OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
64
CIRCUITOS GOVERNATIVOS E OS DIFERENTES PROJETOS POLÍTICOS NO
CONTEXTO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
ROBERTA STUMPF
rstumpf@autonoma.pt
Professora Associada e subdiretora para a investigação do Departamento de História, Artes e
Humanidades da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigadora integrada do
CIDEHUS.UAL. Seus temas de investigação incluem História das dinámicas administrativas nos
Impérios Ibéricos e História social do Brasil (séculos XVII e XIX). Publicou vários capítulos de
livros, artigos em revistas académicas e tem 2 livros monográficos e 6 livros coletivos. Dentre os
quais: Las distancias en el gobierno de los imperios ibéricos: Concepciones, experiencias y
vínculos (Casa de Velázquez, 2022) [com G. Gaudin] e 1822. Das Américas ao Brasil (Casa das
Letras, 2022) [com N.G. Monteiro].
Resumo
O objetivo neste texto é fazer um exercício de reflexão exploratório que partiu de uma
hipótese de trabalho: a importância de se relacionar os acontecimentos vividos no Império
português, entre 1808 e 1822, quando a capital passou da cidade de Lisboa para a cidade do
Rio de Janeiro, a partir da análise dos circuitos imperiais governativos e de comunicação
política. Frente às contingências trazidas pela invasão napoleônica na Península Ibérica, trata-
se de pensar o Rio de Janeiro como o novo centro da rota de peregrinação administrativa que,
se por um lado atendeu às necessidades governativas da monarquia portuguesa, por outro
desagradou parcela das elites luso e luso-brasileiras que irá converter tais desafetos em
reivindicações políticas.
Palavras-chave
Independência do Brasil, circuitos administrativos, Rio de Janeiro, reivindicações políticas.
Abstract
The aim of this text is to carry out an exploratory reflection exercise based on a working
hypothesis: the importance of relating the events that took place in the Portuguese Empire
between 1808 and 1822, when the capital moved from the city of Lisbon to the city of Rio de
Janeiro, by analysing the imperial circuits of government and political communication. Faced
with the contingencies brought about by the Napoleonic invasion of the Iberian Peninsula, Rio
de Janeiro is seen as the new center of the administrative pilgrimage route which, on the one
hand, met the governmental needs of the Portuguese monarchy and, on the other, generated
a great deal of disaffection on the part of the Portuguese and Luso-Brazilian elites, who would
turn these grievances into political demands.
Keywords
Brazilian independence, administrative circuits, Rio de Janeiro, political demands.
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Circuitos governativos e os diferentes projetos políticos no contexto
da Independência do Brasil
Roberta Stumpf
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Resumen
El objetivo de este texto es realizar un ejercicio exploratorio de reflexión a partir de una hipótesis
de trabajo: la importancia de relatar los acontecimientos que tuvieron lugar en el Imperio
portugués entre 1808 y 1822, cuando la capital se trasladó de Lisboa a Río de Janeiro, analizando
los circuitos imperiales de gobierno y comunicación política. Frente a las contingencias provocadas
por la invasión napoleónica de la Península Ibérica, Río de Janeiro es visto como el nuevo centro
de la ruta de peregrinación administrativa que, si por un lado satisfacía las necesidades de gobierno
de la monarquía portuguesa, por otro, generaba una gran desafección por parte de algunas élites
portuguesas y luso-brasileñas, que convertirían estos agravios en reivindicaciones políticas.
Palabras clave
Independencia de Brasil, circuitos administrativos, Río de Janeiro, reivindicaciones políticas.
Como citar este artigo
Stumpf, Roberta (2024). Circuitos governativos e os diferentes projetos políticos no contexto da
Independência do Brasil. Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 - Portugal
e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.5
Artigo recebido em 15 de Janeiro de 2024 e aceite para publicação em 31 de Janeiro de
2024
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CIRCUITOS GOVERNATIVOS E OS DIFERENTES PROJETOS
POLÍTICOS NO CONTEXTO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
ROBERTA STUMPF
O estudo da independência do Brasil invoca muitos temas, alguns trabalhados há muito,
outros inéditos até poucos anos atrás quando a historiografia deu um salto significativo
na diversificação das temáticas, patente desde logo nas publicações que acompanharam
as comemorações do bicentenário desta efeméride, em 2022. Ainda assim, é seguro dizer
que muitas das opiniões consagradas permaneceram irrefutadas. Dentre estas, a ideia
de que a transposição da Corte e da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em
1808 teve uma importância crucial para o evento que convencionamos datar de 7 de
setembro de 1822
1
. Como é sabido, o príncipe regente D. João na primeira parada que
fez no continente americano, em Salvador, decretou a abertura dos portos dando por
terminado o exclusivo colonial metropolitano, ou seja, o monopólio comercial que
Portugal mantinha com o Brasil (Novais, 1986 [1979]; Dias, 2009 [1972]). Não se tratava
de uma solução momentânea ou
um remédio passageiro para a crise ou colapso da balança de comércio
portuguesa. (…) A abertura dos portos brasileiros aos navios e negociantes
britânicos, eufemisticamente tratados na Carta Régia como «potências, que
se conservam em paz, e harmonia com a minha Real Coroa» consolida um
movimento irreversível de transição de um sistema de comércio internacional
protegido pelo regime de exclusivo colonial para um sistema de comércio livre
sem exclusivos de qualquer espécie (Cardoso, 2008)
2
.
1
Os tulos dos livros publicados no Brasil no intervalo de 2020-2022 dão uma ideia das inovações propostas.
Tal diversidade temática pode ser observada também no fórum proposto pela Revista Almanack que a cada
semana do ano de 2022 publicou um texto breve de historiadores que analisam a independência sob
perspetivas diversas, algumas bastante inovadoras em particular para o público mais amplo ao qual estava
destinado. Um dos temas tratados está a incerteza desta data como marco da independência do Brasil, o
que não deixa de ser mais um exemplo de como a história, e suas efemérides, são muitas vezes
rememoradas como dados efetivos sem que saibamos se na altura dos acontecimentos eram ou não
consensuais. Ver: Kraay, H. (2010). A invenção do sete de setembro, 1822-1831. Almanack Braziliense,
n°11, pp. 52-61.
2
Cardoso, J. (2008). A abertura dos portos do Brasil em 1808: dos factos à doutrina. Ler História, nº 54.
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.2342.
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A Inglatera, beneficiada com tal medida, viu-se definitivamente favorecida em 1810
quando muitos tratados são assinados com Portugal, como o Tratado de Amizade,
comércio, e navegação
3
.
Outras medidas régias se seguirão reforçando a tendência voltada para a alteração do
estatuto económico e político, do Brasil, cuja situação anterior muitos passarão a
designar de colonial”
4
. Em 1815, este é elevado à categoria de Reino Unido com Portugal
e Algarves, fazendo com que a Casa real portuguesa se tornasse uma monarquia
composta, ou seja, abrangendo diversos reinos com as suas instituições próprias, à
semelhança do que era a espanhola que, com a queda de Napoleão Bonaparte e o
Congresso de Viena, seria restaurada juntamente com outras monarquias européias.
Neste tortuoso contexto iniciado em 1807, ou em 1777, se quisermos retomar outras
propostas de cronologia de forma a abarcar a crise do Antigo Regime (Novais, 1986
[1979]), as mudanças eram sentidas de maneiras diversas nas capitanias e territórios
da América portuguesa. Afinal, mesmo depois do Rio de Janeiro ter se tornado a capital
do Império luso, e de lhe ser outorgado o título de Reino que o igualava estatutariamente
a Portugal, o Brasil continuou a carecer de coesão política. Na verdade, mesmo após a
proclamação da sua independência em relação a Portugal, podemos dizer que nem todos
os atores politicos partilhavam deste projeto que se saiu vitorioso.
Os movimentos separatistas que se seguiram ao 7 de setembro de 1822 não foram
poucos, e muitos contaram com um apoio socialmente mais vasto. O primeiro, conhecido
como Confederação do Equador de 1824, recuperou alguns dos anseios da Revolução
Pernambucana (1817), como a defesa do republicanismo regional, tendo suas ideias sido
apoiadas também em algumas províncias vizinhas (Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte
e Piauí) nas quais parcela da elite vai aderir à proposta de constituir um Estado
independente no norte do país.
Tal como esta, outras manifestações emergirão questionando a legitimidade do Império
brasileiro, com a capital no Rio de Janeiro, a qual não se sentiam pertencentes. O período
regencial (1831-1840), após o retorno a Portugal de D. Pedro I (IV de Portugal) e a
minoridade de seu herdeiro D. Pedro II, foi um contexto favorável para a manifestação
de eventos de oposição a um Império que não correspondia aos sentimentos políticos de
muitos. Ainda que seja difícil generalizar, pode-se dizer, considerando os espaços
geográficos donde ocorreram tais levantes, que era nas províncias mais distantes do Rio
de Janeiro que os descontentamentos se intensificaram, devido a questões que iremos
abordar adiante. Cada um deles, evidentemente, apresentou características muito
particularidades sobretudo se considerarmos as razões mais imediatas para a sua
ocorrência. Todavia, as contestações indicam na generalidade a discordância referida
acima que deve ser devidamente relacionada, por um lado, a um contexto anterior a
1808 e, por outro, ao que vai sendo gestado com a introdução de uma nova dinâmica
político-administrativa. A primeira revolta a insurgir a partir da regência é designada por
Sabinada e teve como palco a Bahia em 1837-38. Com alguma simultaneidade, eclode
3
Tratado de Amizade, commercio, e navegação entre sua alteza real o príncipe regente de Portugal e sua
magestade britannica. Assignado no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1810 (1810). Biblioteca Brasiliana
e Guita José Mindin. https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7405?locale=en
4
Qualificação que, por influência do mercantilismo e depois da economia política, muitos faziam antes,
mas que nunca foi designação oficial.
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no Maranhão a Balaiada (1838-41), assim como na Província do Grão-Pará, em 1835-
40, tem lugar a Cabanagem, todas elas sendo reprimidas e vencidas pelo centro político.
A mais longa avança no Segundo reinado no extremo sul do país: era a Farroupilha, em
São Pedro do Sul, entre os anos de 1835-45.
A ocorrência de tais eventos tem sido lembrada pela historiografia para realçar sua
discordância com a tese de que a independência do Brasil foi um processo linear, tido
como “natural”, como se o questionamento da colonização portuguesa, acentuado no
início do século XIX, permitisse que se contemplasse, em toda a sua plenitude, uma
identidade brasileira existente. Esta análise histórica, crédula desta espécie de
predestinação, desconsidera evidentemente a existência, neste contexto e nos
anteriores, de diversos projetos políticos que traduziam interesses diversos e refletiam a
coexistência de identidades políticas regionais ou locais, contrárias a qualquer alternativa
que abrangesse a totalidade das províncias.
Por isso, embora possamos fazer uma ligação entre os eventos que ligam os
acontecimentos que se iniciam em 1808 e “terminam” com aquele ocorrido em 1822 (ou
em 1825, quando a independência é reconhecida por Portugal), convém estar atento
para o fato de que tal percurso não foi linear, e muito menos “óbvio”, pois eram muitos
os projetos políticos que gravitavam e eram tidos, de facto, como possíveis. Se o
desfecho foi o que conhecemos, o mais importante é saber porque se saiu vitorioso não
obstante fosse talvez o mais inesperado
5
, ao menos se levarmos em conta o desenrolar
dos acontecimentos na América espanhola. Ali a crise do início do século XIX foi vivida
diferentemente e levou a desintegração político-administrativa de seu território, não sem
a ocorrência de conflitos e guerras locais como aqueles vividos na Grande Colómbia
6
, ou
no território conhecido à altura como Vice-reinado do Prata. É verdade que, como
explicou o historiador João Paulo Garrido Pimenta, o exemplo da América vizinha serviu
para que as autoridades bragatinas direcionassem a sua política de forma a evitar que
se passasse o mesmo do lado da América portuguesa, o que revela uma influência ao
revés que contribuiu para que se investisse na unidade de um todo (Pimenta, 2015). Esta
perspectiva comparada entre as independências latino-americanas ajuda a pensar o caso
brasileiro, sobretudo porque é possível formular com mais evidência o problema que
colocamos, e que é anunciado faz muito tempo pela historiografia. Ou seja, porque,
no processo das independência das colónias ibéricas no continente americano, a América
hispânica se fragmentou em diversas unidades políticas autónomas enquanto o Brasil,
ao romper os laços políticos com Portugal, não se dividiu? Os eventos de contestação,
referidos parágrafos antes, devem ser compreendidos dentro do contexto em que
emergiram, porém é inegável que também refletem uma pertença política a territórios
que constituíram parte do Império do Brasil mas que poderiam (e lutaram por isso) ter-
se configurado como entidades políticas independentes. Estes sentimentos que traduziam
um amor à terra tria) e que mais tarde, ao serem politizados, evidenciam uma
oposição à metrópole portuguesa, como também a um todo brasileiro com centro no Rio
de Janeiro, não são exclusivos destas províncias (Bahia, Maranhão, Pará e São Pedro do
Sul). Estudos sobre a Inconfidência mineira (1789), a Conjuração carioca (1791) e a
5
Cf. Um texto de divulgação, irónico e contrafactual: Carvalho (2008).
6
Ver artigo de Nancy Gomes neste Dossier.
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Inconfidência Baiana
7
(1798) mostram que estavam presentes, com maior ou menor
intensidade, em outra capitanias (Jancsó & Pimenta, 2000; Stumpf, 2010, 2014).
Entretanto, o objetivo deste texto não é analisar este processo de emergência do Estado
nacional brasileiro seguindo o viés das identidades políticas, intensamente estudadas,
ainda que necessariamente devamos dialogar com esta perspectiva analítica. Tendo
como ponto de partida a questão que acima se colocou, ou seja, a artificialdade do Brasil
enquanto um todo político coeso, entendemos que parte deste processo deve ser
compreendido considerando também as dinâmicas administrativas introduzidas no
Império português depois de 1808 quando o Rio de Janeiro tornou-se a sua capital.
O que aqui se apresenta é uma hipótese de trabalho que nos levou a este estudo ainda
em andamento, ao qual daremos continuidade sobretudo aprofundando a pesquisa
documental a ser realizada em arquivos de Lisboa e do Rio de Janeiro, cidades que
continuam a dividir, em decorrência destes anos de 1808-1822, as fontes produzidas no
passado pelas instituições centrais da monarquia portuguesa.
A América Portuguesa Acéfala e as Instituições Locais e Imperiais
Quando analisamos as dinâmicas administrativas do Brasil ao longo do período em que
foi uma colónia portuguesa, vemos que ele nunca teve de fato um centro, tal como existia
em outra região do ultramar português. Refiro-me ao Estado da Índia, em cuja capital,
Goa, foi instalada a maioria das instituições centrais existentes também em Lisboa, mas
que nunca existiram, até 1808, na América Portuguesa. Enquanto os assuntos decisivos
ao funcionamento do espaço asiático eram resolvidos maioritariamente por lá, nas duas
partes da América portuguesa, o Estado do Grão Pae Maranhão e o Estado do Brasil,
a questão dava-se diferentemente. A ausência de um poder centralizado, para onde as
rotas de comunicação com as suas diversas capitanias confluíriam, obrigou as
autoridades locais (sobretudo as camarárias), e as regionais (situadas nas capitanias) a
manter com constância uma comunicação direta com os tribunais e conselhos régios em
Lisboa.
A partir de 1548, no caso do Estado do Brasil, a sua maior autoridade, o governador-
geral, mais tarde intitulado vice-rei, residia em Salvador e no Rio de Janeiro quando este,
em 1763, passou a ser a sua capital. Nestas cidades se sediava igualmente o mais alto
oficial da Justiça, o ouvidor-mor, e o da Fazenda, o provedor-mor, que assim como aquele
detinham jurisdições sobre todo o território português na América. A extensão de seus
poderes era enorme apesar de somente no Setecentos a colonização portuguesa avançou
para o interior do continente (sertões), criando novos municípios e instalando câmaras à
medida que eram fundadas novas capitanias como as de Minas Gerais, Goiás, Mato
Grosso, de extração aurífera. Até então, o Estado do Brasil limitava-se praticamente à
zona costeira e, mesmo assim, algumas das atribuições contidas nos regimentos
entregues a estas autoridades eram impossíveis de cumprir.
Os oficiais de maior escalão na hierarquia administrativa encontraram dificuldade em
assumir uma função centralizadora, na qual pudessem responder pelo poder régio, ou
7
Ou, como outrora foi conhecida, a Revolta dos Alfaiates. Hoje tem prevalecido outra denominação: Revolta
dos Búzios.
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mesmo servir como intermediários entre as demais autoridades ultramarinas e aquelas
do reino. No caso da administração civil, os que estavam imediatamente abaixo dos
oficiais residentes na capital, ou seja, os governadores e provedores das capitanias e os
ouvidores, das comarcas, foram assumindo maior protagonismo e autonomia e, tal como
os oficiais camarários, dirigiam-se sem intermediários a Lisboa. Certamente que se
comunicavam também entre si e com os oficiais na Bahia e mais tarde no Rio de Janeiro.
Entretanto, o que estamos querendo sublinhar é que estes últimos nunca tiveram na
prática a importância que julgamos que haveriam de ter por ocuparem cargos de topo
na hierarquia da administração portuguesa no Brasil.
Na verdade, nas capitais do Estado do Brasil sequer foram instaladas instituições e órgãos
que as tornassem um polo central de governação frente a todas as terras que estavam
sob a sua jurisdição. Nestas, os oficiais e requerentes acabavam por remeter os seus
papéis às autoridades de Lisboa, que serviam no Conselho Ultramarino, nos tribunais de
justiça de segunda e terceira instância, a Casa de Suplicação e o Desembargo do Paço,
e na Casa dos Contos/Conselho da Fazenda, entre outros. Alguns exemplos desta
comunicação política que ligava os dois lados do Atlântico ajudam a perceber melhor esta
dinâmica governativa.
Desde que foi criado o cargo de provedor-mor em Salvador, antes mencionado, em seu
regimento estava determinado que uma de suas obrigações era a de conferir os livros
com a escrituração das contas dos almoxarifes (cobradores de impostos) e dos
tesoureiros de todas as capitanias na América portuguesa, inclusive as capitanias
donatárias. Não podendo se deslocar a todas elas, os livros deviam chegar até ele para
então seguir para a Casa dos Contos em Lisboa, onde seriam conferidos e, se aprovados,
passadas as cartas de quitação que autorizavam aqueles oficiais menores da Fazenda a
continuar servindo à monarquia. então os livros regressavam às terras americanas,
numa peregrinação contínua. Todavia, este roteiro não era seguido à risca, pois os livros
não passavam pela Bahia, indo diretamente das capitanias para o Reino. Portanto, a
intermediação do provedor-mor, na capital do Brasil, não era observada. É digna de nota
a centralidade de Lisboa também na fiscalização das contas ultramarinas, o que se
procurou manter mesmo com a criação das Juntas de Fazenda (a partir de 1760) que
nas capitanias vieram a substituir lentamente as provedorias (Carrara, 2016; Stumpf,
2017), mas que continuaram a mandar para a Europa a sua contabilidade.
Esta comunicação com o Reino era intensa também quando foi preciso acionar os
tribunais de justiça de segunda e terceira instâncias. Em todo o Estado do Brasil, até à
criação do segundo Tribunal da Relação, no Rio de Janeiro, em 1751, existia um único
tribunal de segunda instância, localizado na Bahia. Concebido em 1588 passou a
funcionar somente em 1609 (Schwartz, 1979, 49). A Justiça em grande medida dependia
da atuação dos juízes camarários (juiz ordinário ou juiz de fora) e dos ouvidores que
atuavam, respectivamente, nas vilas e comarcas. No caso de existir recurso para um
tribunal superior, teriam que se deslocar a Salvador, ou ao Rio de Janeiro a partir da
segunda metade do século XVIII, ou enviar para estas localidades a papelada referente
às demandas em causa. Os homens, e os papéis, teriam que percorrer caminhos de difícil
acesso por terra, ou optar pela navegação fluvial e costeira por vezes mais difícil e
demorada do que se fossem diretamente a Lisboa. o surpreende que preferissem
“acionar” algum tribunal da capital lisboeta.
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Este fluxo comunicacional, ligando as terras ultramarinas a esta cidade, era mesmo
indispensável no caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão cujo Tribunal da Relação
foi criado em 1813. O padre António Vieira, quando ali missionava, afirmava que “mais
fácil se vai da Índia a Portugal do que desta missão ao Brasil”, ou seja, a Salvador da
Bahia (Muhana & Kantor, 2022, 32). Não é preciso dizer muito mais para explicar porque
os súditos residentes no imenso Estado do Grão-Pará e Maranhão tinham uma conexão
muito ativa e próxima com a Casa de Suplicação em Lisboa, que actuava como repectivo
tribunal superior.
Com distâncias tão vastas no interior da América, como entender a morosidade
portuguesa na criação de uma malha judiciária densa que atendesse de forma mais célere
(e eficaz) às demandas dos súditos e, ao mesmo tempo, estabelecesse uma ordem mais
compatível com os interesses da metrópole? Porque se preservou na América portuguesa
durante culos uma comunicação institucional com Portugal que se chocava com o
“estilo” de governação implementado no Estado da Índia, muito mais autónomo
administrativamente? Seria esta opção governativa implementada em terras brasileiras
considerada na altura ideal, não tendo sido adotada nas Índias orientais porque estas
terras eram por demais distantes da Europa?
Como exercício analítico vale a pena lembrar que o Tribunal da Relação da Bahia foi
criado no período filipino como parte de uma reforma judicial que visava dinamizar a
justiça em Portugal e em todas as suas terras ultramarinas (Schwartz, 1979, 35-54). Se
esta forma de governação castelhana, que pressupunha a criação de instituições e o
aumento do número de letrados na ativa, perpetuou-se na monarquia vizinha, não
sabemos. Mas o fato é que na América espanhola no início do século XIX havia 12
audiencias o que, não sendo o equivalente aos Tribunais da Relação portugueses (o
terceiro dos quais criado na América em 1813) permite estabelecer muitas analogias
(Cunha & Nunes, 2016, 4). Claro que os tempos de comunicação também são aqui
relevantes.
À América pertence a capital do Império
Toda esta dinâmica governativa evidencia com exatidão aquilo que António Manuel
Hespanha se referiu como sendo o “Império do papel” . Trata-se de perceber, por um
lado, a administração portuguesa como estando fortemente pautada na produção e na
leitura de um volume gigantesco de documentos escritos e, por outro, de entender que
estes papéis percorriam caminhos que, em muitos casos, especialmente no que se refere
à governação da América portuguesa, tinham como ponto de chegada, e de partida, as
instituições sediadas em Lisboa. Perpetuar continuadamente o fluxo destas rotas não
fazia da monarquia lusa um Estado absolutista, centralista e controlador. Não temos
dúvida que às autoridades ultramarinas era concedida autonomia de atuação para que
conseguissem administrar os territórios para onde eram designadas, respeitando as
especificidades locais e as circunstâncias particulares dos contextos em que se
encontravam. Sem esta parcela de autonomia não poderiam primar pelo “bom governo”,
premissa obrigatória entre as monarquias modernas. Mas esta autonomia não impediu,
e por vezes estimulou, que Lisboa acompanhasse com atenção o que ocorria em suas
terras distantes, controlando seus oficiais a partir da adoção de meios de fiscalização que
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a historiografia prefere qualificar de “ineficazes” recorrendo, erroneamente, a critérios
anacrónicos.
Porém, a Coroa portuguesa deteve o privilégio de conduzir com exclusividade temas da
governação que evitou delegar a seus representantes. Nos referimos muito
concretamente ao sistema de concessão de graças e mercês absolutamente estratégico
para o reforço contínuo do poder do monarca. De origem medieval, inseria-se na lógica
do dom e contra-dom, cuja reciprocidade (entre partes desiguais, entretanto) contribuía
para estreitar os laços que ligavam, neste caso, os monarcas aos seus súditos, de
qualquer condição que fosse. Se o fazer justiça era o dever mais importante do poder
régio, os reis deviam agir como os juízes que davam a cada um o que lhe pertencia por
direito. O sistema de mercês, também denominado de justiça distributiva, poderia ser
protagonizado por eles ainda que estivessem assessorados por funcionários de alto
escalão que pertenciam a órgãos e instituições que gravitavam ao redor da corte
(Hespanha, 1993; Olival, 2001).
Uma parte considerável da documentação pertencente ao Arquivo do Conselho
Ultramarino, órgão consultivo criado em 1642 e que detinha a jurisdição sobre a
totalidade dos assuntos dos territórios ultramarinos, é composto por petições. Trata-se
de solicitações ao monarca de mercês diversas: senhorios jurisdicionais, tulos
honoríficos, cargos civis, patentes militares, entre outros pedidos endereçados a este
Tribunal, em nome de coletividades (corpos) ou de indivíduos residentes no Ultramar.
A tais pedidos normalmente eram anexados documentos comprovatórios como, por
exemplo, dos serviços prestados, dos direitos anteriormente adquiridos, de forma a dar
legitimidade aos suplicantes e, se fosse feita justiça, a concessão da mercê requerida.
Assim, estes processos podiam se estender por muitas páginas e, se por ventura fosse
preciso obter mais alguma informação, ou ouvir a opinião de algum interveniente não
mencionado, o Conselho Ultramarino escrevia às autoridades no Brasil dando ordens para
remeterem a Lisboa os documentos (e os pareceres) em falta.
Este circuito permanente de informações a cruzar o Mar Oceano já foi matéria de alguns
trabalhos historiográficos relativos à comunicação política estabelecida entre a metrópole
portuguesa e as suas colónias na América (Fragoso & Monteiro, 2017; Slemian &
Fernandes, 2022). Todavia, mais raros são os estudos que procuram entender esta
questão relacionando-a com as mudanças trazidas na arquitetura institucional após a
transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1807/1808.
Neste período de transformações estruturais que culminaram na independência do Brasil,
apesar de que outros projetos políticos viessem a ser aventados como alternativa, foram
replicadas na nova sede do Império muitas instituições existentes no Reino português,
todas relativas à alta administração. Sem querer esgotar a lista, lembramos algumas:
- o Desembargo do Paço;
- a Casa da Suplicação (que levou a extinção da Relação do Rio de Janeiro);
- a Mesa da Consciência e Ordens (tribunal responsável por assuntos eclesiásticos que,
por exemplo, realizava as provanças para a concessão de hábitos das Ordens Militares);
- o Conselho Supremo Militar e de Justiça;
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- a Chancelaria-mor do reino;
- o Erário Régio (criado por Pombal em 1761);
- a Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação;
- a Intendência de Polícia;
- as Secretarias de Estado
8
.
A recriação destas e outras instituições exigiu a montagem de um aparato administrativo
que contou com recursos humanos locais, mas que procurou sobretudo inserir uma parte
significativa da comitiva que acompanhou o príncipe regente D. João ao Rio de Janeiro,
homens de estirpe social e grande experiência de governo. Foram anos de grande
agitação para tornar o Rio de Janeiro a capital do Império, administrativa ou
urbanisticamente falando (Malerba, 2000; Cavalcanti, 2004; Schultz, 2008). Não
obstante todos estes temas merecerem atenção pela sua relevância ou mesmo pelo
ineditismo daquele contexto histórico, nos interessa abordar aqui como o sistema de
mercês referido acima, central ao funcionamento e à legitimidade do poder régio,
independentemente de onde este se encontrava, foi reajustado às novas circunstâncias
e quais foram as consequências políticas que esta mudança pode ter trazido.
Embora tivesse ocorrido uma transposição ou duplicação da administração central na
nova capital do Império, como antes foi referido, o Conselho Ultramarino, enquanto órgão
consultivo a deliberar sobre assuntos das terras além-mar, não foi recriado na América
portuguesa, por razões evidentes. Sua função deixou de ser necessária quando a
metrópole passa a estar sediada em uma das suas colónias. Assim, o Desembargo do
Paço e a Mesa da Consciência e Ordens passaram a assumir, a partir de então, o papel
que antes o Conselho Ultramarino desempenhava em matéria de graças e mercês,
recebendo os requerimentos e as solicitações dos súditos portugueses de todas as
províncias da América (próximas do Rio de Janeiro, ou distantes, como a Província do
Maranhão).
Após a instalação da Mesa do Desembargo do Paço, por alvará de de Agosto de 1808,
foram ali criados diversos ofícios criteriosamente regulados no que respeita ao valor de
seus emolumentos, tal como ocorreu no velho reino em 1754 quando, pela primeira vez,
se legislou com vista a controlar os rendimentos (ordinários e extraordinários) dos oficiais
régios, em Portugal e nas conquistas. Os valores arbitrados importam menos para nós
do que a descrição dos serviços a serem efetuados pelo oficial-menor, pelos dois oficiais
papelistas e pelo praticante, dentre os quais passar “alvarás de mercê de quaisquer
ofícios (…) e cartas de propriedade destes ofícios, em que se houverem de incorporar os
ditos alvarás de mercê e bem assim de quaisquer outros que se proverem pelo
expediente da Mesa”
9
(Stumpf, 2018, 356).
8
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarino, Secretaria de Estado dos Negócios
do Brasil antiga Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, e Secretaria de Estado da Guerra e Negócios
Estrangeiros.
9
Câmara dos Deputados (s.d.). Legislação Informatizada - Alvará de de Agosto de 1808 - Publicação
Original. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-40217-1-agosto-1808-
572273-publicacaooriginal-95390-pe.html
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A circulação de documentos neste período foi objeto de estudo de raros trabalhos que
normalmente estão voltados para o território brasileiro, ou seja, para o fluxo interno dos
papéis, entre as capitanias/províncias e a sede do Império no Rio. Praticamente não
existem análises que tentem explicar as vias de circulação que ligavam o restante do
Império, ou seja, Portugal, Madeira, Açores, colónias na África e domínios no Estado da
Índia com a nova capital, Rio de Janeiro. Vamos encontrando informações dispersas, mas
uma obra particularmente relevante de Ana Canas Delgado Martins intitulada
Governação e Arquivos: D. João VI no Brasil. Embora não se limite à documentação
referente à concessão de ofícios e outras mercês esclarece aspectos importantes para
entender a questão que aqui nos colocamos para os territórios referidos acima.
Se durante a ocupação francesa o Governo de Lisboa ganhou autonomia em alguns
aspectos, sobretudo económico e militar, depois da saída dos franceses de Portugal em
1809 foi decretada a obrigatoriedade dos orgãos ali sediados de manter uma ligação mais
estreita com o Rio de Janeiro, onde afinal o monarca residia e era o centro do poder do
Império. Tal era o caso dos Tribunais do Reino que deveriam enviar as consultas sobre
as matérias que tratavam juntamente com os pareceres emitidos por seus oficiais.
O responsável pelo Erário Régio de Lisboa ficaria assim subordinado ao do Real Erário do
Brasil. Todavia, dado o clima de paz, o Tribunal da Relação de Lisboa passava a receber
os pareceres dos magistrados das capitanias pertencentes ao Estado do Grão-Pará e
Maranhão, e das Ilhas dos Açores e da Madeira, “simplesmente porque”, esclarece a
autora, “era mais rápido e cil do que enviá-los para as Relações da Baia e do Rio de
Janeiro”
10
. Entretanto, nada indica que destes territórios deixassem de ser enviados para
o Rio de Janeiro as solicitações de mercês, ou os pedidos de ofícios (Martins, 2007).
Os fluxos dependiam também do conteúdo dos documentos não apenas dos órgãos de
decisão. As consultas da Mesa do Desembargo do Paço de Lisboa, que tinham de ter
assinatura régia obrigatória, passavam pelas diversas instâncias na Europa, mas eram
depois remetidas para o Rio de Janeiro, onde recebiam (ou não) o despacho régio final.
Neste sentido, no período de 13 anos em que o príncipe regente e futuro monarca
português, D. João, residiu no Brasil, o fluxo comunicacional se alterou e grande parte
dos papéis relacionados a matérias de decisão real passaram a transitar para o Rio de
Janeiro, deixando Lisboa de ser não a corte com a sua simbólica magnificência, mas
a sede administrativa de um Império convulsionado. Esta é uma situação que
evidentemente gerou insatisfação nos portugueses reinóis, saudosos de seus
governantes mas que a partir de 1815, com o fim do império napoleônico, viram-se
indignados com a recusa do príncipe em voltar para Portugal.
Elucidativa é a preocupação expressa por Paulo Fernandes Viana, intendente de polícia
nomeado em 1808, com os sentimentos dos súbditos em Portugal. Em 1818, tendo
sido D. João VI aclamado rei, Viana o advertia que os vassalos portugueses no reino “já
não se entretêm com a esperança de se restituir a Portugal a família real; e porque as
circunstâncias do Brasil ainda o não permitem” aconselhava-o a dar demonstrações do
10
Tal é o Casa de Suplicação de Lisboa que ainda existia, e que recupera parte de sua jurisdição anterior,
inclusive o do Estado do Grão-Pará e Maranhão.
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cuidado que os devotava, tendo como prioridade “o procurar-lhes quanto bom eles lhe
merecem”. Para tanto, insistia na publicação das ordens pronunciadas recentemente para
melhorar o seu comércio, e dar valor aos frutos de sua própria lavoura e
agricultura, e fábricas […] e que assim mesmo pela Mesa do Desembargo do
Paço [irá] consultar com que possam todos obter mais fácil expedientes nos
negócios de Justiça e de Graça, cortando-se demoras provenientes da
distância com que está o soberano (Viana, [s/d] apud Stumpf, 2022, 21).
Paulo Viana não incitava o monarca a retornar pois estava ciente da importância de sua
presença em solo americano, sobretudo depois da ocorrência da revolução
pernambucana, controlada a 29 de junho de 1817 (Pedreira & Costa, 2006, 255-260).
Mas, por outro lado, defendia que se facilitasse a concessão de mercês a estes súditos
que se viam preteridos em matéria de Justiça e de Graça, um ponto sensível que podia
gerar insatisfações pessoais a serem evitadas, sobretudo num contexto no qual a
monarquia estava mais “liberal” na distribuição de mercês, ao menos para com alguns
brasileiros, ou residentes no Brasil.
Semelhante liberalidade vinha ao encontro da necessidade de cobrir os gastos
gigantescos com as guerras e com a Corte no Rio de Janeiro. Como estratégia, a
monarquia ao invés de despender recursos com medidas fundamentais à “utilidade
pública” recompensava com mercês, que pouco oneravam os cofres régio, os súditos
residentes no Brasil que ofereciam um serviço pecuniário em troca de patentes militares
e cargos administrativos que certamente não conseguiriam obter por outras vias. Para
estes, oferecer donativos ou ajudar com réis à monarquia permitia que se inserissem no
grupo da pequena nobreza que, nas primeiras décadas do século XIX, sofreu um
alargamento ainda maior do que vinha apresentando no final do Setecentos (Monteiro,
2010). A política empreendida pela monarquia portuguesa de concessão de tulos de
nobreza aumentou exponencialmente durante os anos de 1808-1820 e a isto se deveu à
criação de títulos sem grandeza dados em alguns casos a naturais da América.
Considerando o perfil social dos contemplados com estes títulos de visconde e barão, de
menor estatuto que os demais, podemos conceber a hipótese de alguns terem sido
adquiridos mediante serviços pecuniários e, no limite, comprados (Stumpf, 2018, 362).
Mesmo assim, nada que justifique a ideia de que “em Portugal eram precisos 500 anos
para se tornar conde, no Brasil, 500 contos”, há muito defendida por Pedro Calmon
11
.
Todavia quanto mais próximo se estava do monarca mais fácil era ser contemplado por
ele e ver os laços de fidelidade serem estreitados. O inverso se passava também com
aqueles que julgavam que deveriam ser favorecidos mas que não eram contemplados.
No caso daqueles que residiam nas províncias, mais ao norte do Brasil, é muito provável
que encontrassem dificuldade em serem atendidos. Como dissemos anteriormente, estes
tinham um acesso mais facilitado ao monarca quando este residia em Lisboa. A distância
que seus requerimentos/petições deveriam percorrer, seja por mar ou por terra até o Rio
de Janeiro era incomensurável. Neste sentido, se a satisfação de seus interesses,
coletivos e/ou pessoais, era retardada, ou mesmo impossibilitada, face a tais obtáculos,
11
Calmon, P. (1935). O rei do Brasil. Olympio Apud Wilken, 2004 (Stumpf, 2018: 362).
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não seria estranho que tal situação ajude a explicar porque muitos apoiaram o retorno
de D. João VI à Lisboa. Um retorno que foi adiado pelo monarca até o momento em que
precisou sucumbir aos clamores vindos do reino por aqueles que exigiam sua volta
imediata. D. João VI atendeu os pedidos das Cortes em Lisboa, em 1820, deixando no
Rio de Janeiro o seu filho, o Príncipe D. Pedro, que resistirá em seguir este mesmo
caminho, quando passados poucos anos também foi interpelado. Declarou enfaticamente
sua intenção de ficar naquelas terras proclamando de seguida a independência do Brasil
pressionado, em grande parte, pelas elites políticas das províncias de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais.
Mas esta era uma alternativa que o correspondia a todos os projetos políticos que
emergiram no Brasil ao longo deste período. Em um primeiro momento, todas as
deputações com seus representantes eleitos pelas Juntas provinciais mantiveram-se fiéis
às Cortes e ao monarca D. João VI
12
, sem considerar a hipótese de ruptura com Portugal.
Porém, a medida em que as sessões se seguirem, sem a chegada de muitos deputados,
e até mesmo com o retorno à América por parte de alguns, começava a ficar evidente
que a independência do Brasil era uma hipótese cogitada por alguns, e quando esta de
fato se anunciou também ficou claro que outras províncias brasileiras estavam
insatisfeitas com esta supremacia anunciada da dinastia bragantina no Rio de Janeiro.
Como foi referido anteriormente, em algumas destas províncias eclodiram movimentos
contestatórios de uma ordem imposta de cima, sobretudo nos anos posteriores a 1830.
Como se vê, não porque buscar consensos políticos em 1822 quando alternativas
contrárias à unidade política brasileira continuam a se manifestar enfaticamente nos anos
vindouros.
Considerações finais
Este é um artigo que retoma muito das considerações de uma historiografia brasileira
que antes mesmo do bicentenário da independência do Brasil contestou idéias
tradicionais que insistiam no pressuposto de que houve um processo político linear que
culminou no nascimento do Brasil. Nossa proposta aqui foi apresentar uma orientação
que corrobora esta crítica, explorando um aspecto que foi pouco abordado e que ajuda a
entender os posicionamentos políticos das elites provinciais também em função do maior
ou menor distanciamento (geográfico) da Corte e do monarca, estando ele em Lisboa ou
no Rio de Janeiro.
A transferência da corte para o Brasil e a instalação do centro político do Império no Rio
de Janeiro não acarretou na emergência de um sentimento político “brasileiro” coeso em
torno do monarca. A mudança nos circuitos governativos, trazida a partir de então,
mostra como de certa forma os laços com a monarquia ficavam fragilizados para os
súditos que residiam em províncias afastadas do Rio de Janeiro. Estes viram suas
demandas serem mais dificilmente atendidas do que quando as instituições e órgãos da
monarquia fixavam-se, exclusivamente, em Lisboa. Este descontentamento, assim como
o seu reverso, sentido por aqueles que se situavam próximos da capital fluminense,
12
Com a elevação do Brasil a condição de Reino Unido a Portugal e Algarve, em 1815, foi-lhes autorizada a
possibilidade de as províncias ser representadas nas Cortes por deputados eleitos localmente.
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contribuiu também para o desenrolar dos acontecimentos, ou seja, para que algumas
províncias americanas, e territórios do Reino europeu, defendessem sua lealdade a D.
João VI. Se assim o é, estamos insistindo mais uma vez na tese de que a distância/tempo
é uma categoria essencial para explicar as dinâmicas político-administrativas do Império
português e, neste período específico, para entender os diferentes posicionamentos
políticos que estavam em jogo.
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