OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 14, Nº. 2 (Novembro 2023-Abril 2024)
287
NA IMPOSSIBILIDADE DO ESTADO SOCIAL.
REGIMES DE BEM-ESTAR NA AMÉRICA LATINA: UMA RESENHA
BRUNO GONÇALVES BERNARDES
goncalvesbernardes@gmail.com
Doutorado em Ciência Política pelo ISCSP, Mestre em Ciência Política pela Stockholms Universitet
Statsvetenskapliga institutionen e licenciado em Relações Internacionais. Investigador do
Observatório Político, ISCSP-UL (Portugal)
ORCID: 0000-0003-1483-0470
.
Resumo
Este artigo pretende perscrutar a aplicabilidade do conceito de “regime de bem-estar social”
na América Latina. Enquanto conceito tido, primeiro, como operacional no caso dos países
ocidentais, encontra no subcontinente uma aplicabilidade específica, tendo em consideração
o formato da relação entre o Estado, o mercado e as famílias. Desta forma, pretende-se
avaliar a bibliografia que aplica este conceito ao caso latino-americano, contrastando-a com
a generalização do conceito de Estado Social, mas também especificando as suas diferenças
relevantes com a literatura sobre os regimes de bem-estar no “sul”. Finalmente, discute-se,
a par da desigualdade estrutural, a importância dos eixos “informalidade-formalidade” do
mercado de trabalho e “produtivismo-protecionismo” na definição dos diversos regimes de
bem-estar social latino-americanos.
Palavras-chave
América Latina, regimes de bem-estar social, informalidade-formalidade, produtivismo-
protecionismo.
Abstract
Latin America. As an operational concept applied in the Western countries, it finds a specific
applicability in the subcontinent, taking into account the format of several welfare mixes. In
this way, it is intended to evaluate the bibliography that applies this concept to the Latin
American case, contrasting it with the generalization of the concept of Social State, but also
specifying its relevant differences with the literature on welfare regimes in the “south". Finally,
it is considered that both structural inequalities, and the axes "informality-formality" and
"productivism-protectionism" are relevant in the definition of the various Latin American
welfare regimes.
Keywords
Latin America, welfare regimes, informal-formal, productivism-protectionism.
Como citar este artigo
Bernardes, Bruno Gonçalves (2023). Na impossibilidade do Estado Social. Regimes de bem-estar
na América Latina: uma resenha. Janus.net, e-journal of international relations, Vol14 N2,
Novembro 2023-Abril 2024. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.14.2.13
Artigo recebido em 8 de Agosto de 2023 e aceite para publicação em 6 de Setembro 2023
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Na impossibilidade do Estado Social. Regimes de bem-estar na América Latina: uma resenha
Bruno Gonçalves Bernardes
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NA IMPOSSIBILIDADE DO ESTADO SOCIAL.
REGIMES DE BEM-ESTAR NA AMÉRICA LATINA: UMA RESENHA
1
BRUNO GONÇALVES BERNARDES
1. Introdução
O otimismo que perpassou a análise sobre o papel das novas forças políticas na América
Latina conheceu, a partir da década de 2000, um debate renovado sobre as políticas
sociais do subcontinente. Este interesse é marcado por décadas de desigualdade entre
perspetivas ideológicas, políticas e teóricas sobre o seu desenvolvimento pós-colonial
(Malamud, 2009)?
O estudo do desenvolvimento latino-americano ganhou novas reflexões e debates com a
introdução das dimensões políticas, económicas e sociais do bem-estar social a partir dos
anos 1990 (Abel e Lewis, 2002; Barrientos, 2004; Cortés, 2012; Draîbe e Riesco, 2007;
Filgueira, 1998, 2004; Franzoni, 2005, 2007; Huber e Stephens, 2005; Mesa-Lago, 1994,
2014; Segura-Ubiergo, 2007). Neste caso, passou a abundar o debate teórico sobre a
aplicabilidade do Estado social, dos regimes de bem-estar social e a sua aplicabilidade
através de políticas públicas. Em paralelo, ressurgiu o debate sobre a capacidade do
Estado e do Mercado em produzir sistemas de redistribuição, em paralelo com a
desigualdade estrutural e o mercado de trabalho informal (Filgueira, 1998, 2004).
Ademais, o desenvolvimento latino-americano é um dos temas paradigmáticos que
definem a identidade da região, quer na forma de modelos regionais de desenvolvimento
e inserção internacional, ou ainda na forma de projetos potico-ideológicos muito
diversos (Cervo, 2008; Munck, 2008; Patrício, 2012). Esta matriz identitária encontra
não uma distinção com outras regiões do mundo, mas também as assinaláveis
assimetrias provocadas pela estrutura da economia política internacional (Cervo, 2008;
Patrício, 2012).
Além do mais, quase todos os Estados da região apresentam serviços de proteção social,
educação e saúde de baixa qualidade. Paralelamente, as políticas públicas de bem-estar
apresentam dinâmicas, tipologias e níveis diferenciados, tendo em conta a estrutura
económica, a política laboral, a estratificação ou variáveis políticas (Filgueira, 2004;
1
Artigo baseado, em parte, na Tese de Doutoramento do autor.
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Huber e Bogliaccini, 2010; Huber e Stephens, 2001). Neste plano mantém-se a
“divergência” e a “fragmentação” (Malamud, 2009), elementos relevantes na definição
identitária do subcontinente.
Neste sentido, no presente artigo procuramos encetar uma síntese das teses do bem-
estar social aplicáveis aos casos latino-americanos, colocando em evidência o conflito
entre Estado e Mercado, entre políticas de caráter protecionista e de caráter produtivista,
e entre modelos de desenvolvimento.
2. Regimes sulistas de bem-estar social
É no século XX que as questões sociais passaram a depender da capacidade dos Estados,
na sua relação com o Mercado, em atuar perante os problemas colocados pela
industrialização, por via da regulação. Conforme Göran Therborn (2012), o século XX é
o século das classes trabalhadoras, na medida em que passou a constituir-se como força
política inserida nas relações de poder estabelecidas pelo Estado. É neste contexto que
a garantia de direitos sociais surge como meio de participação na sociedade, ou seja, a
tal “cidadania social” de T. H. Marshall exercida através do acesso a uma parcela do bem-
estar económico. Dito de outra forma, os direitos sociais passam a ser garantidos por
meio dos direitos de cidadania, enquanto resultado de um processo de decomodificação
entre os indivíduos, o Estado e o Mercado (Esping-Anderson, 1990). Como resume
Stephens (2012: 514), “os direitos sociais de cidadania deverão incluir o direito ao
trabalho satisfatório e ao desenvolvimento pessoal, e não apenas uma parcela de bem-
estar económico e de segurança”.
Neste caso, os Estados passaram a assumir o objetivo de melhoria da condição humana
através da realização da liberdade individual e de um padrão de vida (Caeiro, 2015: 195).
Aqui, o Estado social assume um papel relevante no esquema regulatório enquanto
processo político, ideológico e administrativo que enforma a maneira como o Estado aloca
e define benefícios sociais, bem como os arranjos institucionais utilizados para financiar
e redistribuir (Baldock, 2007). Além disso, o Estado Social não se limita a regular as
relações sociais no seio do mercado de trabalho, mas assegura também a devida
decomodificação, ou seja, a capacidade de prover respostas, serviços e apoios sociais
para situações de desemprego, reforma ou doença (Baldock, 2007; Caeiro, 2015).
Na análise da “emergência dos Estados sociais” denota-se que estes não são fruto de um
“desenvolvimento progressivo”, mas sim da conjugação de fatores históricos, políticos,
económicos e sociais que variam de caso para caso e no tempo (Esping-Anderson, 1990;
Kunhle e Sander, 2012). É neste sentido que ainda na década de 1980, Titmuss
apresenta um quadro comparativo dos modelos de políticas sociais dos EUA, da Grã-
Bretanha e de outros países europeus, concluindo da existência de três modelos distintos
de políticas sociais: o modelo residual que se carateriza pelo eixo mercado-família,
fatores essenciais na manutenção da rede de apoio social, associados a um modelo liberal
que suporta a menor intervenção do Estado (Caeiro, 2015); o modelo industrial que
apresenta uma visão minimamente “meritocrática” uma vez que premeia trabalhadores
e empresas na base da produtividade; e, finalmente, o modelo institucional-redistributivo
que compreende a institucionalização pública do conceito de bem-estar social, incluindo
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um conjunto de políticas e instrumentos que salvaguardam as necessidades sociais dos
cidadãos (Baldock, 2007; Caeiro, 2015).
Nesta senda, Esping-Andersen debruça-se sobre a “substância teórica dos Estados
sociais” (Esping-Andersen, 1990: 19), tendo em consideração que os mesmos
“apresentam diferentes formas e tamanhos e variam substancialmente tanto na sua
orientação política como nos seus objetivos redistributivos” (Arts e Gelissen, 2012: 569).
Para Esping-Andersen, os Estados sociais compreendem um arranjo institucional (legal e
organizacional) entre o Estado e o mercado, que perfazem um determinado regime de
bem-estar social (Esping-Andersen, 1990: 2); estes regimes organizam-se em torno de
uma estratificação específica, originando-se a partir de estruturas, instituições e forças
sociopolíticas, contribuindo para diferentes trajetórias de desenvolvimento”, sendo
estas, social-democrata, liberal ou conservadora, mediante o seu grau de
decomodificação e os compromissos estabelecidos entre Estado, Mercado e Família.
No entanto, a noção de Esping-Andersen de regimes de bem-estar social baseados em
Estados fortes com mercados de trabalho formais, onde a população é protegida por um
complexo institucional e organizacional, não se aplica na maioria dos países asiáticos,
africanos e latino-americanos. Como consideram Arts e Gelissen (2002), o Estado social
não pode deixar de ser visto sobre a trajetória das sociedades capitalistas, industriais e
democráticas, definidas por históricos direitos de cidadania, e onde o Estado retém o seu
papel regulador, resultante de processos complexos de engenharia política e social. Para
o caso em concreto, o Estado Social deverá ser visto como,
um regime de política social que compreende uma grande variedade de
programas, com cobertura universal (ou perto disso), com regras universais,
com benefícios que permitem manter as pessoas fora do nível de pobreza e
que encontra uma base financeira sólida no sistema tributário (Huber e
Stephens, 2005: 2).
Neste caso, como considerar o Estado Social em sociedades onde o Estado encontra-se
muita das vezes incapacitado de atuar (O’Donnell, 2001), o mercado de trabalho é na
sua larga medida informal e onde a garantia de algum bem-estar social é suportado pelas
famílias ou pela comunidade (Gough, 2004; Gough e Wood, 2004)?
Neste contexto, surgiu a necessidade de criar um esquema teórico para incluir
devidamente os esquemas sociais dos regimes “sulistas” de bem-estar social. Por um
lado, Rudra (2007) distingue os modelos de tipo protecionista dos de tipo produtivista;
enquanto os primeiros prosseguem formas de proteção dos cidadãos face ao mercado
através de políticas públicas que promovem a decomodificação de forma corporativista,
ou seja, protegendo certos setores laborais ou grupos sociais historicamente ligados ao
Estado ou interconectados à relação Estado-Mercado; os segundos tentam promover
o acesso dos cidadãos ao mercado, priorizando certos setores da força de trabalho,
inseridos na estratégia internacional dos Estados e que apresentam produtividade.
Por outro lado, Gough (2004) distingue os regimes de tipo informal seguro dos regimes
inseguros. Nos primeiros, é garantido aos cidadãos uma certa medida de bem-estar
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através da rede comunitária e familiar, estabelecendo-se relações assimétricas e
informalmente hierárquicas, num sistema onde é difícil estabelecer a institucionalização
própria dos Estados de bem-estar social; os segundos não apresentam qualquer forma
de direitos sociais, vivendo da instabilidade criada quer por atores internacionais, quer
por elites locais. É neste sentido, e que em contraste com o conceito de regime de bem-
estar social, Gough (2013) apresenta o conceito mais abrangente de “regime de política
social”, incluindo-se as políticas públicas de saúde, educação e/ou demais programas
sociais. Gough (2013) apresenta ainda um enquadramento teórico dos regimes de
política social com maior ou menor informalidade, uma vez que considera que
informalidade do mercado de trabalho e as formas comunitárias e familiares de apoio
social têm um peso relevante nestas sociedades. Se, por um lado, o mercado informal
gera menos receita para o Estado, resultando numa menor capacidade de redistribuição;
por outro, o emprego informal é inconstante e dependente da flutuação dos mercados
internacionais, o que não permite a universalização da decomodificação em situações de
desemprego ou doença. Neste sentido, o emprego informal, o menor acesso à saúde em
caso de doença e baixa médica e os menores níveis de contribuição para sistemas de
previdência social, geram incerteza nos indivíduos e nas famílias, bem como diminui a
capacidade de redistribuição e decomodificação do Estado. Esta perspetiva permite uma
avaliação da pobreza, da exclusão social e do investimento social, em paralelo com as
medidas de incentivo à educação, à saúde e aos programas de transferência de renda
(Abel e Lewis, 2002; Barrientos, 2009; Huber e Bogliaccini, 2002; Lavinas, 2013).
3. Bem-estar social na América Latina
Como considera O’Donnell (2001), a América Latina é um subcontinente que enfrenta o
problema soberano do desenvolvimento, com profundas segmentações regionais
provocadas pela desigualdade, gerando-se entraves no acesso aos direitos cívicos,
políticos e sociais, conquanto a democratização não alcançou a população material e
legalmente pobre. As sociedades latino-americanas são compostas por bolsas de pobreza
e vulnerabilidade, às quais se juntam o iminente mercado informal de trabalho e a
volatilidade do cenário macroeconómico (Blank, 2012; Cepal, 2004; Filgueira, 1998,
2005).
O antigo modelo de substituição de importações latino-americano implantado entre as
décadas de 1930 e 1940 permitiu firmar um contrato social entre as diversas forças
sociais e políticas (Patrício, 2012). Com o eclodir das crises das dívidas soberanas, os
processos de redemocratização da segunda metade da década de 1980 iniciaram
processos de abertura das economias através de estratégias monetaristas (Ffrench-
Davis, 2005; Munck, 2008; Patrício, 2012). No entanto, este modelo acabaria por resultar
no aprofundamento da desigualdade, na geração de bolsas de pobreza e nas elevadas
taxas de desemprego formal apenas compensado pelo trabalho informal, gerando-se
alterações profundas no esquema capital-trabalho (Abel e Lewis, 2002; Ffrench-Davis,
2005; Huber e Stephens, 2012; Patcio, 2012; Munck, 2008, 2013).
Grosso modo, diversos autores têm-se focado na classificação dos tipos de regime de
bem-estar latino-americanos, seja pela discussão das suas tipologias ao longo de
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décadas (Filgueira, 1998, 2004; Mesa-Lago, 1994), seja pela discussão do conceito de
Estado Social (Blank, 2012; Segura-Ubiergo, 2007), ou ainda da análise da informalidade
do mercado de trabalho e da relevância da estrutura familiar (Cecchini et al., 2014;
Franzoni, 2005; Gough, 2004, 2013; Rudra, 2007; Valle, 2008, 2010). Mais
profusamente, tem-se adotado o conceito de “regime” aos casos latino-americanos
nomeadamente na relação entre Estado, Mercado e Família, analisando-se o papel que
cada um ocupa no esquema de bem-estar (Barrientos, 2004, 2009; Filgueira, 1998,
2005; Franzoni, 2005; Gough, 2004, 2013; Draîbe e Riesco, 2007; Segura-Ubiergo,
2007).
É nesta senda que Gough e Wood (2004) distinguem três tipos de regime: o Estado de
bem-estar - conforme identificados por Esping-Andersen -, o informal-seguro e o
inseguro. Os dois últimos são caraterizados por uma natureza informal pautada por
formas diferentes de capitalismo, uma continuada intermitência nas políticas públicas,
maior peso das relações informais de poder e formas difusas e particularistas de
exclusão, em sociedades onde continuam a proliferar instituições políticas “frágeis”,
regimes democráticos intermitentes e conflitos armados. No entanto, esta análise do
caráter “sulista” peca pela incapacidade de um olhar mais específico relativo à América
Latina, uma vez que somos confrontados com uma realidade que integra países como o
Uruguai ou a Argentina, El Salvador, Honduras ou Nicarágua. Não é por acaso que Gough
(2013) acabapor considerar que alguns dos regimes de bem-estar latino-americanos
poderão designar-se por proto-Estados Sociais, a par de regimes informais ou inseguros.
Outra linha de análise podeconsiderar a comparação com os regimes de bem-estar
asiáticos. Este caminho assenta na análise entre a informalidade, a relevância da família
e os aspetos “produtivistas” (Valle, 2008). Por “produtivismo” considera-se que o sistema
de bem-estar é uma extensão da política económica (Franzoni, 2005, 2007), ou seja, a
política social encontra-se focada na capacitação do capital humano por via do sistema
educativo e não pela proteção social, privilegiando-se a competitividade. Esta
comparação entre modelos paradigmáticas como os de Hong Kong, Taiwan ou Singapura
assinala uma linha de interpretação que se apresentaria como solução à continuada
informalidade do mercado de trabalho, sendo a política de emergência social da década
de 1980 um claro sinal de mudança na tríade Estado-Mercado-Família (Filgueira, 2005;
Lavinas, 2013; Valle, 2008, 2010). No entanto, apesar dos processos de liberalização do
Mercado, este “modelo asiático” não pode ser transportado para o cenário latino-
americano, onde o “produtivismo” não encontra um mercado de trabalho formal, um
Estado capaz de reforçar os fatores produtivos da sociedade e onde a política económica
não é orientada para a capacitação do capital humano.
É neste contexto que Mesa-Lago (1994) e Filgueira (1998) procuram cotejar a
especificidade dos regimes latino-americanos através de uma leitura histórica. Por seu
lado, Mesa-Lago (1994) classifica os países de acordo com a antiguidade dos seus
sistemas de proteção, entre os pioneiros da década de 1920 (Argentina, Brasil, Chile,
Cuba e Uruguai), intermédios entre as décadas de 1930 e 1940 (Costa-Rica, Panamá,
México, Perú, Colômbia, Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela) e tardios entre os anos
1950 e 1960 (Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Honduras). Enquanto os pioneiros
caraterizam-se por ter uma cobertura universal ou quase universal de proteção social,
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com certos setores protegidos de forma estratificada, os países tardios apresentam uma
pequena percentagem de população coberta e um limitado número de serviços sociais.
os intermédios, caraterizam-se, ora pela estratificação na cobertura e acesso a
serviços, ora por uma maior cobertura de caráter universal e não estratificada. A
estratificação é uma caraterística dos sistemas de proteção social latino-americanos,
caraterizados pelo corporativismo do período desenvolvimentista que reforçou a proteção
de certos setores profissionais, a meio do processo de urbanização que inicialmente não
incluiu os blue-collar workers (Mesa-Lago, 1994).
Por outro lado, Fernando Filgueira (1998) enfatiza o o processo histórico de
estratificação do gasto público social, mas também em que setores é aplicado esse gasto
público, adaptando a tese de Esping-Andersen através de uma análise institucional dos
regimes de bem-estar, definindo-se através de três fases históricas distintas: a inserção
liberal (1920-1950), o desenvolvimentismo (1950-1970) e a inserção pelo Consenso de
Washington. Durante o período desenvolvimentista, Filgueira considera três regimes:
universal-estratificado (Argentina, Chile, Uruguai e Costa-Rica) com uma extensa, mas
estratificada proteção social; excludente (El Salvador e Nicarágua) em Estados com
pouca capacidade de intervenção e parcos recursos; e o dual (Brasil e xico), que
combina bem-estar social de tipo estratificado nas zonas urbanas e de tipo excludente
nas zonas rurais. No entanto, estes regimes tenderam a assemelhar-se por via do
processo de liberalização dos mercados a partir das sucessivas crises das décadas de
1970 e 1980, a par da crescente informalidade do mercado de trabalho. Estes acabariam
por ter efeitos nas formas de proteção social, levando Filgueira (1998) a considerar que
o regime universal-estratificado passaria a dividir-se entre aqueles mais orientados para
o Estado, como são o caso do Uruguai e da Costa-Rica, dos casos da Argentina e do Chile
que escolheriam a via do mercado.
Nesta linha de raciocínio, Barrientos (2004) considera que até à década de 1980, a
América Latina apresentava traços similares com os regimes de tipo conservador
conforme classificados por Esping-Andersen, com enfoque na proteção social do mercado
formal. No entanto, entre as décadas de 1980 e 2000 assistiu-se à crescente importância
do eixo Mercado-Família, por via da maior dependência dos trabalhadores informais.
Neste sentido, a América Latina passou a ter um predomínio liberal das formas de regime
de bem-estar, a par da falta de políticas públicas consistentes (Barrientos, 2004, 2009).
O Mercado já disfuncional, deteriorou as suas competências na garantia de bem-estar, a
par do recuo do Estado na universalização de serviços, com a continuidade da
estratificação na proteção laboral e o aumento da informalidade laboral (Barrientos,
2004, 2009).
Por seu turno, Franzoni (2005) toma como dimenes o acesso ao rendimento e ao
mercado de trabalho, a participação relativa das famílias, as políticas públicas e o
mercado, o desempenho dos regimes e as condições sociodemográficas e
socioeconómicas, concluindo pela existência de quatro tipos de regimes: produtivista-
informal, protecionista-informal, informal assistencial e altamente informal. Se os
regimes de tipo produtivista-informal (Argentina e Chile) caraterizam-se por um menor
grau de informalidade do mercado de trabalho, nos de tipo protecionista-informal (Brasil,
Panamá e Uruguai) subsiste uma maior proporção de população ativa coberta por
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esquemas de segurança social, a par de educação tendencialmente universal. No caso
da distribuição de renda observa-se maior desigualdade nos regimes de tipo estadual-
focado e “muito heterogéneo” nos de tipo estadual-estratificado. Enquanto nos primeiros
subsiste uma maior depenncia do mercado (comodificação), especialmente entre a
fatia mais pobre da população, no segundo grupo (México, Brasil, Uruguai e Costa-Rica)
continua a existir o predomínio de certos setores protegidos na sua relação com o
Mercado, relegando para segundo plano as políticas públicas de combate à pobreza.
no grupo de países do regime informal-familiar (Venezuela), assistimos ao predomínio
do trabalho doméstico feminino não assalariado, a par da proteção estratificada de certos
setores e classes profissionais. Para Juliana Franzoni (2005), os regimes de bem-estar
latino-americanos o definidos por uma lógica “trajetória dependente”, ou seja, onde é
provável que mesmo com o processo institucional das décadas de 1980 e 1990, é
expectável a continuidade de certas dinâmicas na tríade Estado-Mercado-Família.
Numa segunda classificação, Franzoni (2007) reconsidera os conglomerados de países,
classificando os regimes de estatal-produtivistas (Argentina e Chile), estatal-
protecionistas (Brasil, Costa-Rica, México e Uruguai), familiares (Colômbia e Venezuela)
e altamente familiares (Bolívia). Os dois primeiros distinguem-se pelo grau de
mercantilização e no peso da família na obtenção de bem-estar. Já o terceiro grupo de
países apresenta, cumulativamente, menor grau de mercantilização da força de trabalho,
e menor decomodificação, com a relevância das relações familiares para a obtenção de
esquemas informais de bem-estar.
Paralelamente, outros autores têm vindo a questionar-se sobre a aplicabilidade do
conceito de Estado Social ou de Estado de Bem-Estar Social na América Latina, tendo em
conta a diversificação dos tipos de regime, bem como o peso do mercado de trabalho
informal e das brechas e vulnerabilidades verificadas, mas também pela proliferação de
novas políticas públicas a partir dos anos 2000. É o que se questionam Draîbe Riesco
(2007) quando tentam compreender se algum dos “sistemas de política social na
América Latina terá atingido a configuração institucional do que se compreende por
Estado Social. É neste contexto que Draîbe e Riesco (2007) consideram importante
destacar fatores como a urbanização, a demografia e o desenvolvimento humano, como
essenciais na análise, quer das alterações introduzidas nas décadas de 1980 e 1990,
quer de uma discussão sobre o “neodesenvolvimentismolatino-americano que parece
surgir nos anos 2000. A “mudança neoliberal” e o suposto ressurgimento do modelo
desenvolvimentista precisam de um enquadramento metodológico e teórico que
forneçam a possibilidade de considerar-se um “Estado social em desenvolvimento” na
América Latina (Draîbe e Riesco, 2007).
Noutro prisma, Huber e Stephens (2005) preferem “testar” a existência de um possível
Estado social latino-americano sob o ponto de vista do “sucesso” da política pública,
traduzido no combate à pobreza e desigualdade, no esforço de políticas sociais robustas
e na alocação progressiva de benefícios sociais. Para Huber e Stephens (2005) não existe
nenhum regime de política social na América Latina que contemple todos estes critérios,
com exceção do Uruguai. Os sistemas latino-americanos apresentam uma enorme
proporção de pobres e quase todos providenciam serviços de saúde e educação de baixa
qualidade, a par de esquemas de proteção social exclusivos (Huber e Stephens, 2005).
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O debate sobre as formas de capitalismo na América Latina tem vindo a analisar os
efeitos das políticas de reestruturação económica e do processo de democratização na
transformação dos esquemas de bem-estar. As décadas de 1980 e 1990 serviram não
para a reestruturação dos sistemas de pensão, saúde e educação, como também para
estabelecer o imperativo da estabilidade macroeconómica. Apesar do surgimento de
novos programas e políticas sociais e do aumento médio do gasto social por país, manter-
se-iam os problemas com a eficácia e financiamento dos sistemas de pensão e o caráter
exclusivista e estratificado dos sistemas de proteção social (Mesa-Lago, 2012). O
imperativo da estabilidade macroeconómica, em paralelo com o período de crescimento
económico da região, colocou uma vez mais no centro das atenções o debate sobre a
política económica dos regimes de bem-estar social (Haggard e Kaufman, 2009; Segura-
Ubiergo, 2007).
Neste contexto, Haggard e Kaufman (2009), consideram que a política económica e as
coligações de poder apresentam realinhamentos ao longo dos períodos destacados por
Fernando Filgueira (1998). Os autores sublinham a incorporação das classes
trabalhadoras urbanas e das organizações de camponeses no aparato das políticas sociais
na primeira metade do século XX, entre 1950 e 1980 e, finalmente, entre 1980 e 2005.
Para isso analisam o realinhamento político das diversas coligações de poder que
estabeleceriam diferentes regimes de bem-estar. Para tal, salientam a relevância da
performance económica, das estratégias de desenvolvimento, dos tipos de regime, do
processo de democratização, dos interesses dos grupos organizados e das coligações. Os
autores compreendem que os aspetos macroeconómicos e as estratégias de
desenvolvimento têm um papel relevante na expansão ou contração de políticas sociais.
Neste sentido, as diferentes estratégias de desenvolvimento traduzem diferentes
esquemas de política social, seja sob o ponto de vista do reforço de certas classes, seja
pela aposta diferenciada em setores como a educação. Finalmente, a competição eleitoral
e o processo de democratização produzem efeitos nas políticas sociais. A competição
eleitoral e a consolidação democtica são impactantes no expansionismo de políticas e
serviços sociais, visto que para Haggard e Kaufman (2009), os efeitos dos regimes
políticos o intercedidos por instituições próprias de cada regime e por pressões
económicas colocadas em diferentes períodos.
Também Segura-Ubiergo (2007) apresenta uma análise dos efeitos da economia política
no desenho de políticas sociais, tendo em conta o desenvolvimento económico e o grau
de abertura ao comércio internacional. Historicamente, é especialmente relevante o facto
de a América Latina ter expandido o seu quadro de bem-estar social durante o
desenvolvimentismo, um período protecionista, promovendo-se de certos setores sociais
e profissionais face aos efeitos da abertura ao comércio internacional. Este facto
promoveria a superproteção de determinados setores, claramente mais bem organizados
que os trabalhadores independentes, informais ou rurais. O desenvolvimentismo
estabeleceria uma bolsa de eleitorado com acesso a proteção social e a esquemas de
segurança social, ou seja, consolidou a estratificação dos serviços. Segura-Ubiergo
(2007) alarga ainda o quadro teórico para incluir a democratização, os movimentos de
trabalhadores e os partidos como fatores relevantes na análise.
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Neste enquadramento, o autor considera que existem diferentes caminhos possíveis de
desenvolvimento: um primeiro grupo (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Costa-Rica)
onde é possível encontrar traços da existência de um Estado social, apresentando gastos
sociais consideráveis; e um segundo grupo de países (Bolívia, El Salvador, Equador,
Guatemala, México, Paraguai, Peru, República Dominicana e Venezuela), onde não é
possível falar-se da existência de Estado social. Servindo-se de uma análise qualitativa
comparada, apresenta dois caminhos possíveis: um primeiro que configura o
desenvolvimento económico e o protecionismo, em conjugação com a democratização
(Brasil) os partidos de esquerda (Argentina), ou ambos (Chile e Uruguai). Um segundo
que conjuga a abertura comercial, a democratização e os partidos de esquerda (Costa-
Rica). Para o grupo de países sem Estado social, Segura-Ubiergo (2007) considera que
estes se podem dividir em dois grupos: o conjunto de países com baixo desenvolvimento
económico e industrialização, relativamente abertos ao comércio internacional, com
pouca ou nenhuma experiência democrática e fraca relação entre partidos e movimentos
de trabalhadores (El Salvador, Equador, Guatemala, Paraguai e República Dominicana);
e os casos da Bolívia e do Peru com baixos níveis de desenvolvimento económico e fraca
experiência democrática.
4. Para um quadro do bem-estar social na América Latina
Para Carlos Blank (2012) continua a não existir uma teoria do Estado social na América
Latina, uma vez que assistimos a sociedades “fortemente afetadas pela pobreza, pelo
mal-estar material e pela vulnerabilidade e volatilidade socioeconómica”, o que coloca
sérios problemas conceptuais (Blank, 2012). Para mais, Blank (2012) assume que a
aplicação do conceito de Estado de Bem-Estar depreende um nível de desenvolvimento
ainda não alcançado na América Latina, tornando “imprecisa e confusa” a aplicação
destes conceitos ou ainda de um possível Estado social em desenvolvimento como
apontam Draîbe e Riesco (2007) ou Segura-Ubiergo (2007). Neste contexto, como
podemos caraterizar o esquema de bem-estar social na América Latina?
Primeiro, pelo eixo informalidade-formalidade. A maior informalidade no mercado de
trabalho representará um regime com maior insegurança e mais dependente das relações
familiares e comunitárias, onde os fenómenos clientelares, o desemprego feminino e os
conflitos sociais assumem um papel relevante na definição da sua arquitetura (Gough,
2004; Gough, 2013; Gough e Wood, 2004; Rudra, 2005). Estes regimes serão também
aqueles onde o mercado e o Estado mas principalmente este último foram mais
tardiamente incorporados num esquema formal de proteção e incentivo de certos setores
profissionais (Mesa-Lago, 1994, 2012), tornando-se excludentes pela incapacidade
estrutural de redistribuição (Filgueira, 1998, 2004), mas também familiares ou altamente
familiares (Franzoni, 2005, 2007). Neste grupo podemos incluir como exemplos os casos
da Nicarágua, de El Salvador, da Venezuela ou ainda da Bolívia (até à década de 2000),
que se situam entre os regimes informal-seguro e informal-inseguro (Gough, 2004;
Gough, 2013; Gough e Wood, 2004).
Ainda neste eixo, a maior formalidade no mercado de trabalho classificará os regimes
ora de estatal-protecionistas ora de estatal-produtivistas (focados) (Franzoni, 2005,
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2007). No entanto, em ambos, a estratificação, por via da maior proteção de certos
setores e grupos profissionais, produz maior dependência do mercado especialmente
os setores dependentes da inserção internacional ou do Estado. A presença de maior
estratificação reproduz a desigualdade na distribuição de rendimento (estatal-
produtivista) ou uma maior heterogeneidade de salários (estatal-protecionista)
(Franzoni, 2005, 2007). Estes casos são também aqueles onde o Estado iniciou mais
cedo políticas de caráter social (Mesa-Lago, 1994, 2012) e onde o conflito se estabelece
entre a assunção de políticas de caráter produtivista ou protecionista, com o Chile a
assumir-se como paradigmático do primeiro e o Uruguai do segundo (Filgueira, 1998,
2004).
Figura 1 - Bem-estar social na América Latina nos eixos informalidade-formalidade e produtivismo-
protecionismo
Fonte: Autor
É no eixo protecionista-produtivista que se movem os casos latino-americanos a partir
da década de 2000 com a ascensão de políticas de caráter protecionista, nomeadamente
na Argentina, no Brasil, na Bolívia e na Venezuela, em contraponto às políticas de caráter
produtivista encetadas nas décadas de 1980 e 1990. No entanto, a par deste eixo, tem
crescido também a informalidade no mercado de trabalho, o que compromete a
capacidade de se aplicar os conceitos de Estado Social ou de Estado de bem-estar social
na América Latina (Filgueira, 1998, 2005; Gough, 2004; Cortés, 2008; Valle, 2008,
2010).
Segundo, a matriz de desigualdade define as relações de poder, o aparato estadual e o
formato das políticas, sob o ponto de vista do seu fracasso ou sucesso (CEPAL, 2016). A
desigualdade é um fenómeno que atravessa toda a história da América Latina e é um
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fator definidor de momentos de rutura. Paralelamente ao papel do Estado na definição
política das relações entre público e privado e das relações com o mercado (Abel e Lewis,
2002), consideramos que a matriz de desigualdade tem um peso fundamental na
definição de esquemas de bem-estar. O mesmo aplica-se à definição das relações de
poder entre grupos sociais, classes profissionais, partidos e governos (Huber e
Bogliaccinni, 2012). Ou seja, é expectável que a par da rutura produzida por processos
sociais como a industrialização e a urbanização (Abel e Lewis, 2002), de processos
macroeconómicos como a alteração dos modelos de desenvolvimento (Cervo, 2008;
Haggard e Kaufman, 1995; Patrício, 2012) e de processos políticos como a
democratização e os novos alinhamentos políticos (Pribble, 2013; Segura-Ubiergo,
2007), subsista o elemento desigualdade como definidor de uma continuidade entre
esquemas latino-americanos de bem-estar social.
Paralelamente, assiste-se à continuidade do elemento agroexportador e da dependência
da flutuação dos preços das commodities no mercado internacional (Ffrench-Davis, 2005;
Munck, 2008; Patrício, 2012). Para Whitehead (2006) é esta mesma diversidade
agroexportadora que coloca entraves ao desenvolvimento de estratégias, inclusive de
integração económica e comercial, que permita estabelecer os demais modelos de
desenvolvimento com caráter transformador da matriz de desigualdade. Tal como
resume Raquel Patrício (2012: 35), assiste-se à emergência de diversas contradições
económicas e estruturais que se integram na dinâmica da interação global comercial e
económica, ironicamente alimentadas pela quantidade e diversidade de recursos
naturais”.
5. Conclusão
A caraterização dos esquemas de bem-estar social na América Latina apresenta um
desafio de análise teórica que tem sido longamente debatido na literatura. Seja a partir
da experiência histórica dos Estados Sociais e dos regimes de bem-estar social, seja da
análise institucional da tríade Estado-Mercado-Família, seja dos modelos de
desenvolvimento “múltiplos e fragmentados” com experiências e resultados também
estes diversos, é claro que o estudo dos esquemas de bem-estar latino-americanos não
podem deixar de incluir os fatores históricos e estruturais como a desigualdade, a
estratificação das políticas, a capacidade institucional de redistribuição e o crescente
mercado informal.
Neste sentido, devemos ter sempre presente que os regimes de bem-estar social latino-
americanos resultam de reações institucionais, sociais e políticas à problemática colocada
pelos sucessivos modelos de desenvolvimento e, mais especificamente, ao que é
preconizado pela exploração dos recursos naturais ou dos setores agroexportadores na
sua relação intrínseca com o Estado (protecionista de certos setores) e com o Mercado,
ou, ainda mais especificamente, pela relação entre o primeiro e este último; ou seja, os
regimes ou esquemas de bem-estar e de proteção social emergiram em reação
institucional seja contra a visão política baseada no Estado, seja contra o mercado. É
esta reação aos modelos de desenvolvimento e de inserção internacional, a par da matriz
de desigualdade, que define os regimes de bem-estar social na América Latina.
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