OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Dossiê temático
Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024
6
AS RELAÇÕES HISTÓRICAS ESPANHA-PORTUGAL E A INDEPENDÊNCIA DO
BRASIL: COMPARAÇÕES, INFLUÊNCIAS, INTERVENÇÕES
JOSÉ MANUEL SANTOS-PÉREZ
manuel@usal.es
Professor de História do Brasil na Universidade de Salamanca (Espanha). Atualmente é Diretor do
Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, do qual foi o primeiro
diretor entre 2001 e 2007. É Investigador Principal do Grupo de Investigação
Reconhecido (GIR) "BRASILHIS: História do Brasil e do Mundo Hispânico em perspetiva".
Os seus últimos livros são Histórias Conectadas - Ensaios sobre História Global,
Comparada e Colonial na Idade Moderna (Brasil, Ásia e América Hispânica); a versão
espanhola do Diálogo de las Grandezas de Brasil (com a colaboração de Sylvia Brito);
1822: Independencia, primeiro volume da trilogia Brasil: 1822-1922-2022 e Salvador de
Bahía, 1625. A "Viagem do Brasil" em notícias, relações e teatro com Irene Vicente
Martín e Enrique Rodrigues-Moura.
Resumo
Dois importantes processos históricos, a união das coroas ibéricas e seu impacto no Brasil e
o processo de independência brasileira, têm em comum a existência de interpretações
teleológicas e anacrônicas que impedem uma análise correta do que aconteceu. Este artigo
analisa as relações luso-espanholas no passado com foco no período da Independência do
Brasil, mostrando que a participação da Espanha foi muito mais importante do que se pensava
até agora.
Palavras-chave
Brasil, Independência, Comparações, Intervenção, Relações Espanha-Portugal.
Abstract
Two important historical processes, the union of Iberian crowns and its impact on Brazil, and
the process of Brazilian Independence, have in common the existence of teleological and
anachronistic interpretations that prevent a correct analysis of what happened. This article
analyses Spanish-Portuguese relations in the past with a focus on the period of Brazil's
Independence, showing that Spain's participation was much more important than expected
so far.
Keywords
Brazil, Independence, Comparisons, Intervention, Spain-Portugal relations.
Resumen
Dos importantes procesos históricos, la unión de las coronas ibéricas y su impacto en Brasil y
el proceso independentista brasileño, tienen en común la existencia de interpretaciones
teleológicas y anacrónicas que impiden un análisis correcto de lo ocurrido. Este artículo analiza
las relaciones luso-españolas en el pasado centrándose en el período de la independencia de
Brasil, demostrando que la participación de España fue mucho más importante de lo que se
pensaba.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
7
Palabras clave
Brasil, Independencia, Comparaciones, Intervención, Relaciones España-Portugal.
Como citar este artigo
Santos-Pérez, José Manuel (2024). As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do
Brasil: Comparações, Influências, Intervenções. Janus.net, e-journal of international relations.
VOL14, N2, TD2 - Portugal e Brasil: história, presente e futuro. https://doi.org/10.26619/1647-
7251.DT0124.1
Artigo recebido em 30 de Outubro de 2023 e aceite para publicação em 19 de Janeiro de
2024
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
8
AS RELAÇÕES HISTÓRICAS ESPANHA-PORTUGAL
E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL:
COMPARAÇÕES, INFLUÊNCIAS, INTERVENÇÕES
JOSÉ MANUEL SANTOS-PÉREZ
Introdução
Nos últimos anos, afortunadamente, assistimos a uma importante mudança na maneira
de entender e escrever História. É cada vez mais comum encontrar títulos que incluem a
palavra “global” e globalização”. Para uma parte da historiografia, as velhas “histórias
nacionais” estão em decadência e as “histórias conectadas”, ou connected histories,
fazem parte do vocabulário corriqueiro de qualquer estudante de doutorado. Vista desde
esse ponto de vista, a História das relações entre países cobra uma nova dimensão. Se
antes eram acentuados os aspectos de confronto, as diferenças, os conflitos, os
ressentimentos, as atitudes agressivas de uns para outros, aos poucos estamos
pensando mais na ideia de múltiplos contatos, conexões diversas, influências mútuas,
histórias conectadas e, até diria, histórias entrelaçadas.
O estudo e a interpretação do tema das “relações” hispano-portuguesas têm mudado ao
longo do tempo, e, nos tempos atuais, da “exceção ibérica” dentro da União Europeia,
não podia ser de outra maneira. Investimentos económicos de um e de outro lado,
milhões de turistas cruzando as fronteiras, milhares de trabalhadores de um país no
outro, múltiplas e frutíferas relações académicas, e, por que não lembrar, múltiplas
relações afetivas.
As visões dos nacionalismos confrontados de ontem deram passo, portanto, às visões
das relações fraternas de hoje. Toda história é história contemporânea, e portanto, a
maneira como nós, historiadores, olhamos o passado, muda com cada momento
histórico. Isso não é um problema, isso é a maior virtude da nossa disciplina científica.
Uma segunda ideia é que a questão das relações Espanha/Portugal, desde uma
perspectiva americana, ou melhor, a história das relações dos Reinos de Espanha e
Portugal, da Monarquia Hispânica e da Coroa de Portugal e suas conquistas, abrange
uma quantidade quase infinita de temáticas e possibilidades, que seria impossível
resumir (Ayllón Pino, 2006, passim).
Qualquer dos possíveis temas daria para um livro. Essa História das relações hispano-
luso-brasileiras vai dos finais da Idade Média, com o tratado da Linha de Demarcação de
Tordesilhas, que tem a sua própria história na América, com as tantas tentativas para
fixá-la no enorme território, até a sua superação com os tratados de limites do século
XVIII, que deram ao Brasil o seu tamanho continental; a história comum passa por Ana
Pimentel, mulher salmantina que introduziu o arroz no litoral de o Vicente nos anos 40
do século XVI; passa pelas invasões holandesas, a conquista holandesa de Salvador de
Baia de Todos os Santos e a recuperação pelas armadas luso-hispano-napolitanas de
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
9
1625; passa pelas duas restaurações: a portuguesa e a pernambucana; a fundação de
Colônia do Sacramento; e ainda, passa pela intervenção espanhola na Independência, a
intervenção portuguesa na Cisplatina, os projetos comuns dos liberais dos dois lados,
que pensaram criar uma “União Ibérica Liberal”, etc.
Um período que deve ser destacado singularmente é o período da união das coroas
ibéricas (a mal chamada “União Ibérica”), ou Período Filipino, o momento da anexação
do Reino de Portugal e suas conquistas aos vãos territórios de Filipe II (Filipe I de
Portugal) depois da crise sucessória de 1580-81.
Durante esse período, de 1580-1 a 1640, um enorme conjunto de territórios ficou unido
(pelo menos na teoria) sob a mesma coroa. De Macau a Lima, de Antuérpia a Goa, de
Olinda a Malaca, espaços imensos separados por enormes oceanos acumularam-se nos
mapas e nas estratégias dos conselheiros dos reis da Casa de Áustria em Madri. Um
império complexo, um império católico, a Monarquia Católica, como era conhecido na
época esse conglomerado. O vasto território ao qual se acrescentam em 1581 as
possessões portuguesas, nos mostra o teatro das primeiras fases da globalização ao
colocar sob o mesmo rei umas 225 cidades (nas quais se ouvia uma missa a cada meia
hora num lugar diferente do planeta) (Socolow & Hoberman, 1986, p. 3).
A união das coroas, os 60 anos de domínio Habsburgo, culminados pelo Rei Planeta,
Felipe IV (III de Portugal), não foi, não poderia ser, na América portuguesa, um período
neutro, um período qualquer.
Além das mudanças conhecidas por todos (divisão em dois Estados, Ordenações Filipinas,
expansão para o norte, etc.), podemos adicionar: expansão económica, reformas
administrativas e fiscais; legislação de proteção dos indígenas; organização do sistema
defensivo e muitas mais que o breve espaço que tenho não me deixa desenvolver com
detalhe.
A historiografia relativa a esse período, no passado, tem sido especialmente afetada pela
relação peculiar que a partir de 1640 têm tido Espanha e Portugal, e mais tarde pela
distância que o Brasil marcou em relação a sua antiga metrópole desde 1822.
De fato, o período da União Dinástica foi visto tradicionalmente pela historiografia
portuguesa de tipo nacionalista como um período escuro, com um resultado catastrófico
para a situação de Portugal no cenário internacional. A suposta negligência dos reis da
Casa de Áustria com as possessões portuguesas, a sua preocupação extrema pelas
guerras na Europa e a prata americana, teriam determinado a perda dos territórios nas
primeiras quatro décadas do século XVII, especialmente entre os anos 1621 a 1641. Esse
argumento foi muito usado a partir dos ataques holandeses à Bahia e Pernambuco em
1624 e 1625 (Santos Pérez & Vicente Martín, 2023, p. 30-31).
Que o Reino de Portugal foi uma "vítima" da união das coroas, e não um dos principais
beneficiários, (que é o que a historiografia mais recente está mostrando), foi um tema
recorrente nas crônicas pós-Restauração de 1640, dada a necessidade do Duque de
Bragança, rei João IV, de legitimar a ação de 1 de dezembro.
Podemos dizer que tanto a história da união das coroas ibéricas, quanto a história da
Independência do Brasil, tiveram dois problemas interpretativos fundamentais,
problemas interpretativos, podemos dizer, na “vertical e na horizontal”.
Na vertical porque nos dois casos foram construídos relatos que, teleologicamente,
condicionavam todos os assuntos anteriores a uma resolução futura, no 1 de dezembro
de 1640, e no 7 de setembro de 1822, respectivamente, como se os homens de 1625
soubessem o que iria acontecer em 1640, ou como se os homens de 1808 soubessem
dos desenvolvimentos do ano 22.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
10
Essa visão de 1640, como se tudo o que aconteceu tivesse uma explicação a posteriori,
ou fosse um antecedente dos acontecimentos de dezembro desse ano, é um problema
de anacronismo metodológico que Fernando Bouza salientou na sua tese de
doutoramento.
cada acontecimento ocorrido nos anos entre 1580 e 1640 foi objeto de uma
interpretação tão unívoca e julgado a priori - seria melhor dizer a posteriori -
que acabou por perder todo o valor em si mesmo e foi reduzido a um simples
elo numa cadeia de acontecimentos que, inelutavelmente, teve de conduzir a
1640 (Bouza Álvarez, 1987, p. 4).
Algo parecido acontece com o relato dos fatos que conduziram à Proclamação de um
outro Bragança no 7 de setembro de 1822.
Devemos deixar claro que a Independência do Brasil não foi uma "história inevitável de
acontecimentos" como uma série de eventos concatenados que parecem uma sequência
com um fim inevitável e conhecido em 1822. Esta forma claramente teleológica de
encarar a questão leva à construção de uma espécie de "Lenda da Independência" que é
muito comum e típica de muitos livros de história básica no Brasil. A utilização de
mensagens breves e diretas nas redes sociais atuais impôs outra vez esta interpretação
prêt-à-porter na imaginação popular.
Este processo da emancipação brasileira não teve uma causa única ou um resultado
inevitável: a solução conservadora e centralista resultante, imposta a partir do eixo Rio
de Janeiro-São Paulo, que dominou a narrativa da sequência dos acontecimentos, não
foi a única possível.
Do ponto de vista “horizontal”, os eventos de 1580-1640, e os da Independência do
Brasil, também tiveram interpretações parecidas no passado, que devemos superar.
A visão de um Brasil isolado, quase como uma “ilha Brasil” durante todo o período
colonial, e concretamente, durante o período de 1580 a 1640, deve ser totalmente
revista.
No quadro da união das coroas ibéricas foram postas em marcha ligações planetárias que
transformaram a era moderna em todos os aspectos, fundamentalmente nas esferas
política, económica, religiosa e cultural, e o Brasil foi “praça do mundo”, como comentou
Ambrósio Fernandes Brandao no Diálogo das Grandezas do Brasil, protagonista de muitas
dessas conexões globais (Brandão, 2019, p. 199).
O estudo do período conhecido como o período dos "Felipes" ou "filipino" assumiu uma
grande importância nos últimos anos, em parte devido à sua consideração como o
"primeiro império global". Numerosas obras consideram abertamente este período como
a primeira manifestação do processo de "globalização na história”. Hoje seria impossível
considerá-lo, apenas, como um capítulo das relações “nacionais” entre a Espanha e
Portugal, como também seria impossível (mesmo se isso acontece frequentemente),
deixá-lo de lado na história do Brasil colônia.
Do mesmo modo, o processo de Independência do Brasil não foi um fenómeno "único",
"exclusivo" ou isolado. Partilhou muitos dos seus aspectos com o resto dos movimentos
independentistas na América, e alguns dos seus protagonistas mantiveram relações
muito estreitas com as correntes liberais da época, que tiveram uma influência notável
sobre eles. Portanto, é de maneira comparativa e conectada como devemos ver hoje os
acontecimentos na história. Uma autêntica revolução historiográfica.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
11
Na questão da Independência, a relação da Espanha com esse processo parece ter sido
negligenciada, mais ou menos como o período da união das coroas, na historiografia
luso-brasileira e espanhola.
É importante salientar que, igual ao que está acontecendo para o período colonial, na
nova historiografia sobre a Independência, protagonizada pelo tristemente desaparecido
Istvan Jancsó, por J. P. Pimenta, Márcia Berbel, Andrea Slemian, etc, já sim aparece de
forma clara a questão hispânica e o papel da Espanha e da América Hispana no processo
da emancipação política do Brasil.
A relação com a Espanha do processo da independência é evidente. Nessa visão ampla
da questão das relações Hispano-luso-brasileiras antes da Independência, acho que seria
interessante colocar os diferentes planos que nos podem dar dimensões de análise. Por
isso, abordarei a temática desde 3 perspectivas possíveis (dentre outras muitas):
1) A comparação (ou comparações);
2) A(s) influência(s);
3) A intervenção (ou intervenções).
Cada uma destas opções de análise nos leva a transitar por caminhos diferentes, alguns
deles já muito transitados pela historiografia, outros menos. No espaço que aqui temos,
não poderei fazer mais do que apontar alguns dos elementos mais destacados.
1) Comparações
Começando pela comparação, acho que é algo que sempre se fez. E se fez de maneira
intencionadamente errada. Os historiadores brasileiros do culo XIX e parte do XX
gostavam muito de fazer essa comparação de forma simples. O argumento era mais ou
menos o seguinte: na América Hispánica: fragmentação, republicanismo anárquico e
violência indescritível; no Brasil: unidade, monarquia, solução pactuada e pacífica.
Talvez o mito mais estendido e duradouro tenha sido este último de que a Independência
do Brasil foi um processo pacífico. Encontramos essa afirmação, inclusive hoje, em
trabalhos recentes de reputados historiadores especialistas nas independências da
América hispânica, pouco familiarizados com o processo brasileiro. Esse mito tem sua
origem na defesa da monarquia como elemento estabilizador, mas fundamentalmente se
originou como contraste e comparação com os muito violentos processos de
Independência da América hispânica. O argumento era: a América hispânica
independizou-se num caos bélico, enquanto a América portuguesa o fez de maneira
quase pactuada. A realidade foi outra.
A comparação nos leva, hoje, por outros caminhos.
O primeiro deles é que os dois impérios ibéricos compartilham um fato fundamental.
Como argumentaram Tulio Halperin Dongui e Antonio Annino, as Independências
foram uma consequência da crise dos Impérios ibéricos, e o a causa dela: foi a crise
terminal dos impérios ibéricos que provocou os movimentos de independência.
Segundo Annino, “Em 1808, as elites criollas o estavam a favor da independência, mas
durante os seguintes 15 anos mudaram de ideia, muitas vezes forçados pelas
circunstâncias” (Annino, 1995, p. 39).
Nesse sentido, as correntes mais recentes da historiografia sobre a América hispânica
têm salientado a importância do ano 1808 para o desenvolvimento do processo,
relativizando versões anteriores como a do nacionalismo hispano-americano, com base
nos argumentos de Bolívar dos “300 anos de opressão”, ou o argumento de John Lynch
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
12
sobre que as independências teriam sido uma reação à tentativa de mudança das
reformas dos Bourbons (Lynch, 1991, passim). Os dois sistemas, o espanhol e o
português, compartilham portanto a enorme importância do ano 8 e a crise dos impérios
para explicar os fenômenos independentistas.
E da mesma forma compartilham também outro fato importante: o processo de colapso
dos dois impérios teve como resultado a formação de dezenas de estados em América e
de dois estados na Europa: Espanha e Portugal (Suárez Cortina, 2010, passim).
É muito importante colocar num plano de fim do Antigo regime e de construção do estado
e da nação liberal, com suas tensões e retrocessos, tanto os processos dos estados
americanos como os processos dos estados europeus. E nesse sentido, devemos destacar
que nos dois casos veio primeiro a construção do estado e depois a nação, sendo o
estado-nação, na América e na Europa, um produto do século XIX.
E também: os impérios de Espanha e Portugal, o as unidades políticas resultantes da sua
crise terminal, compartilham que o que começou no período 8-22-24, foi um amplo
período de descolonização, tal como argumenta Carlos Guilherme Mota (Mota & Lopez,
2009).
Uma outra questão que me parece muito relevante para a comparação é a da vacatio
regis. A ausência de Rei, não física, mas jurídica. A ausência de legitimidade da cabeça
do estado.
Segundo Annino,
Na América hispânica, em 1808, depois de Napoleão ter forçado os Bourbons
para abdicar, os conselhos municipais dominados por criollos reagiram como
os da própria Espanha: a fim de legitimar as suas reivindicações de
autogoverno, invocaram o princípio do "regresso da soberania" em caso que
houvesse vacatio regis (Annino, 1995, p. 37).
A origem desse discurso é claramente a doutrina neotomista do século XVI da chamada
escola espanhola [ou Escola de Salamanca].
Mas Annino faz uma interessante nuance:
Durante a 'Era da Impotência', [como Burkholder e Chandler chamaram o
século e meio durante o qual os cargos coloniais podiam ser comprados], a
sociedade criolla consolidou-se. Ao mesmo tempo e, como resultado disso,
valores fortemente autonomistas tornaram-se parte da mentalidade
americana, ... segundo isto o estado era feito de numerosas corporações e
grupos independentes (Annino, 1995, p. 38).
Portanto, o pactismo tridentino original do século dezesseis foi transformando-se numa
espécie de contratualismo secularizado. Assim, no final do século XVIII, a noção de
(nação americana) tornou-se responsável pelos direitos naturais e históricos, adquiridos
durante o curso dos tempos. A ideia de que a nação americana era sujeita à monarquia
por um contrato livre garantido pelas suas próprias liberdades, tomou forma. Isso tudo
foi o que quebrou em 1808 com o “baile de la corona de Bayona”.
De alguma maneira, portanto, a Independência chegou como uma reação dos corpos
autónomos americanos à situação de vacatio regis criada por Napoleão.
Então, se na interpretação de Annino e de boa parte da historiografia sobre a América
hispânica, a vacatio regis provocou os movimentos de Independência, como explicar,
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
13
nesses termos, a Independência do Brasil, quando o que se produziu no sistema luso-
brasileiro foi uma sistemática presentia regis?
Houve presentia regis provisória em 1808; houve uma tentativa de presentia regis
definitiva em 1815, com a criação do Reino Unido. Quando quase se produziu a vacatio
regis com a saída de João VI em abril de 1821, a decisão de deixar um príncipe regente
era, precisamente, a de evitar uma vacatio regis na parte americana da proto-nação
portuguesa.
Porém, a vacatio regis finalmente apareceu. O regresso de João VI queria evitar ou pelo
menos contra restar os efeitos do movimento vintista, que, claramente, foi uma reação
metropolitana à vacatio regis. Porque a vacatio regis, no sistema luso-brasileiro, teve
risco de se produzir na metrópole.
Um documento da Biblioteca Nacional do Rio mostra que foi apresentada uma proposta
para que Portugal se tornasse uma "província" do "Império do Brasil", cogitando mesmo
a possibilidade de "elevar o Brasil ao estatuto de Reino, com Portugal como colónia"
1
.
No Brasil, a justificativa última da independência foi uma vacatio regis provocada pelas
cortes de Lisboa, as “pestíferas cortes” como as chamou o príncipe regente. O Manifesto
às nações amigas de José Bonifácio de 6 de agosto, e a proclamação de 7 de setembro,
podem ser entendidas também como reações a uma vacatio regis.
O Manifesto proclama: “como se o Brasil e o Mundo inteiro não conhecessem que o
Senhor D. João VI, Meu Augusto Pai, está realmente Prisioneiro de Estado, debaixo de
completa coação, e sem vontade livre como a deveria ter um verdadeiro Monarca” (Silva,
1939, p. 62).
O que não fica claro é se a correção autonomista do neotomismo da América hispânica,
tenha sido parecida na América portuguesa. Esse é um debate que ainda fica em aberto,
sendo assim que uma parte da historiografia portuguesa defende que, ao contrário do
que aconteceu na América hispânica, o elemento criollo, ou maçombo, no caso do Brasil,
não desenvolveu essa mesma força o caráter autonomista. Mas, o que é o nativismo
pernambucano, os movimentos de 89 na Bahia, de 17 em Pernambuco, e outros, se não
uma expressão desse caráter autonomista? Acho que esse é um interessante campo de
estudo que ainda devemos explorar.
2) Influências
O segundo plano de análise é o das influências entre os dois processos de fim dos
impérios e da Independência, e aqui temos, evidentemente, que pensar na influência da
Constituição de Cádiz no processo de Independência e duplamente constituinte de
Portugal e do Brasil. É inegável a influência de Cádiz em todo o processo luso-brasileiro,
e como tantos outros temas, também tem sido deixada de lado, e às vezes,
negligenciada. o podemos esquecer que a Constituição portuguesa de 1822, elaborada
pelas cortes constituintes, teve como fonte principal a de Cádiz, pois foram as Cortes
reunidas nessa cidade que inauguraram o chamamento de territórios situados fora da
Europa para comporem Assembleias Constituintes elemento presente na Constituição
portuguesa, que pode ter tido origem na Constituição de Cádiz (Bezerra, 2013, p. 99).
1
Biblioteca Nacional do Brasil, Coleção Moreira da Fonseca, I-33, 34, 015, 001. “Observações sobre o
melhoramento de Portugal: considerando como província dependente do grande Império do Brasil, s. d.”
Em relação com este ponto é importante salientar que o tópico de não ser «colónia de colónia» estivera na
origem do movimento do Porto em 1820.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
14
A Constituição de Cádiz: “Artículo 1. La Nación española es la reunión de todos los
españoles de ambos hemisferios”.
A Constituição portuguesa de 1822: “a Nação Portuguesa é ‘a união de todos os
portugueses de ambos os hemisférios’
As resistências de D. João a uma “contaminação” do texto gaditano no sistema luso-
brasileiro são bem conhecidas. A historiadora Saboia Bezerra nos lembra que o então
Príncipe Regente, D. João, pensando nas consequências que pudessem ter em Portugal
as ideias liberais espanholas, resolveu encomendar ao Conselheiro Silvestre Pinheiro
Ferreira um estudo, que veio a chamar-se Memórias Sobre os Abusos Gerais e Modo de
os Reformar e Prevenir a Revolução Popular, redigidas por Ordem do Pncipe Regente
no Rio de Janeiro em 1814 e 1815, que foi esquecido após a volta em 1814 de Fernando
VII. (Bezerra, 2013, p. 102).
A maneira como depois se desenvolveram os processos paralelos do movimento de Riego
na Espanha e do Porto em Portugal, tem tudo a ver com a influência da Constituição de
Cádiz, que talvez pelas peculiaridades do nacionalismo português tem sido negligenciada,
aprimorando a influência dos textos franceses ou americanos, por cima do espanhol.
Só nos últimos anos assistimos a uma renovação do campo de estudos da influência de
Cádiz no processo de independência do Brasil com autores/as como Márcia Berbel,
Andrea Slemian, João Paulo Pimenta, Heloisa Saboia Bezerra ou um interessante texto
dos historiadores Barreto-Pereira.
Os liberais brasileiros estavam familiarizados com o texto gaditano e a sua presença pode
ser rastreada em vários pontos do processo conducente à independência. Naturalmente,
a fama do texto de Cádiz levou a que fosse amplamente difundido nas cidades brasileiras
e, claro, na capital colonial, que se tornaria a capital de todo o Império Português.
Segundo Maxwell, Paulo Martin, livreiro no Rio, tinha à venda em 1821 vários exemplares
da Constituição espanhola, a dos Estados Unidos, as Bases e o Projecto da Constituição
Política para a nação portuguesa, e até um panfleto com o título: Análise da Constituição
espanhola adequada às circunstâncias de Portugal (Maxwell, 1986).
Uma vez que a revolução liberal teve lugar em Portugal em 1820, a falta de um texto
constitucional próprio significou que em várias ocasiões vigorou a Constituição de Cádiz.
O movimento revolucionário português de agosto de 1820 estabeleceu uma Junta
Provisional de Governo e fez jurar a Constituição Espanhola provisoriamente, até que
fosse elaborada uma lei fundamental lusa (Barretto & Pereira, 2011, p. 205).
Isto é o que aconteceu em Salvador da Bahia a 10 de fevereiro de 1821, quando os
comandantes e oficiais da guarnição da cidade decidiram jurar a Constituição portuguesa
e adoptaram provisoriamente a espanhola (Filho, 2008, p. 103). Alguns dias mais tarde,
a 26 de fevereiro, foi abortado um movimento de oficiais militares no Rio que também
estavam tentando que a Constituição espanhola fosse adoptada provisoriamente.
A tendência das exigências constitucionalistas no Brasil cresceu consideravelmente nos
primeiros meses de 1821. O clima era de incerteza, à medida que os rumores sobre o
regresso de D. João VI a Portugal foram agravados pela escassa informação sobre o tipo
de poder "regencial" que permaneceria no Rio de Janeiro.
Finalmente, em março, foram publicados os decretos que anunciavam a partida definitiva
do monarca, a convocação de eleições e a regência do Príncipe Pedro. Os eleitores do Rio
reuniram-se na Praça do Comércio da cidade, numa tumultuada sessão a 21 de abril de
1821, convocada pelo juiz distrital. Esta reunião, que deveria ter sido uma mera
formalidade, transformou-se numa assembleia e quase numa convenção. Após discursos
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
15
exortando o rei a não regressar a Portugal, a atmosfera tornou-se cada vez mais quente,
sob a pressão de uma multidão de pessoas que nada tinha a ver com as eleições, e
acabou por transformar o que era uma reunião de eleitores numa assembleia permanente
que não seria dissolvida até que o rei fizesse um juramento a um texto constitucional,
que, na ausência de um texto português definitivo, deveria ser a Constituição espanhola
de 1812. Uma comissão foi enviada para a residência real em São Cristóvão. O rei foi
acordado no meio da noite na Quinta da Boa Vista e reuniu o seu gabinete ministerial,
tendo o Príncipe D. Pedro também participando na reunião. D. João, entre espantado e
sonolento, com a aprovação dos ministros e do próprio príncipe, aceitou o pedido dos
comissários e assinou a Constituição espanhola (Oliveira Lima, 1996, 687). O decreto
de adopção de La Pepa, que foi imediatamente publicado, dizia como segue:
Tendo tomado em consideração o termo de juramento que os eleitores da
paróquia deste distrito, a pedido e declaração unânime do povo, prestaram à
constituição espanhola, e que trouxeram à minha presença real, (...) a fim de
que a dita presença, (...) para que a dita constituição espanhola esteja em
vigor interinamente a partir da data do presente decreto até à instalação da
constituição em que as atuais Cortes de Lisboa estão a trabalhar... (Monteiro,
1981 [1927]).
A Constituição de Cádiz, assim promulgada por D. João VI, foi a mais curta de todas as
constituições que teve o Brasil, uma vez que só esteve em vigor durante um dia. Em 22
de Abril, um regimento de caçadores cercou o edifício da Bolsa de Valores e entrou com
baioneta calada matando três e ferindo muitos. Assim terminou a chamada "assembleia
permanente" de eleitores no Rio, em palavras de Oliveira Lima: “O arremedo de
convenção vivera... l'espace d'une nuit” (Oliveira Lima, 1996, p. 687).
Tendo recuperado do susto e tendo medido o seu apoio entre o exército, o rei decidiu
revogar o decreto anterior e também confirmar a proclamação do seu filho D. Pedro como
Regente do Brasil, a partir do momento da sua partida para Portugal, que deveria ter
lugar no dia 26 de abril. Havia um sentimento de terror no Rio de Janeiro, e cartazes
apareceram na Praça do Comércio com as palavras: "Açougue dos Bragança" (Santos
Pérez, 2021, p. 228).
Esta resistência à aplicação da Constituição espanhola não foi tão grande em termos
práticos: no processo de eleição dos deputados para os tribunais constituintes em Lisboa,
foi adoptado o sistema eleitoral previsto na Constituição. De facto, em instruções
promulgadas a 23 de novembro de 1820, em plena efervescência da Revolução Liberal
do Porto, todo o método de eleição previsto na Constituição de 1812 foi adoptado
literalmente, adaptando todos os artigos à realidade portuguesa (Berbel, 2008, p. 231;
Berbel & Sobrinho, 2022, passim). Os artigos definiram que "a base da representação
nacional é a mesma nos dois hemisférios", caracterizando o sufrágio indireto a três
níveis: paróquias, condados e províncias (Berbel, 2008, p. 231). Este foi um dos mais
importantes efeitos da influência gaditana: a divisão em províncias, que o Brasil teria até
1891, foi uma derivação do sistema eleitoral espanhol.
A Constituição de Cádiz, portanto, no que diz respeito ao processo eleitoral, estava em
vigor nos territórios portugueses naqueles primeiros momentos do movimento
revolucionário de 1820, até à proclamação das Bases da Constituição Política da
Monarquia Portuguesa, aprovadas a 9 de março de 1821. Quando estas Bases foram
enviadas ao Brasil, para que as novas províncias pudessem ser constituídas para
substituir as capitanias, foram acompanhadas pelas instruções para o processo eleitoral
emanadas do texto de Cádiz, o que significava que o Brasil já estava imerso no processo
constituinte (Berbel, 2008, p. 231).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
16
A Constituição de Cádiz também influenciou a forma como as Juntas Governativas
estavam organizadas, com um certo grau de autonomia, mas estreitamente
supervisionadas pelo poder militar dependente do governo central, e também no carácter
centralista que foi concebido na Pepa. Com efeito, todos os poderes, executivo, legislativo
e judicial, deveriam estar baseados em Lisboa, o que significava a supressão da Casa da
Suplicação e de todos os outros órgãos de governo que tinham sido criados desde a
chegada do tribunal português ao Rio de Janeiro. Foi sobre esta questão que surgiram
os primeiros desacordos entre os deputados eleitos pelas Juntas Governativas no Brasil
e os representantes das províncias portuguesas peninsulares. Os primeiros defenderam
a autonomia e mesmo a Independência de cada uma das províncias brasileiras, que os
representantes tinham o dever de defender ao lado ou acima da nação portuguesa,
enquanto que os segundos eram a favor da recentralização. Embora o sistema colonial
tenha sido declarado extinto em vários decretos devido ao seu carácter absolutista, ao
mesmo tempo foi lançada uma política "recolonizante", no sentido de que o Brasil deveria
regressar ao seu antigo estatuto subordinado ao centro do poder em Lisboa, e não
permanecer numa situação paralela ao de Portugal continental com a proclamação do
Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves em 1815. As antigas disputas sobre o
grau de autonomia ou soberania que tinham caracterizado os debates de Cádiz e da
Revolução Liberal de 1820, estavam agora a ser reproduzidas no sistema luso-brasileiro,
no calor das influências do texto de Cádiz e do acordo com as diferentes formas de
compreensão do liberalismo constitucional.
Mas, a partir da convocação das cortes do Brasil a 3 de junho, ficou claro que o argumento
centralista se aplicaria ao Brasil, e que os defensores da independência das províncias
nas cortes de Lisboa, como Antônio Carlos de Andrada, eram agora defensores de uma
completa unidade. Márcia Berbel e outros autores veem aqui uma possível influência de
Cádiz.
Isto nos dá outra interessante comparação: segundo Annino, na América Hispánica.
A crise do império produziu a independência e não o contrário. O que resultou
foi uma divisão dos países de acordo com o território das elites locais
governadas por caudillos, que garantiam a soberania dos organismos
intermediários, que era o que tinha sido inicialmente pedido em Cádiz (mas
Bolívar era completamente contra isto) (Annino, 1995, passim).
Podemos dizer que, onde fracassou Bolívar, ganharam os Andradas.
Uma vez proclamada a Independência em 1822 e após a coroação de Dom Pedro I como
Imperador do Brasil, o processo de elaboração de uma constituição para o novo Império
foi posto em marcha. Como mencionado acima, embora a maioria dos liberais que
apoiaram o imperador na sua ruptura com Portugal fossem a favor da monarquia
constitucional, houve uma divisão entre radicais e conservadores baseada principalmente
na maior ou menor restrição do poder do imperador. Os apoiantes do sistema restritivo
viram a Constituição de Cádiz como o modelo a seguir. Isto esteve presente aquando da
abertura da Assembleia Constitucional de 3 de Maio de 1823 e é por isso que D. Pedro
no seu discurso de abertura deu como exemplos as constituições da França de 1791,
Espanha de 1812, e Portugal de 1822, e chamou-as "totalmente teóricas e metafísicas e
portanto insustentáveis", ao mesmo tempo que fazia uma ameaça velada aos deputados
mais "democráticos": "Espero que a Constituição que fazeis mereça a minha verdadeira
aprovação", declarou.
Ao que JoBonifácio respondeu dizendo: "Até onde chega a minha voz, declaro, perante
a Assembleia e todo o povo, que teremos de organizar uma Constituição não
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
17
democrática, mas monárquica; serei o primeiro a conceder ao Imperador o que lhe é
devido" (Silva, 1986, p. 428).
É possível que Cádiz tenha tido essa influência mais marcante, mas é claro que depois
do monarca ter encerrado a Assembleia em novembro de 1823, tentou que os aspectos
mais radicais de Cádiz ficassem fora do processo brasileiro. Existe um debate sobre até
onde chegou a influência da Pepa na constituição resultante, outorgada de 1824. Uma
visão mais ampla que os grandes princípios constitucionais liberais franceses foram
introduzidos na constituição brasileira do ano 24 através do constitucionalismo espanhol,
malgré as palavras de D. Pedro na abertura da assembleia. Assim, segundo Barreto e
Pereira, questões chave de Cádiz aparecem também no texto da primeira constituição do
Brasil, como são:
1) A soberania nacional e representatividade;
2) A separação de poderes;
3) A monarquia constitucional;
4) A religião oficial;
5) O direito natural racionalista. (Barretto & Pereira, 2011, pp. 201-223).
Já para Márcia Berbel, existem duas reminiscências importantes de “La Pepa” em 1824:
a forma como a cidadania foi concedida no texto (incluindo os libertos) e o espírito
profundamente centralista do primeiro texto constitucional brasileiro (Berbel, op. cit.).
3) A intervenção
O terceiro plano de análise é o da dupla intervenção espanhola nas questões luso-
brasileiras, que tem claramente uma dimensão: as pretensões de Carlota Joaquina e, de
outro lado, a invasão portuguesa da Cisplatina.
O denominado por Pimenta “projeto carlotista” apareceu já em 1808, com o “Manifesto
dirigido aos fieis vassalos de Sua Majestade Católica El rey de las Españas e Indias por
su Alteza Real Doña Carlota Joaquina”. Nele pretendia ser reconhecida como sucessora
do monarca. Também solicitava o auxílio de D. João para expulsar os franceses da
península e para “manter na América a integridade e os princípios de legitimidade
dinástica ameaçados”. Ao que D. João contestava afirmativamente.
O projeto carlotista contou ao início com o apoio britânico, até que apareceu o decreto
de Libre Comercio dos portos do Rio da Plata. O projeto aparecia e desaparecia e foi
cogitado ainda com os sucessos de 1810-11 e 12-13. Estava definitivamente superado
em 1814 com a volta de Fernando VII.
O projeto criou outra situação para um projeto de “União Ibérica”, desta vez do lado
legitimista, quando, em setembro de 1810, Pedro de Sousa Holstein enviou uma memória
aos deputados espanhóis que preparavam a constituição na que afirmava que a rejeição
de Portugal e Espanha da expansão francesa aproximava as “Duas nações filhas da
mesma península e que o destino criou para ser irmãs, ... e que (…) unidas ofereceriam
à França uma massa ainda maior de resistência, e poderia surgir o mais resplandecente
Império do Mundo...“. Pimenta comentou que a medida renovaria a União Ibérica de
1580-1640 (Pimenta, 2017).
Também, quando se incluiu a Carlota Joaquina na linha sucessória em 1812, um
comentário no Correio Brasiliense de abril de 1812, também citado por Pimenta, dizia o
seguinte:
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
18
Se esta união se realizar agora, com a sábia medida que adotaram as cortes
de Hespanha; parecenos, que nenhum acontecimento político poderia ser
mais útil e interessante aos Portuguezes e Hespanhoes; porque a proximidade
da linguagem, dos costumes, das leys, &. faz com que Portugal se deva
considerar uma parte integrante da Peninsula; e como neste supposto
acontecimento fica salvo o orgulho nacional; porque os Portuguezes podem
dizer que he um Príncipe seu quem vai governar Hespanha visto que a varonia
he Portugueza; cessam os motivos de zelo, e descontentamento que alias
cempre existiriam
2
.
Esse era a primeira proposta de “União Ibérica” do período. A segunda chegaria das os
dos liberais dos dois reinos logo da revolução do Porto de agosto de 1820. Como
destacou Márcia Berbel, os integrantes do Sinédrio e os revolucionários do movimento
de Riego na Espanha tiveram intensas conversações desde agosto de 1820. Os liberais
portugueses esperavam o apoio dos espanhóis para a revolução do Porto e inclusive
chegaram a falar de uma “União Ibérica Constitucional”. É mesmo possível que o termo
“União Ibérica”, que depois, equivocadamente, se usou para definir o período 1580-1640,
tenha aparecido pela primeira vez neste momento.
O projeto mais sério foi o que foi pensado depois da morte de João VI.
Segundo Braz Brancato:
... entre os exilados liberais [espanhóis], a outorga da Carta lusitana [de
1826] produziu uma verdadeira euforia, ao mesmo tempo em que apresentou
o Monarca português como a mais viva esperança para verem restabelecido
na Espanha o regime pelo que lutavam, além de apresentar, já, como se pode
verificar, a proposta de uma união ibérica sob o cetro de D. Pedro (Brancato,
1995, p. 90).
Uma parte dos exilados espanhóis pensaram na possibilidade de que o Imperador do
Brasil aceitasse cingir a Coroa espanhola ou, amesmo, criar um Império Ibérico sob
sua direção, concretizando, assim, um antigo sonho de alguns peninsulares.
Dois meses depois do conhecimento da notícia de que D. Pedro IV havia concedido,
voluntariamente, ao seu reino uma Constituição, alguns emigrados lhe enviaram desde
Gibraltar um documento no qual propunham que aceitasse assumir a Coroa espanhola.
Fundou-se em Londres também um Clube Hispano-lusitano, com liberais dos dois países,
com o intuito de conseguir as condições necessárias para levar a cabo a revolução que
restaurasse o constitucionalismo nos Reinos peninsulares, quer através de uma união de
ambos ou através da formação de uma Monarquia dual com D. Pedro à cabeça.
Parece, portanto, que os exilados espanhóis buscavam manter a ideia da revolução liberal
com o apoio de Pedro I, depois da morte de Joao VI. Depois da volta de D. Pedro à Europa
abriu-se uma nova perspectiva para a luta dos liberais peninsulares, e de novo ressurgiu
a possibilidade de criar uma "União Ibérica”.
Conclusão
2
Correio Brasiliense, VIII, nº 47, abril de 1812, p. 555.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
19
Portugal, Espanha e Brasil, nas suas versões anteriores de Reinos, Estados e Vice-reino,
tem uma história relacional que é interessante analisar. Passa pela união das coroas e
pelo processo da Independência.
O papel da Espanha e dos vizinhos hispano-americanos do Brasil no processo de
Independência deste país foi muito mais importante do que a historiografia tradicional
nos apresentou. Passa por comparações interessantes, influências mútuas e intervenções
fundamentais. Esperamos que mais investigadores possam somar-se no futuro para
continuar conhecendo melhor esta parte da nossa história comum.
Referências
Annino, A. (1995). Some Reflections on Spanish American Constitutional and Political
History. Itinerario, 19:2.
Ayllón, B. (2006). Las relaciones hispano-brasileñas: de la mutua irrelevancia a la
asociación estratégica (1945-2005). Ediciones Universidad de Salamanca.
Barretto, V. & Pereira, V. (2011). ¡Viva la Pepa!: a história não contada da Constitución
española de 1812 em terras brasileiras. Revista do IHGB, 172(452), pp. 201-223.
Berbel, M. (2008). A Constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823).
Revista de Indias, vol. LXVIII, n. 242.
Berbel, M. R. & Sobrinho, B. (2022). “Autonomia e cidadania: experiências
constitucionais ibéricas e o Império do Brasil (1808-1824)”. In José Manuel Santos (ed.),
1822. Independencia, vol I. Ediciones Universidad de Salamanca, pp. 65-88.
Berbel, M. R. (2008). A Constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823).
Revista de Indias, vol. LXVIII, n. 242, pp. 225-254.
Bezerra, H. (2013). A Constituição de Cádiz de 1812. Revista de Informação Legislativa,
Ano 50, n. 198, pp. 89-112.
Bouza Álvarez, F. (1987). Portugal en la Monarquía hispánica (1580-1640). Felipe II, las
Cortes de Tomar y la génesis del Portugal católico. Tesis Doctoral. Universidad
Complutense de Madrid.
Brancato, B. (1995). Exilados espanhóis em busca de um rei constitucional. In Estudos
Ibero-americanos, XI, 1.
Brandão, A. (atribuído) (2019). Diálogo de las Grandezas de Brasil. Traducción,
introducción y notas de José Manuel Santos Pérez. Doce Calles.
Correio Brasiliense, VIII, nº 47, abril de 1812.
Filho, A. (2008). Projetos políticos na revolução constitucionalista na Bahia (1821-1822).
Almanack Braziliense, n. 07, pp. 102-118.
Lynch, J. (1991). Los orígenes de la independencia hispanoamericana. In L. Bethell
(ed.), Historia de América Latina: 5. La Independencia. Crítica, páginas 1-40.
Maxwell, K. (1986). Condicionalismos da independencia do Brasil. In Maria Beatriz Nizza
de Silva (coord.), O Império Luso-Brasileiro, 1750-1822. Estampa.
Mota, C. & Lopez, A. (2009). Brasil: una interpretación. Ediciones Universidad de
Salamanca.
Oliveira, L. (1996). D. João VI no Brasil. Topbooks.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
VOL14 N2, DT2
Título Dossiê temático - Portugal e Brasil: história, presente e futuro
Março 2024, pp. 6-20
As Relações Históricas Espanha-Portugal e a Independência do Brasil:
Comparações, Influências, Intervenções
José Manuel Santos-Pérez
20
Pimenta, J. (2017). La Independencia de Brasil y la experiencia hispanoamericana,
(1808-1822). Ediciones de la Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos.
Santos Pérez, J. & Vicente Martín, I. (2023). Estudio introductorio. “El Brasil en poder de
luteranos”: la conquista holandesa de Salvador de Bahía y su posterior recuperación en
su contexto. Historiografía, noticias, relaciones y crónicas. In SALVADOR DE BAHÍA,
1625. La “Jornada del Brasil” en las noticias, las relaciones y el teatro. Doce Calles.
Santos Pérez, J. (2019). “Queremos la Constitución...” La lejana sombra de Cádiz en el
proyecto constituyente brasileño. In Izaskun Álvarez Cuartero e Alberto Baena Zapatero,
De Imperio a naciones em el mundo ibérico.Ediciones Doce Calles, pp. 221-231.
Santos, J. (ed.) (2022). 1822. Independencia, Vol. 1. Ediciones Universidad de
Salamanca.
Silva, J. (1939). O Patriarcha da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva.
Companhia Editora Nacional.
Silva, M. (1986). «Da revolução de 1820 à independência brasileira». In Maria Beatriz
Nizza de Silva (coord.), O Império Luso-Brasileiro, 1750-1822.Estampa.
Socolow, S. & Hoberman, L. (1986). Cities and Societies in Colonial Latin America.
University of Mexico Press.
Suárez Cortina, M. (2010). El águila y el toro. España y México en el siglo XIX. Ensayos
de historia comparada. Universitat Jaume I, Servei de Comunicació i Publicacions.