das Ilhas dos Açores e da Madeira, “simplesmente porque”, esclarece a
autora, “era mais rápido e cil do que enviá-los para as Relações da Baia e do Rio de
Janeiro”
10
. Entretanto, nada indica que destes territórios deixassem de ser enviados para
o Rio de Janeiro as solicitações de mercês, ou os pedidos de ofícios (Martins, 2007).
Os fluxos dependiam também do conteúdo dos documentos não apenas dos órgãos de
decisão. As consultas da Mesa do Desembargo do Paço de Lisboa, que tinham de ter
assinatura régia obrigatória, passavam pelas diversas instâncias na Europa, mas eram
depois remetidas para o Rio de Janeiro, onde recebiam (ou não) o despacho régio final.
Neste sentido, no período de 13 anos em que o príncipe regente e futuro monarca
português, D. João, residiu no Brasil, o fluxo comunicacional se alterou e grande parte
dos papéis relacionados a matérias de decisão real passaram a transitar para o Rio de
Janeiro, deixando Lisboa de ser não a corte com a sua simbólica magnificência, mas
a sede administrativa de um Império convulsionado. Esta é uma situação que
evidentemente gerou insatisfação nos portugueses reinóis, saudosos de seus
governantes mas que a partir de 1815, com o fim do império napoleônico, viram-se
indignados com a recusa do príncipe em voltar para Portugal.
Elucidativa é a preocupação expressa por Paulo Fernandes Viana, intendente de polícia
nomeado em 1808, com os sentimentos dos bditos em Portugal. Em 1818, tendo
sido D. João VI aclamado rei, Viana o advertia que os vassalos portugueses no reino “já
não se entretêm com a esperança de se restituir a Portugal a família real; e porque as
circunstâncias do Brasil ainda o não permitem” aconselhava-o a dar demonstrações do
10
Tal é o Casa de Suplicação de Lisboa que ainda existia, e que recupera parte de sua jurisdição anterior,
inclusive o do Estado do Grão-Pará e Maranhão.
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cuidado que os devotava, tendo como prioridade “o procurar-lhes quanto bom eles lhe
merecem”. Para tanto, insistia na publicação das ordens pronunciadas recentemente para
melhorar o seu comércio, e dar valor aos frutos de sua própria lavoura e
agricultura, e fábricas […] e que assim mesmo pela Mesa do Desembargo do
Paço [irá] consultar com que possam todos obter mais fácil expedientes nos
negócios de Justiça e de Graça, cortando-se demoras provenientes da
distância com que está o soberano (Viana, [s/d] apud Stumpf, 2022, 21).
Paulo Viana não incitava o monarca a retornar pois estava ciente da importância de sua
presença em solo americano, sobretudo depois da ocorrência da revolução
pernambucana, controlada a 29 de junho de 1817 (Pedreira & Costa, 2006, 255-260).
Mas, por outro lado, defendia que se facilitasse a concessão de mercês a estes súditos
que se viam preteridos em matéria de Justiça e de Graça, um ponto sensível que podia
gerar insatisfações pessoais a serem evitadas, sobretudo num contexto no qual a
monarquia estava mais “liberal” na distribuição de mercês, ao menos para com alguns
brasileiros, ou residentes no Brasil.
Semelhante liberalidade vinha ao encontro da necessidade de cobrir os gastos
gigantescos com as guerras e com a Corte no Rio de Janeiro. Como estratégia, a
monarquia ao invés de despender recursos com medidas fundamentais à “utilidade
pública” recompensava com mercês, que pouco oneravam os cofres régio, os súditos
residentes no Brasil que ofereciam um serviço pecuniário em troca de patentes militares
e cargos administrativos que certamente não conseguiriam obter por outras vias. Para
estes, oferecer donativos ou ajudar com réis à monarquia permitia que se inserissem no
grupo da pequena nobreza que, nas primeiras décadas do século XIX, sofreu um
alargamento ainda maior do que vinha apresentando no final do Setecentos (Monteiro,
2010). A política empreendida pela monarquia portuguesa de concessão de tulos de
nobreza aumentou exponencialmente durante os anos de 1808-1820 e a isto se deveu à
criação de títulos sem grandeza dados em alguns casos a naturais da América.
Considerando o perfil social dos contemplados com estes títulos de visconde e barão, de
menor estatuto que os demais, podemos conceber a hipótese de alguns terem sido
adquiridos mediante serviços pecuniários e, no limite, comprados (Stumpf, 2018, 362).
Mesmo assim, nada que justifique a ideia de que “em Portugal eram precisos 500 anos
para se tornar conde, no Brasil, 500 contos”, há muito defendida por Pedro Calmon
11
.
Todavia quanto mais próximo se estava do monarca mais fácil era ser contemplado por
ele e ver os laços de fidelidade serem estreitados. O inverso se passava também com
aqueles que julgavam que deveriam ser favorecidos mas que não eram contemplados.
No caso daqueles que residiam nas proncias, mais ao norte do Brasil, é muito provável
que encontrassem dificuldade em serem atendidos. Como dissemos anteriormente, estes
tinham um acesso mais facilitado ao monarca quando este residia em Lisboa. A distância
que seus requerimentos/petições deveriam percorrer, seja por mar ou por terra até o Rio
de Janeiro era incomensurável. Neste sentido, se a satisfação de seus interesses,
coletivos e/ou pessoais, era retardada, ou mesmo impossibilitada, face a tais obtáculos,
11
Calmon, P. (1935). O rei do Brasil. Olympio Apud Wilken, 2004 (Stumpf, 2018: 362).
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não seria estranho que tal situação ajude a explicar porque muitos apoiaram o retorno
de D. João VI à Lisboa. Um retorno que foi adiado pelo monarca até o momento em que
precisou sucumbir aos clamores vindos do reino por aqueles que exigiam sua volta
imediata. D. João VI atendeu os pedidos das Cortes em Lisboa, em 1820, deixando no
Rio de Janeiro o seu filho, o Príncipe D. Pedro, que resisti em seguir este mesmo
caminho, quando passados poucos anos também foi interpelado. Declarou enfaticamente
sua intenção de ficar naquelas terras proclamando de seguida a independência do Brasil
pressionado, em grande parte, pelas elites políticas das províncias de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais.
Mas esta era uma alternativa que não correspondia a todos os projetos políticos que
emergiram no Brasil ao longo deste período. Em um primeiro momento, todas as
deputações com seus representantes eleitos pelas Juntas provinciais mantiveram-se fiéis
às Cortes e ao monarca D. João VI
12
, sem considerar a hipótese de ruptura com Portugal.
Porém, a medida em que as sessões se seguirem, sem a chegada de muitos deputados,
e até mesmo com o retorno à América por parte de alguns, começava a ficar evidente
que a independência do Brasil era uma hipótese cogitada por alguns, e quando esta de
fato se anunciou também ficou claro que outras províncias brasileiras estavam
insatisfeitas com esta supremacia anunciada da dinastia bragantina no Rio de Janeiro.
Como foi referido anteriormente, em algumas destas províncias eclodiram movimentos
contestatórios de uma ordem imposta de cima, sobretudo nos anos posteriores a 1830.
Como se vê, não porque buscar consensos políticos em 1822 quando alternativas
contrárias à unidade política brasileira continuam a se manifestar enfaticamente nos anos
vindouros.
Considerações finais
Este é um artigo que retoma muito das considerações de uma historiografia brasileira
que antes mesmo do bicentenário da independência do Brasil contestou idéias
tradicionais que insistiam no pressuposto de que houve um processo político linear que
culminou no nascimento do Brasil. Nossa proposta aqui foi apresentar uma orientação
que corrobora esta crítica, explorando um aspecto que foi pouco abordado e que ajuda a
entender os posicionamentos políticos das elites provinciais também em função do maior
ou menor distanciamento (geográfico) da Corte e do monarca, estando ele em Lisboa ou
no Rio de Janeiro.
A transferência da corte para o Brasil e a instalação do centro político do Império no Rio
de Janeiro não acarretou na emergência de um sentimento político “brasileiro” coeso em
torno do monarca. A mudança nos circuitos governativos, trazida a partir de então,
mostra como de certa forma os laços com a monarquia ficavam fragilizados para os
súditos que residiam em províncias afastadas do Rio de Janeiro. Estes viram suas
demandas serem mais dificilmente atendidas do que quando as instituições e órgãos da
monarquia fixavam-se, exclusivamente, em Lisboa. Este descontentamento, assim como
o seu reverso, sentido por aqueles que se situavam próximos da capital fluminense,
12
Com a elevação do Brasil a condição de Reino Unido a Portugal e Algarve, em 1815, foi-lhes autorizada a
possibilidade de as províncias ser representadas nas Cortes por deputados eleitos localmente.
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contribuiu também para o desenrolar dos acontecimentos, ou seja, para que algumas
províncias americanas, e territórios do Reino europeu, defendessem sua lealdade a D.
João VI. Se assim o é, estamos insistindo mais uma vez na tese de que a distância/tempo
é uma categoria essencial para explicar as dinâmicas político-administrativas do Império
português e, neste período específico, para entender os diferentes posicionamentos
políticos que estavam em jogo.
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