OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 14, Nº. 1 (Maio-Outubro 2023)
209
POLEMOLOGIA DA ÁFRICA CENTRAL (1990-2020)
HENRIQUE MORAIS
hnmorais@gmail.com
Licenciado em Economia pela Universidade Técnica de Lisboa / Instituto Superior de Economia e
Gestão (ISEG). Mestre em Economia Internacional pelo ISEG. Doutor em Relações Interncionais:
Geopolítica e Geoeconomia pela Universidade Autónoma de Lisboa. Quadro do Banco de Portugal
(Portugal), onde desempenha funções de Coordenador da Área de Inovação e Suporte do
Departamento de Mercados. Fui Presidente da Comissão Executiva e Administrador da Invesfer
S.A., uma empresa do Grupo REFER, e ainda Administrador e Diretor Executivo da CP Carga.
Professor na Universidade Autónoma de Lisboa, UAL (nos Departamentos de Ciências Económicas
e Empresariais e Relações Internacionais) e no MBA em Corporate Finance da Universidade do
Algarve. É ainda membro do Observatório de Relações Exteriores da UAL, onde tem estado
envolvido em vários projectos de investigação, bem como na participação assídua nas várias
edições do Janus - Anuário de Relações Exteriores.
Resumo
Neste artigo propomos uma abordagem holística da conflitualidade, delimitando o espaço
geográfico a uma sub-região
1
, a África Central, embora mantendo ativos os vasos
comunicantes que derivam da mobilidade étnica e da flutuação das fronteiras territoriais.
A questão étnica, a geopolítica e a “maldição” dos recursos parecem-nos fatores explicativos
da conflitualidade bem mais apropriados do que a questão religiosa, ligada ao Islão, ou a ideia
dos “Estados falhados”.
Os processos de externalização e de faccionalismo, a dinâmica difusa e de dispersão das
alianças, a fluidez das mesmas obedecendo a vários alinhamentos, a extraversão e a
policefalia não são mais do que características bem visíveis da desordem e do caos do Estado
que não desapareceu, mas que simplesmente se alimenta, através de um fenómeno híbrido
(o Estado pós-colonial), das estruturas sociais fragmentadas para uma economia de
acumulação predadora.
Palavras-Chave
África Central; conflitualidade; recursos; etnicidade; religião
Abstract
In this article, we propose a holistic approach to conflict, delimiting the geographic space to
a sub-region, Central Africa, while keeping active the communicating vessels that derive from
ethnic mobility and the fluctuation of territorial borders.
The ethnic issue, geopolitics, and the resources curse seem to us to be more appropriate
explanatory factors of conflict than the religious issue, linked to Islam, or the idea of "failed
states”.
The processes of externalization and factionalism, the diffuse and dispersed dynamics of
alliances, their fluidity according to various alignments, extraversion and policefalia are only
visible characteristics of State`s disorder and chaos that has not disappeared, but simply
feeds, through a hybrid phenomenon (the post-colonial State), from fragmented social
structures for an economy of predatory accumulation.
Keywords
Central Africa; Conflict; Resources; Ethnicity; Religion
1
Optámos por considerar a África central uma sub-região, embora conscientes de que a classificação não é
unânime e muitos autores consideram a África Central uma região.
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Como citar este artigo
Morais, Henrique (2023). Polemologia da África Central (1990-2020). Janus.net, e-journal of
international relations, Vol14 N1, Maio-Outubro 2023. Consultado [em linha] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.14.1.11
Artigo ecebido em 23 de Janeiro de 2023, aceite para publicação em 3 de Março de 2023
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A conflitualidade na África Central: da religião à etnicidade e à política
O problema religioso a sul do Sahara pode ser considerado polissémico devido à forma
como penetraram as duas principais religiões monoteístas, o cristianismo e o islamismo,
no subcontinente. Na verdade, tratou-se de um processo lento, que durou vários séculos
e a que não são alheios os sincretismos próprios das religiões animistas.
A religião, por muito que grupos armados se afirmem, por exemplo, de obediência
salafista ou pentecostal, foi ao longo dos tempos um fenómeno de certa forma marginal
nas crises políticas africanas. A irrupção das crises, mais do que associada
prioritariamente a fenómenos religiosos, esteve relacionada, de forma direta ou indireta,
a reivindicações políticas identificadas com clivagens étnicas e os seus interesses
particulares.
Por tudo isto, foi algo surpreendente que a África Negra passasse a fazer parte da agenda
internacional no que diz respeito ao terrorismo por questões religiosas. Referimo-nos aos
ataques às embaixadas norte-americanas em Nairóbi e em Dar es Salaam, em agosto de
1998, quiçá o prenúncio de um ainda mais impactante acontecimento, isto é, os
atentados do 11 de setembro em Nova Iorque.
Também não parece existir um programa ideológico por detrás da conflitualidade em
África e, frequentemente, as forças beligerantes não hesitarão em utilizar receitas
provenientes de um qualquer tipo de tráfico para adquirir armamento. Aliás, talvez esta
relativa ausência de cariz ideológico na conflitualidade possa ter sido propiciada pela
forma como se processou a militarização das sociedades africanas, envolvendo, numa
trama desordenada de funções, forças regulares, milícias e grupos rebeldes, obedecendo
a uma lógica de indisciplina e de distorção do código deontológico de quem combate.
Neste contexto, a guerra em África é um fenómeno massificador que devastou o
continente de forma inédita, a partir da introdução do armamento industrial e da
conceção burocrática e territorializada do Estado-nação com base na etnicização das
identificações e filiações políticas (Bayart, 2018: 109). Ou seja, a clivagem étnica está
por detrás da criação de grupos armados, bem como de formações políticas nas situações
em que o cenário bélico lugar a convergências políticas iniciadoras de processos
eleitorais.
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Estabelecendo uma relação entre o fenómeno da conflitualidade e a etnicidade, verifica-
se que o problema interétnico é difuso, podendo ser infranacional ou transnacional,
obedecendo a uma lógica de caos geométrico e sistémico (Mashimango, 2015)
2
.
Na África Central, e em especial na região dos Grandes Lagos, o mosaico étnico é muito
fraturante, situação potencialmente agravada pelo "escândalo geológico" que constitui o
Leste da República Democrática do Congo, com implicações nos processos de
recomposição sistemática de alianças face às estratégias diferenciadas dos beligerantes.
A questão étnica e a conflitualidade a ela associada também caracteriza a faixa costeira
da África Central, como são exemplo os massacres da etnia Laris na região do Pool no
sul do Congo, quiçá porque os Estados costeiros possuem, em certa medida,
características muito semelhantes às da região dos Grandes Lagos do ponto de vista
étnico.
A problemática étnica, herdada das colonizações, pode, consequentemente, ser
manipulada em função de estratégias com múltiplos alcances e motivações, com
consequências trágicas como o comprovam os constantes massacres sobre civis em
zonas rurais e particularmente em campos de refugiados.
Independentemente do reconhecimento daqueles fenómenos de manipulação, parece
indiscutível a importância da problemática identitária no aparecimento da conflitualidade.
Ora, a problemática identitária, muito relacionada com o etnocentrismo e as clivagens
étnicas, está diretamente relacionada com uma sobrevalorização do indivíduo e da
comunidade à qual pertence. um retraimento, um fechar-se sobre si próprio, que é
próprio dos valores comunitários passados de geração em geração, em comunidades,
tribos, clãs ou etnias unas e indivisas.
Do ponto de vista político, embora a história seja mais remota, talvez possamos iniciá-la
em 1990 com a guerra civil no Ruanda.
A guerra civil no Ruanda foi impulsionada pelo regime amigo do Uganda, ambos
apadrinhados pelos EUA. O objetivo era duplo: por um lado, redesenhar as fronteiras
deixadas pelos europeus e controlar as minas do Leste do Congo-Kinshasa (Péan, 2010:
327-338) e, por outro lado, através do movimento armado liderado por John Garang (o
Lord's Resistance Army)
3
, impedir a influência no Corno de África do regime islâmico de
Cartum. Embora tenhamos de ser cautelosos em relação à expressão “redesenhar as
fronteiras”, podemos facilmente entender o seu significado à luz de uma reconfiguração
étnica que passava pela chegada ao poder da minoria Tutsi no Ruanda e Leste do Congo.
As tentativas de paz através dos acordos de Arusha falharam e, em 1994, após o
assassinato do presidente ruandês, a Frente Patriótica do Ruanda (FPR) de Kagame
tomou o poder. É a partir daqui, e um pouco mais tarde com o fim do mobutismo em
1997, que o ambiente de hostilidade se vai tornar mais volátil, até à chamada “Grande
Guerra de África”, entre 1998 e 2003.
Duas mudanças no campo ocidental foram fundamentais para a reconfiguração do mapa
geopolítico da sub-região, nomeadamente a alteração da política de Bill Clinton para
2
O caos geométrico remete-nos para uma lógica de geometria varável da conflitualidade, que será abordada
noutro ponto deste artigo.
3
Este movimento tinha as suas bases e as suas fontes de financiamento na região dos Grandes Lagos e
reivindicações no Sul do Sudão.
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África e o discurso de La Baule de François Mitterrand, em 1990, promovendo o fim do
monopartidarismo e abrindo as portas para as conferências nacionais em toda a
francofonia.
Os fatores ligados à problemática identitária atrás expostos, acelerados pelo processo
histórico, vão criar entre duas etnias com origens diferentes as condições para uma visão
genocida, como é exemplificado pelo Ruanda.
A "revolução Hutu" desencadeou um enquadramento propício para a diáspora e a
ostracização da minoria Tutsi, perante fronteiras porosas em que os refugiados de ambos
os lados circulam pelo Ruanda, Uganda, Burundi ou República Democrática do Congo.
Neste contexto, em abril de 1994, o abate do avião que transportava o Presidente Hutu
(J. Habyarimana) foi apenas um pretexto para a criação de um ambiente propício ao
"poder Hutu" das milícias Interahamwe e ao começo do genocídio, com a morte de quase
1 milhão de pessoas em cerca de dois meses.
Existem várias interpretações acerca do que se passou naquelas trágicas semanas:
visões oficiais de vitimização Tutsi chegando a comparar o grupo étnico à sorte dos
judeus durante o Holocausto, na sequência da propaganda difundida pela FPR após o
genocídio (Braeckman, 1994; 1996), ou ainda a ideia do duplo genocídio (Péan, 2010 e
Rever, 2020, entre outros), logo apelidada pelo discurso oficial como "negacionista". A
própria missão humanitária da Operação Turquoise foi considerada pela visão oficial
como uma farsa, uma forma de proteger e deixar fugir os genocidas.
Os acontecimentos posteriores vão fazer vacilar os "factos" da versão oficial. Em 1996,
a Frente Patriótica do Ruanda (FPR) invade o Leste da República Democrática do Congo,
um ano depois a Alliance of Democratic Forces for the Liberation of Congo (AFDL), de
Laurent Kabila, entra vitoriosa em Kinshasa. Em outubro de 1997, o Partido Congolês do
Trabalho (PCT) retoma o poder em Brazzaville pela força das armas e com o apoio de
tropas regulares angolanas.
Entretanto, entre 1998 e 2003, deu-se o maior conflito armado de África, em que
participaram oito estados e cerca de vinte e cinco movimentos armados, e que provocou
cerca de cinco milhões de mortos. Estava aberta a porta para a balcanização da República
Democrática do Congo. Movimentos como o Rally for Congolese Democracy-Goma (RCD-
Goma) ou o The March 23 Movement (M23, atualmente quase extinto), entre outros,
continuaram a disseminar o terror por províncias como o Kivu ou o Kasai.
As voltas e reviravoltas da geopolítica também desempenharam o seu papel.
Durante os anos noventa, como assinalado anteriormente, assistimos a uma relação
diplomática e política algo conturbada entre os dois principais atores extracontinentais
intervenientes, isto é, foram os anos difíceis da coexistência entre Washington e Paris
(Tedom, 2015: 24-37).
Na viragem do século, Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul ( BRICS) começam a
ganhar protagonismo, especialmente evidente no caso da China, após a adesão à
Organização Mundial do Comércio. A “sede” de matérias-primas por parte de Pequim
levou a uma nova abordagem para os países da África Central, a chamada relação
"ganhador-ganhador", resumidamente, a capacidade de assegurar recursos essenciais
para o crescimento do dragão asiático em troca de infraestruturas.
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Embora a China ganhe real ascendente em África, nomeadamente através do comércio,
tornando-se, desde 2015, no primeiro parceiro comercial de África, a ambivalência na
sua relação com o Ocidente, entre competição e cooperação no que diz respeito à
penetração nos mercados africanos, é no mínimo ambígua (Niambi, 2019).
Os últimos acordos bilaterais entre Paris e Pequim apontam para um trilateralismo com
a África Central, numa perspetiva entre recursos orçamentais e financeiros, que no caso
chinês são avassaladores, e experiência e tecnologia que podem ser oferecidos pelos
franceses, seguindo a tendência do multilateralismo dos últimos vinte e cinco anos.
Mas a verdade é que tanto o Hexágono como o "Império do Meio" continuam a privilegiar
as relações bilaterais com os diversos Estados da sub-região. O contrato sino-congolês
no sector mineiro é bem prova disso, por via da oferta de minerais raros e estratégicos
nas províncias do Katanga e do Sul e Norte Kivu, chegando mesmo a ser fortemente
criticado pelo Fundo Monetário Internacional, com a alegação de que poderia agravar a
dívida externa da República Democrática do Congo.
Em conclusão, aos fatores endógenos à conflitualidade, nomeadamente a questão étnica,
poderemos ainda acrescentar os problemas inerentes aos efeitos sobre uma população
maioritariamente rural de economias de renda em que as exportações se baseiam em
dois ou três produtos de base, bem como à promiscuidade e falta de transparência nos
negócios do Estado, aliadas à má governação
4
.
O resultado é invariavelmente a falta de coesão social e a consequente insegurança, visto
que a própria noção do "viver juntos" é posta em causa. Tudo isto configura um
catalisador no clima de violência exacerbada que é o denominador comum da maior parte
dos Estados da África central.
O caso extremo da região dos Grandes Lagos é só uma sintomatologia ou, se quisermos,
uma etiologia da agressividade latente própria da predação, tenha ela origens
económicas, políticas ou étnicas.
O antigo secretário-geral da ONU dizia em 2007: "Environ la moitié des conflits armés et
près des trois quarts des forces de maintien de la paix se trouvent en Afrique. Ceci parce
que des millions d'africains sont encore à la merci de régimes brutaux" (citado por
Bangui, 2015: 132).
Os cenários de convulsões repetidas durante décadas em países como a República Centro
Africana e a República Democrática do Congo tornaram-se recorrentes, envolvendo
diversos estados e as Nações Unidas. Naqueles dois países a violência tornou-se crónica,
impedindo o Estado de assegurar a integridade do território.
De 1998 a 2014, a República Centro Africana teve treze intervenções externas de
manutenção de paz. Em 2014 foram criadas mais duas forças de intervenção, uma da
União Europeia (“European Union Military Operation in the Central African Republic”), em
complementaridade com o contingente francês, que se retirou em 2016, e outra das
Nações Unidas (“Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a
4
Várias Organizações não Governamentais (como a Transparency International) referem-se aos "bens mal
adquiridos" pelos clãs da Guiné Equatorial, do Congo-Brazzaville e do Gabão, no poder há várias décadas,
bens provindos de desvios de fundos públicos.
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Estabilização da República Centro-Africana”), que substituiu o contingente anterior da
União Africana.
Na República Democrática do Congo, também após eleições pouco transparentes que
deram um terceiro mandato a Joseph Kabila, registou-se uma recrudescência das
atividades bélicas no Leste do país. Foi necessário recorrer novamente a uma resolução
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tendo sido criada mais uma força (“United
Nations Organization Stabilization Mission in the Democratic Republic of the Congo”) para
tentar neutralizar os rebeldes do M23.
A conflitualidade e a problemática identitária
A nova ordem mundial do pós-guerra criou instâncias supranacionais tanto nas áreas da
economia como do direito internacional. No entanto, por exemplo no que diz respeito à
intangibilidade das fronteiras e ao princípio de não ingerência, a carta fundadora das
Nações Unidas apresenta várias alíneas nos seus artigos que são, no mínimo, pouco
claras ou mesmo equívocas (Lagot, 2021: 26).
Em particular, o princípio do "direito à autodeterminação dos povos" é muito difícil de
articular com a pluridimensionalidade dispersiva dos fenómenos identitários. A
identificação étnica não obedece às fronteiras artificiais herdadas do período colonial, o
sentimento de pertença a um determinado grupo linguístico, com uma cultura própria,
uma história comum em que se partilha uma memória coletiva, e ainda uma genealogia
e uma mitologia bem definidas é que faz eclodir o sentimento comunitário.
E atrás deste sentimento de pertença estão relações e afetos mais ou menos recalcados,
que derivam de estatutos socioeconómicos diferenciados e que geram frustrações para
com aqueles que o diferentes. uma projeção regressiva e um investimento libidinal
que pode ser agressivo. Essa agressividade, manipulada através de relações de
parentesco e de linhagem, resulta muito frequentemente em conflitualidade, agravada
por estruturas políticas em estado embrionário.
Ou seja, não o os traços biológicos ou mesmo o estatuto social que definem e delimitam
as barreiras étnicas, nem supostamente um Estado que é perfeitamente artificial e que
não representa, nem de perto nem de longe, as populações no seu conjunto. A
identificação étnica prende-se muito mais com características culturais (mitologia,
cosmologias e regras de parentesco) e socioeconómicas (regime de propriedade da terra,
ausência de classes) dos diferentes grupos humanos.
Nessa perspetiva, a questão das origens hamíticas dos Tutsi, que lhes confere um
estatuto superior, por oposição à bantuização suposta da maioria Hutu ou dos Twa, é
uma efabulação criada pela administração belga, dividindo para melhor reinar. A
animosidade entre as comunidades diferenciadas vem de uma ancestral problemática
que deriva de três fatores assimétricos, o acesso, a distribuição e por vezes a a
escassez de terras, as atividades económicas diferenciadas de cada grupo
(agricultores/pastores; sedentários/nómadas) e, por último, a pressão demográfica
(vidé, entre outros, Senarclens, 2016: 148).
Além disso, existe uma questão de fundo que se relaciona com a economia doméstica
das sociedades clânicas ou de linhagens. A dimensão do problema estará no poder
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simbólico das chefaturas e no estatuto social que não deriva da riqueza, mas sim do
prestígio. É a segunda invariante que podemos encontrar e que não tem nenhum
parâmetro de comparação com as sociedades industriais das economias avançadas.
Os los de parentesco próprios das tradições seculares afrouxaram com a mobilidade
das populações devida à pressão demográfica e às alterações climáticas. não é possível
regredir até ao idílio das sociedades sem classes e sem trabalho num meio em que, com
um nível tecnológico muito baixo, se podem perfeitamente satisfazer as necessidades de
consumo (Sahlins, 1976: 43-63).
As categorias de "pobreza" e de "insegurança social", que estão muitas vezes ligadas ao
fenómeno da guerra, começam a fazer sentido durante a resistência aos impérios
coloniais e na realidade pós-colonial. A política seria assim, invertendo o aforismo de
Clausewitz, a prossecução da guerra por outros meios.
Teríamos de distinguir dentro da economia política e da fórmula jurídica da soberania
dois significados separados de dominação, o contrato-opressão e a guerra-repressão,
estando os dois ligados, respetivamente, ao Direito político e à guerra (Foucault, 1997:
15-19). A subordinação da política à guerra torna-se evidente, sendo esta última um
processo contínuo que nos levaria, pela dinâmica submissão/insurgência, para o conceito
de luta de classes (Terray, 1999; Sibertin-Blanc, 2013: 144-148). Desta forma,
distinguiríamos, alterando os preceitos de Clausewitz, como referido anteriormente, uma
passagem do estado de guerra para o aparelho de captura (no fundo, o surgimento do
Estado) e para aquilo a que Deleuze definia como sendo “Urstaat”.
5
E da luta de classes, por transposição, passaríamos para a biopolítica com a guerra de
raças e o racismo de Estado. Por outras palavras, se o fenómeno bélico antecede a
filosofia política através da inversão dos dois conceitos nas relações de poder, então a
violência possui uma arqueologia e uma filogénese que estão na base das crises político-
militares da África subsaariana sendo que as relações de poder e as hierarquias não são
acéfalas, mas sim policéfalas. Assim uma divisão e uma segmentação do poder que o
torna disperso e difuso (Rey, 2017: 193).
O caso paradigmático daquilo que estamos a afirmar é outro país da África Central,
enclavado no centro do continente, cuja fluidez das fronteiras e o espaço geográfico criam
outro geo-sistema do ponto de vista da violência: o Chade.
Atravessado a meio do território pela faixa saheliana, a norte fica o Sahara e a sul a
savana, nas zonas meridionais predominam as etnias com religiões cristã e animista, nas
zonas setentrionais a maioria da população é islâmica. Faz fronteira a sul com a República
Centro Africana, a leste com o Sudão, particularmente com o Darfour, a norte fica a Líbia
e a oeste o Níger.
O lago Chade é uma região de confluência geoestratégica, pois delimita vários Estados.
Serve, por exemplo, de base de retaguarda para o movimento terrorista Boko Haram
que está muito ativo no Nordeste da Nigéria. A base do Estado-maior da operação
Barkhane para o Sahel está estabelecida em N'Djamena.
5
Urstaat significa “Estado de Ur” referente a uma cidade da Babilónia, berço da primeira civilização e do
começo da história, se assumirmos que a história começa com a escrita.
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O regime, neopatrimonial (com base na renda do algodão e dos hidrocarbonetos), como
a grande maioria dos regimes da África negra, acabou por delapidar as receitas das
exportações, agravando ainda mais a longa guerra civil. Também como na maioria dos
Estados africanos, o presidente Idriss Déby, falecido em 2021, ia no seu sexto mandato
com mais de trinta anos no poder.
A ideia de que o ofício das armas cria uma anomia que se propaga à sociedade civil não
é absoluta. Numa economia de acumulação predadora, as lealdades são fluídas e
fragmentadas empurrando os diversos atores para uma lógica não linear de composição
de alianças. Por outro lado, há uma cristalização das identidades que vai para além da
etnicidade. Daqui decorre a tendência das forças regulares e dos combatentes das
diversas fações rebeldes, compondo-se na maioria das vezes em milícias pouco
organizadas, sobretudo quando não apoio regional, neste caso dos países vizinhos
(Líbia, Sudão e República Centro Africana) ou da antiga potência colonial (a França), para
um fenómeno bem conhecido, a warlord insurgency. (Debos, 2013: 104-108)
Invariavelmente, a história teria de começar mais atrás, com a formação do Frolinat
ainda nos anos sessenta. Na década seguinte, citando a mesma autora: "Alors que le
Frolinat des années 1970 s'inscrivait dans la mouvance anti-impėrialiste, les rébellions
des années 1990 et 2000 affichent, avec plus ou moins de maladresse, leur attachement
à la démocracie ou, moins souvent, au développement." (Debos, 2013: 94). Sinais dos
tempos? A verdade é que o Frolinat se ramificou numa série de organizações partidárias
com os seus respetivos braços armados. O próprio Mouvement Patriotique du Salut
(MPS), que levou Idriss Déby ao poder em 1990, seguiu esse mesmo caminho.
A relação do Chade com o Sudão e com a região do Darfour é muito semelhante com o
que se passa, por exemplo, entre a República Democrática do Congo, o Ruanda, o
Burundi e o Uganda. A porosidade das fronteiras, as lealdades étnicas e identitárias com
base no clã e no parentesco são bastante análogas.
A maldição dos recursos
O início do atual debate científico acerca da relação entre a existência de recursos
naturais num país/região e o desencadear de conflitos armados
6
deve-se aos trabalhos
de Collier e Hoeffler, nomeadamente através do Modelo de Ganância e Reclamação na
Guerra Civil
7
.
Na altura ocorreu uma rutura com a abordagem tradicional da ciência política, que
associava o início de uma rebelião à materialização de reivindicações/reclamações
suficientemente poderosas para motivar os indivíduos para formas violentas de protesto
(Collier e Hoeffler, 2004: 564). Esta rutura não foi sequer iniciada por Collier e Hoeffler,
surgindo este modelo antes como uma tentativa de aproximação da abordagem
tradicional da ciência política, em que a rebelião tinha um motivo (a reivindicação) e uma
explicação (a reivindicação atípica), com as abordagens mais próximas da economia, que
6
O debate científico começou por ser mais geral, até porque o modelo Ganâncias e Reclamações de Collier
e Hoeffler apresentava um conjunto alargado de variáveis explicativas para o surgimento da guerra civil.
Posteriormente, uma das variáveis em causa, a dotação de recursos naturais, viria a configurar, em si
mesmo, uma linha de investigação.
7
No original, Greed and Grievance in civil War”, sendo que utilizaremos de forma livre a tradução de
reclamação ou reivindicação para a expressão original “grievance”.
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viam no motivo a ganância - a rebelião seria uma indústria que gerava lucros do saque
(Grossman, 1999: 269-270), e na explicação a existência de oportunidades atípicas.
É aliás muito curiosa a referência de Collier e Hoeffler à abordagem de Hirshleifer (1995
e 2001), que classifica as possíveis causas do conflito em preferências, oportunidades e
perceções (Collier e Hoeffler, 2004: 564). Collier e Hoeffler mantiveram-se fiéis à
definição de um conjunto de variáveis (proxies) que ilustram os motivos
(reivindicações/reclamações) e as oportunidades (ganância), tentando assim alguma
conciliação entre a ciência política e a economia, sem abandonar a sua epistemologia
positivista e a sua metodologia dedutiva. No entanto, esta aproximação às “perceções”
de Hirshleifer a introdução das perceções induz a possibilidade de os motivos e as
oportunidades estarem a ser erradamente percecionadas(Collier e Hoeffler, 2004: 564)
será provavelmente o reconhecimento da utilidade de uma abordagem que incorpore
também uma componente indutiva e qualitativa.
Foram analisados cento e sessenta e um países, no período entre 1960 e 1999, tendo
sido identificadas setenta e nove guerras civis, definidas como a ocorrência de um conflito
interno que provoca pelo menos mil mortes por ano, das quais pelo menos 5% o
elementos das forças rebeldes e do governo. Em quatro países da áfrica Central foram
identificados esses episódios (Angola, Congo, República Democrática do Congo e Chade)
e, numa lógica de extraversão, mais três países dos Grandes Lagos, nomeadamente o
Ruanda, Burundi e Uganda, muito ligados à conflitualidade na República Democrática do
Congo, para além da Nigéria, cujo Nordeste faz fronteira com o Chade.
O modelo apresentou um vasto conjunto de variáveis de oportunidade/ganância,
nomeadamente a nível dos recursos naturais, das remessas da diáspora, do apoio
exterior, do custo de oportunidade nos rendimentos, do capital de conflito e da
capacidade militar, todas elas ilustradas por métricas
8
. Contemplou também as
chamadas variáveis de reivindicação/reclamação, isto é, o ódio religioso/étnico, a
repressão política, a exclusão política e a desigualdade económica
9
.
Collier e Hoefler constataram que modelos baseados nas oportunidades para a rebelião
têm bastante robustez explicativa, o que não ocorre com os modelos construídos a partir
de variáveis de reivindicação, em que a relevância estatística é significativamente mais
baixa (Collier e Hoeffler, 2004: 587).
Em particular, revelaram que a disponibilidade de meios financeiros é uma forma de criar
oportunidade para a rebelião, isto é, a existência de significativas receitas de exportação
de produtos primários e as remessas de emigrantes aumentam o risco de conflito: era
afinal a “maldição” dos recursos.
Os indicadores de reivindicações têm pouca significância estatística, com exceção da
exclusão política por questão étnicas e do ódio étnico, nomeadamente quando uma etnia
tem a dominância. Em conjunto com o efeito desfavorável ao conflito da diversificação
8
Essas métricas foram, respetivamente, i) exportações de produtos primários face ao produto interno bruto;
ii) emigrantes que vivem nos EUA face à população total do país; iii) guerras civis surgidas no período da
Guerra Fria face ao total das guerras civis; iv) rendimento per capita, jovens masculinos com ensino
secundário face ao total de alunos, crescimento do PIB per capita; v) tempo desde último conflito (em
meses) e vi) terreno montanhoso, cobertura de floresta, fracionamento social (étnico e religioso), densidade
populacional, concentração da população e população em áreas urbanas.
9
Com indicadores como i) fracionamento étnico, fracionamento religioso e polarização; ii) democracia; iii)
domínio étnico; iv) desigualdade de rendimento e desigualdade de posse de terras.
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étnica e religiosa, tal pode significar que a diversificação diminui o risco de conflito em
relação a sociedades mais homogéneas, desde que não exista uma relação de dominância
de uma religião e/ou etnia (Collier e Hoeffler, 2004: 588).
Por último, uma nota sobre a população e o tempo que decorreu desde o último conflito,
que têm em comum o fato de poderem ser indicadores de oportunidade ou de
reivindicação (Collier e Hoeffler, 2004: 588-589). Uma população mais elevada parece
propiciar mais frequentemente o conflito, enquanto o aumento do tempo em que um país
está em paz tende a tornar menos provável que surjam novos episódios de
conflitualidade.
Em conclusão, a oportunidade como explicação para o risco de conflito é consistente com
a interpretação económica da rebelião ser motivada pela ganância. É também consistente
com a motivação da reivindicação, na medida em que a perceção da reivindicação possa
ser generalizada às sociedades e difundida no tempo. Mas as reivindicações que motivam
os rebeldes podem não estar totalmente relacionadas com as grandes preocupações de
desigualdade, direitos políticos, e identidade étnica ou religiosa (Collier e Hoeffler,
2004: 589), ou seja, os rebeldes podem utilizar um discurso reivindicativo para explicar
um conflito por eles iniciado com um objetivo principal: a ganância.
O debate intelectual foi muito centrado na questão dos recursos naturais. Na verdade, a
existência de uma correlação estatística entre a dotação de recursos naturais e a
incidência de guerra civil foi inicialmente interpretada como uma evidência de que a
abundância de recursos naturais tornaria os conflitos armados mais prováveis (Samset,
2009).
Esta conclusão lançou rios tópicos de análise (Samset, 2009), dos quais neste
momento talvez seja mais relevante apenas um: existe mesmo uma correlação entre os
recursos naturais e os conflitos violentos?
Alguns testes empíricos ao modelo (nomeadamente Fearon, 2005) não encontraram uma
relação de causalidade significativa entre a guerra civil e um elevado peso das
exportações de produtos primários no produto interno bruto de um país, que era
justamente uma das variáveis explicativas utilizadas por Collier e Hoeffler.
Fearon (2005: 503-505) conclui que não há uma evidência clara que elevados níveis de
exportações de mercadorias do setor primário causem um alto risco de guerra civil”,
embora reconheça a existência de uma relação causal mais significativa entre as dotações
de petróleo e a conflitualidade. Aliás, a associação entre a guerra civil e a dotação de
recursos resulta do petróleo ser o principal componente das exportações de bens
primários e uma produção substancial de petróleo estar associada ao risco de guerra
civil.” Fearon acrescenta que “a existência de petróleo permite antever o risco de guerra
civil não porque fornece uma fonte fácil de financiamento para o arranque da rebelião,
mas provavelmente porque os estados produtores de petróleo m uma
organização/capacidade de intervenção relativamente baixa face ao seu elevado nível de
rendimento per capita, tornando o controlo do país ou da região um prémio tentador”.
Este argumento encontra ainda suporte nos trabalhos de De Soysa (2002: 407) quando
afirma que a relativa disponibilidade de recursos naturais não está relacionada com o
conflito, embora a disponibilidade de recursos minerais seja um previsor significativo do
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conflito”, bem como em Ross (2004: 352) que não encontra correlação entre a dotação
de produtos primários e o início das guerras civis.
Embora a existência de uma correlação entre os recursos naturais e as guerras civis não
tenha sido confirmada por grande parte dos estudos posteriores, a verdade é que o
modelo de Collier e Hoeffler abriu caminho a uma vasta literatura que relaciona alguns
tipos de recursos naturais (nomeadamente o petróleo e outros minerais) com aspetos
particulares do conflito, nomeadamente o seu início ou a sua duração (Samset, 2009 e
Ross, 2004, entre outros). E gerou também uma discussão adicional sobre a natureza da
relação que existe entre algumas das variáveis exógenas (indicadores de oportunidade e
de reivindicação) e a variável endógena, isto é, a guerra civil ou, de uma forma mais
geral, os episódios de conflitualidade.
Resta a interrogação: são variáveis como a dotação de recursos naturais que causam as
guerras civis ou, pelo contrário, a escalada de violência é que induz o aumento das
exportações, justamente para financiar os conflitos? A este propósito, destacamos o
trabalho de Mitchell e Thies (2012), numa abordagem apelidada pelos próprios detwo-
way relationsship between natural resources and civil war” (Mitchell e Thies, 2012: 218)
que se centra nos casos do petróleo, diamantes e capturas de pesca. Deste teste empírico
retiram-se duas conclusões: que as guerras civis tendem efetivamente a fazer reduzir os
recursos de petróleo e de diamantes dos países em conflito mas, por outro lado, assiste-
se a um aumento dos recursos piscatórios, pela diminuição das capturas associada à
mobilização de pescadores para a guerra (Mitchell e Thies, 2012: 238). Concluem assim
que we also show that the effect of civil war on resources may depend on the
characteristics of the resources and nature of the conflicts” (idem).
10
É ainda campo de discussão académica o tipo de dados a utilizar nos testes empíricos a
este tipo de modelo. Uma vez que se concluiu que nem todos os recursos naturais são
suscetíveis de terem uma ligação aos fenómenos de conflitualidade, então porque não
retirá-los da amostra e situar a análise apenas nos episódios de conflitualidade que
ocorram em países que exportam os produtos pririos suscetíveis de provocar esses
conflitos, notavelmente o petróleo e outros minerais?
Conclusão
Grande parte da literatura sobre o tema da conflitualidade na África Central considera
esse fenómeno como uma consequência direta dos chamados estados "falhados".
Tentámos rebater essa tese. Preferimos até a expressão Estados "frágeis" para evitar a
ideia de colapso dos mesmos. A nossa ideia é que esses Estados vivem da guerra como
uma condição sine qua non da política.
Outras abordagens baseiam-se na questão religiosa como causa mais provável para a
conflitualidade naqueles territórios.
Também não nos parece que seja a questão religiosa o motivo central para a
conflitualidade.
10
Este assunto foi debatido por vários outros autores, com uma especial referência para Roos (2004).
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Pelo contrário, julgamos que as causas deverão ser encontradas nos aspetos etno-
identitários, na política e na economia.
Os processos de externalização e de faccionalismo, a dinâmica difusa e de dispersão das
alianças, a fluidez das mesmas obedecendo a vários alinhamentos, a extraversão e a
policefalia não são mais do que características bem visíveis da desordem e do caos do
Estado que não desapareceu, mas que simplesmente se alimenta, através de um
fenómeno híbrido (o Estado pós-colonial), das estruturas sociais fragmentadas para uma
economia de acumulação predadora.
Quase toda a África Central entrou no novo século a "ferro e fogo".
Por um lado, o enquadramento político e económico está diretamente relacionado com o
desenvolvimento, em articulação com o papel das organizações internacionais. Por outro,
os problemas de identidade, como vimos, não se filiam objetivamente na definição dos
Estados saídos das descolonizações.
Parecem-nos serem estes os fatores principais para perceber as dinâmicas da
conflitualidade naquele espaço geográfico.
O objetivo desta análise foi tentar estabelecer uma causalidade do fenómeno da guerra
e interpretá-la numa relação causa-efeito. São estes os pressupostos básicos da
polemologia.
O estudo irenológico saí fora do âmbito a que nos propusemos. Seria oportuno fazê-
lo para que se pudessem encontrar soluções que nos levassem para uma nova fase da
história dos povos africanos. Uma história que não começa com a passagem dos europeus
pois a ideia de "povos sem história" é um mito, bem menos coerente que toda a mitologia
das sociedades de tradição oral.
Talvez sejamos também levados a refletir sobre as relações Norte-Sul. As conquistas da
ciência e da tecnologia, o Direito, as instituições políticas, os modelos económicos e as
manifestações da arte nada nos dizem à cerca da organização social daqueles que não
podem orgulhar-se de tais proezas. Nos anos 20 do século passado, Marcel Mauss,
herdeiro da sociologia durkheimiana e fundador da etnologia francesa, dizia que o
Ocidente teria que refletir-se no espelho e estar atento aos ensinamentos revelados
através da observação no terreno (Mauss, 2012: 219-248). Exotismo e arcaísmo, penso
que estamos todos de acordo. Quanto ao atraso, depende sempre da perspetiva.
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