OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
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AS INDEPENDÊNCIAS IBERO-AMERICANAS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS (1800-1825)
NUNO CANAS MENDES
ncanasm@gmail.com
Professor Associado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de
Lisboa (Portugal) e presidente do Instituto do Oriente, centro de investigação acreditado e
financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Doutor em Relações Internacionais pela
Universidade Técnica de Lisboa, tem-se dedicado à investigação na área dos Estudos Asiáticos,
Diplomacia e Política Externa e História das Relações Internacionais. É diretor da revista
Daxyiangguo: Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos. É autor de 8 livros e co-autor de 11, de
18 capítulos de livros e de 30 artigos. Orientou cerca de 30 dissertações de Mestrado e teses de
Doutoramento. Membro do Conselho Consultivo da Janus-net,e-journal of International Relations.
Foi professor no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (2009-2018),
professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina e conferencista no Instituto de
Defesa Nacional, Universidade Autónoma de Lisboa, Instituto Nacional de Administração, na
Academia das Ciências Sociais e Tecnologia (Angola) e no Instituto de Defesa Nacional (Timor-
Leste).
Resumo
As independências ibero-americanas e em particular a do Brasil ocorrem num contexto
específico das relações internacionais do que alguns consideram ser a primeira vaga da
descolonização, com um descentramento do poder da Europa que resultou das revoluções
americana e francesa e do advento de Napoleão. Estas independências introduzem uma
cesura importante que mudará o panorama das relações internacionais, com a entrada em
cena de um conjunto de novos Estados e de um que cedo assumirá a dianteira dos mesmos:
os Estados Unidos da América.
Palavras-chave
Relações internacionais, Ibero-América, Independências, Estados Unidos da América,
Doutrina de Monroe.
Abstract
The Ibero-American independence, particularly that of Brazil, occurred within a specific
context of international relations that some have considered the first wave of decolonization.
This period saw a shift in power away from Europe due to the American and French revolutions
and the rise of Napoleon. These independences mark a significant rupture that will alter the
landscape of international relations, ushering in a new set of states, with one in particular
soon taking the lead: the United States of America.
Keywords
International relations, Ibero-America, Independence, United States of America, Monroe
Doctrine.
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As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações internacionais (1800-1825)
Nuno Canas Mendes
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Resumen
Las independencias iberoamericanas, y en particular la de Brasil, se produjeron en un contexto
específico de las relaciones internacionales, en lo que para algunos fue la primera ola de
descolonización, con una descentralización del poder en Europa derivada de las revoluciones
americana y francesa y del advenimiento de Napoleón. Estas independencias introdujeron una
importante ruptura que cambiaría el panorama de las relaciones internacionales, con la
entrada en escena de una serie de nuevos Estados y de uno que pronto tomaría la delantera:
los Estados Unidos de América.
Palabras clave
Relaciones Internacionales; Iberoamérica; Independencias; Estados Unidos de América;
Doctrina Monroe.
Como citar este artigo
Mendes, Nuno Canas (2024). As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações
internacionais (1800-1825). Janus.net, e-journal of international relations. VOL14, N2, TD2 -
Portugal e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-7251.DT0124.3
Artigo recebido em 1 de Novembro de 2023 e aceite para publicação em 25 de Janeiro
de 2024
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AS INDEPENDÊNCIAS IBERO-AMERICANAS NO CONTEXTO DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS (1800-1825)
NUNO CANAS MENDES
Introdução
O presente artigo incidisobre o cenário internacional de ocorrência das independências
das colónias espanholas e do Brasil no primeiro quartel do século XIX, contextualizando-
as e relacionando-as com as grandes transformações ocorridas na Europa e das
respetivas réplicas no Novo Mundo. O mote para o escrever foi a comemoração do
segundo centenário do estado brasileiro situando a fundação do mesmo no pano de fundo
internacional
1
. O seu objetivo é fornecer uma mula sobre a dinâmica do processo e dos
intervenientes no mesmo, não se avançando com dados inéditos ou interpretações
inovadoras sobre um período histórico de consabida complexidade. Para atingir tal
objetivo, optou-se por uma metodologia que, embora assente na discussão bibliográfica,
deliberadamente a omite em benefício de fornecer, a traço grosso, a síntese.
Com efeito, já muito foi escrito sobre o tema e consequentemente o que se ensaia aqui
é a apresentação de um quadro geral e amplo, que permite identificar a génese das
referidas independências e do protagonismo dos Estados Unidos da América no seu’
hemisfério, assim como da formação e evolução das ideias pan-americanas. Não se
avançará, pela impossibilidade de o fazer num artigo com propósitos ‘panorâmicos’, para
uma revisão sistemática da vasta literatura existente mas antes para uma seleção
‘cirúrgica’ de algumas obras de referência, como 1822 - Das Américas Portuguesas ao
Brasil, coordenado por Roberta Stumpf e Nuno Gonçalo Monteiro (2022); ou o
incontornável The Congress of Vienna: Power and Politics after Napoleon, de Biran E.
Vick (2014); ainda para enquadramento da reflexão na perspetiva de um mundo pós-
revolucionário, em deambulação por uma espécie de longo século XIX de corte e
transformação: The Birth of the Modern World, 1780 1914, C. A. Bayly (2003)
2
.
O artigo focará igualmente as novidades que o sistema de Viena de 1815 introduziu na
Europa daquele tempo e de como os nacionalismos e a não-ingerência foram vivenciados
em ambas as margens do Atlântico. Este princípio da não-ingerência, de que o
‘esplêndido isolamento’ e a doutrina de Monroe são expressões manifestas, acolhe zonas
1
Agradeço às professoras Nancy Gomes e Roberta Stumpf o convite para participar no colóquio internacional
“Portugal e Brasil: História, Presente e Futuro”, ocorrido no dia 3 de novembro de 2022, na Universidade
Autónoma de Lisboa.
2
Sobre a independência do Brasil, há extensa obra, das quais destacaria, entre as mais recentes, Proença,
M.C. (1999). A Independência do Brasil. Edições Colibri; Cervo, A. L.; Magalhães, J. C. de (orgs.). Depois
das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil, 1808-2000 (2000). Editora da UnB, 2000; Pimenta, J.P.
(2022). A independência do Brasil. Editora Contexto. Sobre a emancipação ibero-americana, sugere-se:
Chasteen, J.C. (2008). Americanos: Latin America’s Struggle for Independence. Oxford University Press e
Echeverri, M; Soriano, Cristina (2023). The Cambridge Companion to Latin American Independence.
Cambridge University Press. Para o Congresso de Viena e Europa do século XIX, recomenda-se Abbenhuis,
M. (2014). An Age of Neutrals: Great Power Politics, 1815-1914. Cambridge University Press e Jarrett, M.
(2021). The Congress of Vienna and its Legacy: War and Great Power Diplomacy after Napoleon.
Blooomsbury Academic.
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de intervenção natural dentro de um princípio de divisão de esferas de influência. o
será exatamente uma novidade na história das relações internacionais, ainda que aqui o
que é novo é ele ocorrer numa realidade pós-colonial, com uma Grã-Bretanha em
crescendo global e uma Europa a tomar forma para acomodar o primado da Alemanha.
1. As relações internacionais depois do Congresso de Viena
Num primeiro momento, vamos considerar as primeiras três décadas do século XIX em
que as independências ibero-americanas ocorrem no momento de grandes mudanças no
sistema internacional, de que destacaria o surto napoleónico e a coligação que lhe resistiu
até ao estertor em Waterloo, os rearranjos da ordem definida no Congresso de Viena e
os efeitos da doutrina de Monroe. O citado surto determinará uma alteração de lógica
de resto não totalmente inédita e com raízes importantes no pensamento do P. e António
Vieira e de D. Luís da Cunha que converte o Brasil em cabeça do império, com a família
real e a elite no Rio de Janeiro, a subsequente abertura dos portos ao comércio
internacional em 1810 e, em 1815, com o Reino Unido que elimina formalmente o pacto
colonial desmantelado pela citada abertura dos portos. Ao invadir Portugal, Napoleão
precipita o que já havia sido pensado nos séculos XVII e XVIII, noutros contextos, sem,
no entanto, conseguir destituir a dinastia de Bragança. O pequeno retângulo europeu
passava a uma posição subalterna, de metrópole convertida em colónia e sob uma tutela
britânica que cria o caldo de cultura que vem a desembocar na revolução de 1820 e no
regresso de D. João VI a Portugal. Nestas circunstâncias, tendo os Franceses ficado a
“ver navios” e tendo ocorrido esta transferência transatlântica da sede do poder, a
independência do Brasil era uma inevitabilidade. A par de um conjunto de sintomas e
manifestações anteriores de descontentamento perante o status-quo colonial, a
conjuntura política iniciada com a Revolução Americana precipitaria o processo.
Mas neste primeiro momento, na descrição do quadro internacional considerar-se-ão dois
elementos estruturantes do sistema diplomático pós-napoleónico: isto é, a Viena e à
Doutrina de Monroe. Qualquer um destes factos têm uma importância crucial para as
independências que estamos a considerar. Não é, de resto, possível entender o processo
sem nos determos no que se passava no velho continente (incluindo a dimensão prática
no apoio à separação - dinheiro, provisões, comércio, navios, munições - e o
reconhecimento oficial dos novos governos)
3
. A chamada ‘ordem’ de Viena de que saiu a
Santa Aliança e o Concerto Europeu resultou numa dinâmica tipicamente alternativa,
entre o continentalismo europeu a dar continuidade à herança do Ancien Régime e o
Splendid Isolation britânico muito mais adaptado a um século XIX industrial e à imposição
do rule britannia global, que abre o caminho para a apresentação do discurso do
presidente James Monroe onde define um alinhamento geopolítico para o hemisfério
ocidental. Vale a pena determo-nos nos nexos entre uma coisa e outra:
a) Viena e o novo equilíbrio de poderes oitocentista nela lançado abrem caminho
para uma tensão e um acerto entre uma tendência contrarrevolucionária, reacionária,
legitimista, e em grande medida continental em torno das autocráticas Rússia e Áustria
e da cada vez mais poderosa Prússia, unidas na Santa Aliança e outra revolucionária,
liberal, animada pelo legado de 1776 e 1789, pela soberania popular materializada em
nacionalismos, a que se tinha de apor o desvio britânico, concentrado nos negócios
ultramarinos a uma escala cada vez mais global. É este confronto entre renovação e
poderes estabelecidos, que se situa a erupção latino-americana, favorecida pela fratura
3
A América ibérica, não considerando o Brasil-Império, viveu um período pós-independência muito
conturbado: o reconhecimento pela Espanha demorou décadas, a identidade e configuração territorial causa
de muitas disputas sobre limites, dissolução da Grã-Colômbia logo em 1830, militarismo e caudilhismo,
governos instáveis, problemas económicos, endividamento, etc. Tal alimentava o receio do
intervencionismo europeu.
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napoleónica e o golpe que desferiu junto das monarquias hispânicas, e por um
‘amadurecimento’ das elites locais permeáveis a novos ideários e em desconforto com os
ditames e desmandos metropolitanos.
A centúria de oitocentos caracteriza-se pela paz e estabilidade que se viveram no
continente europeu (Anderson, 1993, 181-201). É claro que a aludida estabilidade não
esteve isenta de crises e mesmo conflitos, mas numa escala muito mais modesta quando
comparada com o século anterior marcada pela magnitude de ocorrências de grande
impacto: a Guerra da Sucessão de Espanha, a Guerra dos Sete Anos, a Revolução
Francesa e o império napoleónico (Mendes, 2017).
A doutrina de Monroe, de que saíram os fundamentos da política externa dos Estados
Unidos e que definia a sua primazia no hemisfério ocidental, que passava assim a zona
reservada para a respetiva intervenção política, económica e comercial, estancando a
veleidade de restaurar a ordem colonial, formal ou informalmente, pela Espanha e por
outros países europeus e reconhecendo os governos de facto. Os termos eram claros:
à defesa do nosso [sistema político], que foi conquistado com o
derramamento de muito sangue e recursos, e amadurecido graças à
sabedoria dos seus mais iluminados cidadãos, e sob o qual experimentámos
inusitada felicidade, esta nação inteira se devotou. Devemos-lhes isso;
porém, para garantir imparcialidade e relações amigáveis entre os Estados
Unidos e estas potências [europeias], devemos considerar que qualquer
tentativa da sua parte de estender o seu sistema a alguma parte deste
hemisfério pode ser perigosa para a nossa paz e segurança. Nas colónias
existentes e dependências de qualquer potência europeia não interferimos e
não tencionamos interferir. Mas com os governos que declararam a sua
independência e a mantêm, e cuja independência, com grande consideração
e com justos princípios, reconhecemos, não podemos encarar qualquer
interposição de qualquer potência europeia, com o propósito de os oprimir ou
controlar de qualquer outra maneira o seu destino, a qualquer outra luz que
não seja a da manifestação de uma disposição não amigável em relação aos
Estados Unidos (Monroe, 1823)
4
.
Assumia-se assim uma disposição de evitar o envolvimento com a ‘opressora’ Europa,
prevenindo qualquer tentativa de intervenção que dela pudesse surgir (“não podemos
encarar qualquer interposição de qualquer potência europeia”), garantindo uma
reciprocidade de não-interferência (“nas colónias existentes (...), não interferimos”) e
proclamando um princípio de solidariedade que remetia para um princípio de segurança
coletiva (“a alguma parte deste hemisfério”, “disposição não amigável em relação aos
Estados Unidos”).
4
Tradução do original: to the defense of our own [political system], which has been achieved by the loss of
so much blood and treasure, and matured by the wisdom of their most enlightened citizens, and under
which we have enjoyed unexampled felicity, this whole nation is devoted. We owe it, therefore, to candor
and to the amicable relations existing between the United States and those powers to declare that we should
consider any attempt on their part to extend their system to any portion of this hemisphere as dangerous
to our peace and safety. With the existing colonies or dependencies of any European power we have not
interfered and shall not interfere. But with the Governments who have declared their independence and
maintain it, and whose independence we have, on great consideration and on just principles, acknowledged,
we could not view any interposition for the purpose of oppressing them, or controlling in any other manner
their destiny, by any European power in any other light than as the manifestation of an unfriendly disposition
toward the United States”.
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Com estas disposições, Monroe assumia uma postura de assertividade continental que
lhe permitiria ao mesmo tempo promover uma consolidação interna, que abriria caminho
à definição do território e à assunção do destino manifesto. Os termos desta política
acabariam por ser reinventados depois da guerra hispano-americana, terminada em
1898, data que marca o fim da presença política da Espanha no continente (e o fim do
respetivo império) e o início de um ciclo de cariz colonial, com a aquisição das Filipinas
pelos EUA.
Em suma, a doutrina de Monroe estabeleceu uma colossal esfera de influência, que serviu
de base a uma função de policiamento e estabilização do hemisfério, inicialmente contra
a Europa e, depois de 1945, contra a influência comunista. Vale a pena mencionar que
nos seus antecedentes mais próximos está a conclusão da guerra anglo-americana em
1812, a qual veio reforçar o nacionalismo norte-americano, assente num expansionismo
territorial e comercial e no acerto de fronteiras com a Grã-Bretanha e a Espanha. Esta
guerra foi, portanto, decisiva para garantir um estatuto de potência aos Estados Unidos,
permitindo-lhes mostrar os recursos da sua Marinha e desenvolver uma vontade
crescente de afastamento dos perigos da diplomacia europeia em geral. É neste contexto
de definição de fronteiras que se insere o objetivo de Monroe, presidente desde 1817, de
comprar a Flórida à Espanha e definir os limites com o vice-reino da Nova Espanha, o
que o Tratado Transcontinental de 1819 permitiu
5
. De referir que os EUA sentiam a
ameaça dos russos e dos britânicos na costa do Pacífico e a criação de um pequeno posto
comercial no Oregon Astoria foi um sinal desta vontade de demarcação. À custa do
“derramamento de muito sangue e recursos”, as vulnerabilidades de um país em
formação eram superadas graças a esta autonomia estratégica em conquista.
O Bolivarismo tem semelhanças com a doutrina de Monroe na medida em que também
propunha separação, neutralidade americana face à Europa e preocupação com a
segurança dos novos Estados sobretudo no que toca a tentativas de recolonização e na
promoção de um ‘sistema americano’: por iniciativa de Bolívar realizou-se em 1826 o
Congresso Interamericano do Panamá, uma reação à Santa Aliança no pressuposto de
uma solidariedade e cooperação pan-americanas de muito difícil implantação naquele
momento (Hilton, 2001)
6
.
2. O equilíbro de poderes
Num segundo momento, consideraremos outro conceito fundamental das relações
internacionais, o equilíbrio de poderes então estabelecido na relação entre continentes.
Um dos aspetos fundamentais de Viena para o qual contribuiu decisivamente a
formação do Concerto Europeu que deveria fazer os ajustamentos necessários e
preservar a paz, uma espécie de sistema de segurança coletiva avant la lettre foi o
estabelecimento de um novo equilíbrio de poderes que garantiu, pelo menos até à eclosão
da Guerra da Crimeia o predomínio de uma contenção. o que o ambiente tenha sido
isento de alguns sobressaltos ou que não tenham emergido iniciativas que punham em
causa esse equilíbrio, como sucedeu aquando do projeto de uma intervenção de alcance
5
Tratado de amizade, resolução de diferenças e limites, conhecido pelo nome de Tratado de Adams-Onís,
ratificado em 1821 entre a Espanha e os EUA, onde se fixou a fronteira entre os EUA e o vice-reino da Nova
Espanha. Os EUA adquiriam a Flórida Oriental por 5 milhões de dólares, reconhecia-se a anexação da Flórida
Ocidental definia-se a fronteira oeste da Luisiana e a Espanha deixava cair as suas pretensões em relação
ao Oregon.
6
Entre as ideias então apresentadas, a formação de uma confederação hispano/ibero-americana, arbitragem
em caso de disputas interamericanas, assembleia legislativa com plenos poderes em política externa,
aliança defensiva e exército comum. Durante o século XIX realizaram-se mais quatro conferências pan-
americanas, mas o seu contributo foi sobretudo para o desenvolvimento do Direito Internacional.
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restaurador a expedição dos 100 mil filhos de São Luís que deu força à lógica do
esplêndido isolamento de Canning e da doutrina de Monroe.
Se é verdade que o multilateralismo se robusteceu em Viena e a prática da diplomacia
se complexificou, esta primeira descolonização começando na formação dos EUA e
alastrando a todas as Américas introduziu uma alteração de monta no sistema
internacional: a um sistema centrado nos Estados europeus, grosso modo os oito que se
sentaram em Viena, vêm juntar-se os novos Estados americanos. As primeiras
organizações internacionais a União Internacional de Telégrafos (fundada em 1865)
mais tarde União Internacional de Telecomunicações foi fundada na Europa e por países
europeus, mas a União Postal Universal (1874) já admitiu os EUA, apenas e só. O inter-
regionalismo americano avançou também, com a União Internacional das Repúblicas
Americanas que veria a luz do dia em 1890, na sequência da Primeira Conferência
Internacional Americana, convocada pelos EUA para adotar um plano de arbitragem para
a resolução de litígios e onde participaram 18 países, um ‘concerto americano’ com cariz
institucionalizado e mais técnico. A instituição esteve na génese da futura União Pan-
Americana. Mas o verdadeiro get together multilateral foi o Tratado de Paz de Versalhes,
em 1919, onde foram signatários a Bolívia, o Brasil, Cuba, o Equador, Guatemala, Haiti,
Honduras, Nicarágua, Panamá, Uruguai e os EUA, bem-entendido. Somente um século
depois das independências uma integração real numa discussão sobre problemas
mundiais, pontuada pelo seu protagonista americano Wilson - que vem a ser derrotado
em casa e pelo definhar de uma Europa em declínio.
3. Novas formas de governança e os procedimentos de legitimação das
potências nos conflitos
O equilíbrio de Viena assentou num diretório a cinco a pentarquia -, mas a Grã-Bretanha
apressou-se a demarcar-se definindo uma ordem mundial sob a sua hegemonia e uma
Pax Britannica que sucumbiria finalmente em 1914, apesar dos ameaços anteriores. Até
lá, como foi referido, o sistema encarregou-se não de evitar crises ou mesmo guerras,
mas de uma contenção. Valorizava-se mais a estabilidade e a moderação, valores não
comungados pelo Kaiser Guilherme II que com os seus planos de uma weltpolitik
comprometeu irremediavelmente este equilíbrio. Em certa medida, do outro lado do
oceano, foi uma pax americana que os EUA propuseram no seu hemisfério, numa espécie
de subsistema autónomo que, como diria Adriano Moreira, traça uma descentralização
do governo do Ocidente e se inspira num ‘anticolonialismo branco, burguês e liberal’.
A governação por um diretório fundamentava-se na força, sob o pretexto de uma
comunidade espiritual e de um legitimismo que enformava uma aliança dita santa,
criando um sistema em que a assimetria entre pares era natural. Do outro lado do
Atlântico, a revolução americana e os levantamentos de Bolívar e San Martin não deram
lugar a uma aliança contrarrevolucionária nem a um diretório, mas a um equilíbrio de
um só protagonista, com ingerência incluída.
O mencionado Concerto Europeu institucionalizou a realização de congressos periódicos,
embora esta inovação tenha estado na origem da criação de um mecanismo de
legitimação das intervenções externas. Foi o que sucedeu em Laybach (1821), em que a
Áustria de restabelecer a ordem na península itálica, ou seja, repor o absolutismo nos
reinos de Nápoles e da Sardenha (Mendes, 2017, p. 50). Foi no Congresso de Verona
(1822) que se decidiu que a França deveria debelar a revolução espanhola e restituir o
poder a Fernando VII, daqui resultando a intervenção acima aludida dos "cem mil filhos
de São Luís", eficaz no derrube dos regimes liberais de Espanha e Portugal, mas sem
êxito no objetivo de restabelecer os domínios americanos dos Bourbons e dos Braganças
(entretanto retornados ao Velho Continente, ainda que continuados em D. Pedro I,
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imperador do Brasil). Como muito justamente conclui Jean-Baptiste Duroselle (1990, p.
317): "na sua globalidade, o «concerto europeu», muito imperfeito, e o reflexo de uma
vaga união europeia, desempenharam, relativamente a Espanha e a Portugal, um papel
destruidor". De resto, a independência do Brasil, nesse mesmo ano de 1822,
representava uma solução original, e um quase compromisso entre a pulsão
revolucionária separatista e o legitimismo monárquico com um soberano de uma nova
dinastia de Bragança brasileira, casado com uma arquiduquesa austríaca: quer a Grã-
Bretanha quer a Santa Aliança não tardaram em reconhecer o novo governo.
Como referido, a decisão de intervir em Espanha teve um efeito de diluição do sistema,
criando espaço para o avanço da contrarrevolução e cindindo a quíntupla aliança, com a
aludida autoexclusão da Grã-Bretanha relativamente aos assuntos da Europa continental.
Este posicionamento era uma espécie de equivalente lateral àquele que Monroe adotaria,
mas neste caso para estender o seu poder ao resto do mundo, incluindo a América ibérica
através do comércio (e com algum desrespeito pela doutrina de Monroe, como comprova
o caso da ocupação das Malvinas, em 1833, que viria a estar na origem da famosa guerra
com a Argentina nos anos 80 do século XX)
7
.
Novos tumultos foram eclodindo, pondo em causa, uma vez mais, o equilíbrio de Viena.
O fenómeno dos nacionalismos e em particular a manifestação do grego, veio suscitaru
a questão dos Balcãs e do domínio do Mediterrâneo, convocando assim a ssia e a Grã-
Bretanha (Mendes, 2017, p. 50). A derrota dos otomanos ficou estabelecida, em 1829,
através do tratado de Andrinopla, de que resultou a independência da Grécia. E assim se
inaugurou uma vaga de independências baseadas no princípio da soberania popular de
que os nacionalismos se nutriam. Em certa medida, a independência grega contestava
um poder imperial em apuros como tinha acontecido na América ibérica.
O citado Georges Canning depois de anunciar o princípio de o-intervenção na
Câmara dos Comuns, em 1822, trouxe, assim, um embaraço ao chanceler Metternich.
Pugnando pela neutralidade relativamente aos assuntos continentais, não obstante
considerar que o interesse nacional era incompatível com a intervenção na Europa
continental, apoiou os revoltosos gregos, reconhecendo-lhes o estatuto de beligerantes
e deu força à sua causa; já a Rússia, viu nesta atitude uma oportunidade para fragilizar
o império otomano e para estender os seus interesses nos Balcãs, para onde queria
estender uma esfera de influência de matriz eslava. Como seria expectável, Metternich
não desejava este expansionismo russo na península balcânica por trazer riscos aos
frágeis fundamentos do império austríaco, o que determinou o alinhamento do governo
da Áustria com o da Grã-Bretanha (Mendes, 2017, 51). A Rússia o queria hostilizar a
Grã-Bretanha, para poder fazer valer os seus objetivos expansionistas e conter a Áustria.
Na mesma senda dos nacionalismos, desenhou-se um eixo Paris-Londres, convergente
na política de não-ingerência, como ficaria demonstrado aquando da revolução belga. O
equilíbrio funcionava num entendimento comum: o nacionalismo belga não podia ser
neutralizado pela ideia de uma afinidade natural com a França, que o não contrariou e
se absteve de intervir, aliás com uma ameaça dissuasora de Palmerston (Mendes, 2017,
p. 51). A independência seria declarada na conferência de Londres em 1830
8
. A
7
Os Estados Unidos não se manifestaram contra a ocupação, mas em 1845 e 1848 fizeram-no, durante a
presidência de James Polk, à luz da doutrina do Destino Manifesto. Monroe fechou o hemisfério ocidental
ao colonialismo europeu; Polk foi mais longe, afirmando que os países europeus não deveriam interferir na
expansão territorial dos Estados Unidos. Em 1904, Theodore Roosevelt introduzirá um Corolário extensivo
da doutrina de Monroe, segundo o qual os Estados Unido, em caso de flagrante e crónica conduta de
países da América Latina, poderiam intervir nos respetivos assuntos internos, em modo de polícia (Marcos,
2014, 168-170).
8
O primeiro rei dos Belgas, Leopoldo de Saxe-Coburgo-Saalfeld, que fora casado com a princesa Carlota,
filha de Jorge IV, rei da Grã-Bretanha, casaria depois de soberano do novo país, com Luísa d’Orléans,
filha do rei dos Franceses, Luís Filipe. Assim se expressava o referido eixo Paris-Londres e se expandia essa
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insurreição na Polónia, no mesmo ano, não permitiu que esta sintonia produzisse algum
efeito: o exército czarista esmagou o movimento (Kissinger, 1995).
Assim, a política de não-ingerência e os nacionalismos estavam em crescendo dos dois
lados do Atlântico. Mas do lado americano, o imperialismo out-of-area despertaria
tardiamente. Com efeito, o big stick sairá de forma assumida para a América Latina
transposto o século XIX. Curiosamente, a intervenção ou ingerência fora da sua esfera
de influência definida veio introduzir, como vimos, uma modulação interessante na
política externa norte-americana, fazendo-a assumir no Sudeste Asiático uma postura de
sucessor colonial da pouco presente Espanha, no arquipélago das Filipinas. Foi aliás a
este mesmo propósito, de olhos postos em Theodore Roosevelt, que Rudyard Kipling
escreveu o seu célebre poema sobre o fardo do homem branco, exortando-o à conquista
das Filipinas (McGrath, 2019).
Conclusões
Como observou Jean-Pierre Bois, o mundo em 1815 pertencia ainda à Europa (Bois,
2003). Ao sobressalto revolucionário sucedeu um período de paz duradoura a que a
chama do nacionalismo inspirado na doutrina da soberania popular viria dar uma demão
de instabilidade. Mas é outra revolução, a Industrial, que garante um domínio europeu
que vingará até 1914. Uma nova ‘conquista’ do mundo, incluindo aquele que escapara
ou sentira menos a presença e penetração europeia. O Congresso Viena trouxe um
‘concerto’ que instrumentalizaria simultaneamente uma reação à mudança e um regresso
ao passado, mas não conseguiu impedir, graças a uma convergência de vontades, ainda
que por motivos diferentes, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, este descentramento
da ‘ordem’ europeia, com uma autonomia a que a Doutrina de Monroe deu corpo,
mitigada pelos interesses mais dispersos dos creolos da América espanhola ou pela
originalidade brasileira de uma inversão dos termos da lógica imperial.
Este desdobramento hemisférico, com réplicas e inovações, e as transformações políticas
e económicas no Velho Continente, com destaque para a citada Revolução Industrial e o
ambiente antiesclavagista que se generalizou, abriram caminho para mais um século de
relações internacionais eurocentrizadas’, com o início do scramble for Africa e de uma
presença e domínio intensos na Ásia Oriental. As Américas, com a tração dos Estados
Unidos, consolidaram, nas suas diferenças intrínsecas, fragilidades, assimetrias e
equilíbrios instáveis, uma autonomia de mudança e de promessa que mobilizou correntes
migratórias, negócios e tecnologia.
Referências
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Bayly, C. A. (2003). The Birth of the Modern World, 1780 1914. Wiley-Blackwell
Bois, J. (2003). De la paix des rois à l’ordre des empereurs 1714-1815. Editions du Seuil.
Duroselle, J. (1990). História da Europa. Círculo de Leitores - Publicações D. Quixote.
Hilton, S. L. (2001). “América en el sistema internacional, 1783-1895”. In, Juan Carlos
Pereira (ed), História de las relaciones internacionales contemporâneas. Ariel.
Kissinger, H. (1995). Diplomacy. Simon & Schuster.
multinacional dinástica, os Saxe-Coburgo-Gotha, que dariam reis à Grã-Bretanha, Portugal e Bulgária, para
além da Bélgica, onde continuam a ser a família reinante.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 38-47
As Independências Ibero-Americanas no contexto das relações internacionais (1800-1825)
Nuno Canas Mendes
47
Marcos, D. (2014). “Doutrina de Monroe”. In Mendes, Nuno Canas & Coutinho, Francisco
Pereira (ed). Enciclopédia das Relações Internacionais. Dom Quixote, pp. 168-170.
McGrath, C. (2019). “Rudyard Kipling in America: What happened to the great defender
of the Empire when he settled in America’. The New Yorker.
https://www.newyorker.com/magazine/2019/07/08/rudyard-kipling-in-america
Mendes, N. C. (2017). História e Conjuntura nas Relações Internacionais. ISCSP.
Monroe, J. (1823). “Message of President James Monroe at the commencement of the
first session of the 18th Congress” (The Monroe Doctrine), 12/02/1823; National
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Stumpf, R. & Monteiro, N. G. (2022). 1822 - Das Américas Portuguesas ao Brasil. Casa
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