OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 15, N.º 2
Novembro 2024-Abril 2025
35
A DESSECURITIZAÇÃO DA POLÍTICA DE IMIGRAÇÃO EM PORTUGAL:
SEPARAÇÃO ENTRE GESTÃO DAS MIGRAÇÕES E SEGURANÇA INTERNA
CONSTANÇA URBANO DE SOUSA
constanca.urbano.sousa@gmail.com
Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pós-graduada em
Direito Europeu e doutorada em Direito pela Universidade do Sarre, Alemanha. É Professora
Associada do Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa, investigadora
integrada do Ratio Legis e colaboradora do OBSERVARE (Portugal). Desde 1999, é membro da
Rede Odysseus - Rede Académica de Estudos Jurídicos sobre Imigração e Asilo na Europa
(Universidade Livre de Bruxelas). É coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação
em Direito das Migrações. É autora de uma vasta bibliografia sobre o direito de imigração e asilo
e o espaço de liberdade, segurança e justiça da União Europeia. É Presidente do Conselho Fiscal
do SIRP. Foi Professora Associada Convidada do Instituto Superior de Ciências Policiais e
Segurança Interna (1998-2015) e da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
(2004-2006, 2018-2020), onde lecionou Direito Europeu de Imigração e Asilo. Entre 2006 e
2012 foi Conselheira Técnica Principal na Representação Permanente de Portugal junto da UE
(REPER), responsável pela coordenação da secção de Justiça e Assuntos Internos. Foi Ministra da
Administração Interna no XXI Governo, deputada à Assembleia da República (XIII e XIV
Legislaturas) e membro da Comissão de Direitos Humanos dos Membros da União
Interparlamentar (UIP).
Resumo
A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em 29 de outubro de 2023, e a
subsequente transferência das suas responsabilidades em matéria de gestão da imigração e
dos procedimentos de asilo para a recém-criada Agência para a Integração, Migrações e Asilo
(AIMA), marcaram uma mudança significativa na potica de imigração portuguesa. Esta
reforma institucional representa o culminar de um processo que tem como objetivo a
dessecuritização da abordagem do Estado em relação às migrações internacionais, separando
claramente a sua gestão de considerações de segurança interna. A partir de outubro de 2023,
a gestão dos fluxos migratórios deixou de ser uma função policial, tendo a documentação dos
imigrantes sido confiada a um organismo puramente administrativo. Para compreender as
implicações desta reforma, é essencial examinar tanto a evolução da política de imigração
portuguesa como as caraterísticas únicas do SEF. A primeira secção deste artigo explora a
evolução geral da política de imigração em Portugal, caracterizada pela transformação do país
num destino significativo de diversos fluxos migratórios. A segunda secção apresenta uma
visão geral do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Por último, o artigo discute a
lógica subjacente à sua dissolução e à substituição das suas funções de gestão da imigração
e do asilo por uma agência administrativa (não policial) que herdou igualmente as
responsabilidades de integração e de luta contra a discriminação do Alto Comissariado para
as Migrações.
Palavras-chave
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; Agência para a Integração, Migrações e o Asilo;
dessecuritização da política de migração.
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A Dessecuritização da Política de Imigração em Portugal: Separação entre Gestão das
Migrações e Segurança Interna
Constança Urbano de Sousa
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Abstract
The extinction of the Foreigners and Borders Service (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras -
SEF) on 29 October 2023 and the subsequent transfer of its responsibilities for managing
immigration and asylum procedures to the newly established Agency for Integration,
Migration, and Asylum (Agência para a Integração, Migrações e Asilo AIMA), marked a
significant shift in Portugal’s migration policy. This institutional reform represents the
culmination of a process aimed at de-securitising the state’s approach to international
migration by distinctly separating migration management from internal security
considerations. From October 2023 onwards, the management of migratory flows is no longer
a police function, with the documentation of immigrants being entrusted to a purely
administrative agency. To comprehend the implications of this reform, it is essential to
examine both the evolution of Portuguese immigration policy and the unique characteristics
of SEF. The first section of this article explores the general evolution of immigration policy in
Portugal, characterised by the country's transformation in the 1990s into a significant
destination for diverse migratory flows. The second section provides an overview of the now-
defunct Immigration and Borders Service. Finally, the article discusses the rationale behind
its dissolution and the replacement of its functions in immigration and asylum management
by an administrative (non-police) agency that has also inherited the integration and anti-
discrimination responsibilities of the High Commission for Migration.
Keywords
Immigration and Borders Service; Agency for Integration, Migration and Asylum; de-
securitization of migration policy.
Como citar este artigo
Sousa, Constança Urbano de (2024). A Dessecuritização da Política de Imigração em Portugal:
Separação entre Gestão das Migrações e Segurança Interna. Janus.net, e-journal of international
relations. VOL 15 N 2, Novembro 2024-Abril 2025, pp. 35-54. https://doi.org/10.26619/1647-
7251.15.2.2.
Artigo recebido em 22 de Julho de 2024 e aceite para publicação em 15 de Setembro de
2024.
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A DESSECURITIZAÇÃO DA POLÍTICA DE IMIGRAÇÃO EM
PORTUGAL: SEPARAÇÃO ENTRE GESTÃO DAS MIGRAÇÕES E
SEGURANÇA INTERNA
CONSTANÇA URBANO DE SOUSA
Introdução
A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a 29 de outubro de 2023, e a
transferência das suas responsabilidades em matéria de gestão dos procedimentos de
imigração e asilo para um organismo administrativo recém-criado, a Agência para a
Integração, Migrações e Asilo (AIMA), representam uma mudança marcante na política
migratória portuguesa.
A compreensão do alcance desta reforma exige uma apreciação das caraterísticas únicas
do sistema português de gestão das migrações em vigor até outubro de 2023, que
envolvia duas entidades públicas: o SEF e o Alto Comissariado para as Migrações.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) reunia um conjunto de competências
relacionadas com o controlo das fronteiras, a imigração e o asilo - funções que, noutros
países, estão tipicamente divididas entre rios organismos policiais e administrativos.
O papel do SEF na gestão da documentação dos imigrantes e requerentes de asilo foi
agora transferido para a AIMA. As suas responsabilidades de controlo de fronteiras e de
policiamento foram distribuídas por outras forças policiais, nomeadamente a Polícia de
Segurança Pública (responsável pelo controlo das fronteiras aéreas), a Guarda Nacional
Republicana (responsável pelo controlo das fronteiras marítimas) e a Polícia Judiciária
(responsável pela investigação de crimes relacionados com a migração, como o auxílio à
imigração irregular, angariação de o de obra estrangeira em situação irregular, o
casamento de conveniência e o tráfico de seres humanos).
O Alto Comissariado para as Migrações, entidade pública administrativa, era responsável
pela definição e avaliação das políticas blicas em matéria de migrações, promovendo
a atração de imigrantes (apesar de o ter competências na emissão de vistos ou
autorizações de residência) e apoiando a sua integração e inclusão social. Também
combatia a discriminação e fomentava o diálogo intercultural e religioso (artigo 3.º do
Decreto-Lei n.º 31/2014, de 27 de fevereiro, revogado pelo Decreto-Lei n.º 41/2023, de
2 de junho). Curiosamente, era também responsável pela inclusão da comunidade
cigana, apesar de ser maioritariamente composta por cidadãos portugueses e não
imigrantes. O Alto Comissariado para as Migrações foi também extinto, em outubro de
2023, tendo as suas competências sido absorvidas pela AIMA.
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Para compreender plenamente esta reforma, é necessário considerar tanto a evolução
da política de imigração portuguesa como o papel único que o SEF desempenhou neste
contexto. A primeira parte do presente artigo analisa a evolução geral da política de
imigração em Portugal, que foi significativamente influenciada pela transformação do
país, na década de 1990, num destino de fluxos migratórios diversificados e crescentes.
A segunda parte apresenta uma breve panorâmica do extinto Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras. Por último, o artigo analisa os fatores que levaram à sua dissolução e à criação
de uma nova agência administrativa centrada na gestão da imigração e do asilo, bem
como nas políticas de integração e antidiscriminação, anteriormente supervisionadas pelo
Alto Comissariado para as Migrações.
1. A política de imigração portuguesa: Uma visão geral
Portugal, tradicionalmente um país de emigração, transformou-se nas últimas décadas
num importante destino de imigração, atraindo um número crescente de imigrantes de
origens cada vez mais distantes e diversificadas.
Até à Revolução de 1974, que instaurou a democracia em Portugal, a principal
preocupação do regime ditatorial era o controlo da emigração. O Estado impôs uma
regulação rigorosa para evitar a partida de jovens necessários para a guerra colonial e
para prevenir a formação, no estrangeiro, de potenciais movimentos antirregime
(Galvanese, 2020). Foi a partir de 1975 que começou a chegar um número substancial
de imigrantes, sobretudo das antigas colónias africanas de Portugal, tendo a imigração
acelerado significativamente a partir da década de 1980 (Pires & Pinho, 2007).
Evolução do número de imigrantes legais em Portugal (1980-2023)
(Source: SEF, 2023; AIMA,2024)
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Em 1980, Portugal tinha apenas 50.000 imigrantes, maioritariamente oriundos de países
lusófonos. No final de 2023, este número tinha aumentado para mais de um milhão de
imigrantes com autorização de residência (AIMA, 2024), constituindo cerca de 10% da
população residente. Adicionalmente, existem cerca de 400 mil imigrantes em processo
de regularização gerido pela AIMA, que sucedeu ao SEF na função administrativa em
matéria de imigração e asilo (Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho).
Nas últimas décadas, o panorama da imigração em Portugal não se alterou
quantitativamente como também evoluiu estruturalmente. Embora o Brasil continue a
ser o principal país de origem dos fluxos migratórios para Portugal, o número de
imigrantes de países distantes como a Índia, o Nepal e o Bangladesh aumentou
exponencialmente nos últimos anos (SEF, 2023).
Ao contrário de outros países europeus, em Portugal a migração internacional não foi,
até pouco tempo, um tema significativo de debate político. No entanto, a crescente
diversidade dos fluxos migratórios introduziu uma maior diversidade étnica, religiosa e
cultural, o que, infelizmente, tem alimentado a narrativa de extrema-direita que retrata
a imigração como uma ameaça à identidade nacional. Por outro lado, a securitização da
migração internacional, associada à cobertura mediática dos fluxos migratórios
irregulares e das tragédias humanitárias - especialmente no Mediterrâneo, a fronteira
mais mortífera do mundo - contribuiu para uma perceção de invasão e de ameaça à
segurança. Estas perceções negativas, em grande parte impulsionadas pela extrema-
direita, podem levar a quadros regulamentares restritivos que acabam por causar fluxos
mais dramáticos e desumanos de imigração irregular (Sousa, 2019).
Até 4 de junho de 2024, data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3
de junho, que procedeu à 15.ª alteração à Lei da Imigração (Lei n.º 23/2007, de 4 de
julho), Portugal dispunha de um mecanismo permanente de regularização dos
trabalhadores imigrantes que entraram sem o visto adequado, mas que exerciam uma
atividade profissional. Este mecanismo evitou que os trabalhadores imigrantes ficassem
presos na irregularidade, o que teria aumentado a sua vulnerabilidade e exploração, bem
como dificultado a integração. No entanto, o atual governo de centro-direita (PSD/CDS)
revogou este regime, argumentando que era demasiado permissivo e refletia a chamada
política de “portas abertas”, que não consegue controlar os fluxos migratórios desde a
origem. Em particular, o Governo considerou que a possibilidade de regularização era um
poderoso fator de atração para a imigração irregular, materializado na entrada ao abrigo
do regime de isenção de vistos para estadias de curta duração ou de vistos de curta
duração que o permitem a concessão de autorização de residência, resultando em
centenas de milhares de processos pendentes. Por conseguinte, a partir de 4 de junho
de 2024, qualquer trabalhador imigrante que entre sem um visto de residência não
poderá regularizar o seu estatuto de residência.
É importante reconhecer as dificuldades práticas associadas ao regime de regularização
devido ao aumento significativo dos pedidos de autorização de residência por parte dos
trabalhadores imigrantes. No entanto, estes desafios resultam, em grande medida, da
insuficiência de recursos humanos nos departamentos governamentais responsáveis, do
insuficiente investimento em soluções digitais e da incapacidade da rede consular
portuguesa para acompanhar a realidade das migrações. Em todo o caso, uma lei de
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imigração restritiva não impedirá que Portugal seja um destino de fluxos migratórios,
apenas os tornará irregulares. É o que nos ensina a evolução da legislação portuguesa
em matéria de imigração, que tem demonstrado, consistentemente, a ineficácia de
medidas restritivas na gestão efetiva da imigração.
1.1 Leis de Imigração em Portugal: de 1980 a 2007
Antes da década de 1980, a regulamentação da entrada, residência e expulsão de
imigrantes encontrava-se fragmentada em várias leis promulgadas nas décadas de 1960
e 1970.
Em 1981, o Decreto-Lei n264-B/81, de 3 de setembro, consolidou a legislação sobre
imigração num quadro único, representando a primeira lei de imigração abrangente no
Portugal democrático. De acordo com esta lei, os imigrantes eram geralmente obrigados
a possuir um visto consular para estabelecer residência em território nacional (artigo
11.º). Além disso, o exercício de atividades profissionais exigia um visto de trabalho
prévio emitido pelo Serviço de Estrangeiros (artigo 16.º), uma entidade autónoma da
Polícia de Segurança Pública que foi o antecessor direto do SEF, criado em 1986 (Decreto-
Lei n.º 440/86, de 31 de dezembro). A legalização da residência em Portugal era
permitida em circunstâncias excecionais (artigo 15.º). Esta legislação, que visava conter
o afluxo de imigrantes e a criação de uma força policial especializada para o efeito, reflete
uma política de imigração reativa em resposta ao aumento da população imigrante
durante a década de 1980 (Pires & Pinho, 2007).
Apesar da ênfase na imigração legal desde a origem, um número crescente de
estrangeiros continuou a residir e a trabalhar ilegalmente em Portugal. Em consequência,
o primeiro processo de regularização extraordinária de trabalhadores imigrantes teve
lugar em 1992 (Decreto-Lei n.º 212/92, de 12 de outubro), permitindo a legalização de
cerca de 16.000 indivíduos (Sousa, 2000; Malheiros & Baganha, 2001).
A adesão de Portugal aos Acordos de Schengen exigiu um novo enquadramento legal das
migrações, nomeadamente no que respeita ao combate à imigração irregular.
Consequentemente, em 1993, o governo de centro-direita do Partido Social Democrata
adotou uma nova Lei da Imigração (Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de março). De acordo
com Baganha (2005), esta lei visava “uma política de “imigraão zero”, tão restritiva e
selectiva nas entradas que, na prtica, estancasse o fluxo migratório (excepto para
efeitos de reunificaão familiar) e impedisse a fixaão de ilegais em território nacional”
(Baganha, 2005: p. 32).
Esta lei obrigava os trabalhadores imigrantes a entrar no país com um visto de trabalho
emitido pelos consulados portugueses, após parecer favorável da Inspeção Geral do
Trabalho (artigo 26.º). Este visto permitia uma permanência até 90 dias, prorrogável por
um máximo de 60 dias (artigo 18.º). Para obter uma autorização de residência, o
imigrante necessitava de um visto de residência (artigo 19.º), desde que o seu objetivo
de residência fosse considerado viável e dispusesse de meios de subsistência e de
condições de habitação adequadas (artigo 28.º). em casos excecionais de reconhecido
interesse nacional poderia ser concedida autorização de residência a quem não tivesse
entrado no país com visto de residência (artigo 64.º). O Decreto-Lei reforçou, ainda, o
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quadro legal de combate à imigração irregular, introduzindo sanções para as empresas
que transportassem indivíduos a quem seja recusada a entrada (artigo 101.º) e
criminalizando o auxílio à imigração irregular (artigo 93.º). No entanto, este quadro legal
rigoroso não impediu a imigração irregular, uma vez que muitos imigrantes continuaram
a entrar com vistos de curta duração ou ao abrigo de acordos de isenção de vistos e a
permanecer no país ilegalmente (Baganha, 2005).
A implementação do Acordo de Schengen em março de 1995, que aboliu os controlos
fronteiriços com outros Estados Parte, permitiu que imigrantes de países da Europa de
Leste entrassem em Portugal com vistos de curta duração emitidos por outros estados,
permanecendo posteriormente em situação irregular. Este facto, aliado à procura de mão
de obra e ao que Góis e Marques descrevem como a “integraão do mercado português
no plano de expansão das indústrias migratórias globais” (Góis & Marques, 2018: p.
131), levou a uma mudança estrutural nos padrões de imigração na década de 1990.
Para além de um aumento significativo da imigração, verificou-se uma diversificação das
origens, com um aumento notável dos imigrantes da Europa de Leste e do Brasil, em vez
de predominantemente dos países africanos de língua portuguesa (Malheiros & Baganha,
2001; Baganha, 2005; Góis & Marques, 2018).
Como referem Góis e Marques (2018), uma vez que Portugal deixou de controlar a
emissão de vistos Schengen por outros países, bem como a entrada de imigrantes ao
abrigo de regimes de isenção de vistos, a política de gestão das migrações começou a
ser influenciada pelas forças do mercado. Consequentemente, surgiu uma nova vaga de
trabalhadores imigrantes em situação irregular, o que motivou um segundo processo de
regularização extraordinária em 1996, regulado pela Lei n.º 17/96, de 24 de maio. Este
processo permitiu conceder autorizações de residência a cerca de 30.000 trabalhadores
imigrantes (Sousa, 2000; Malheiros & Baganha, 2001). Foi também um sinal de que a
gestão da imigração desde a origem, através da emissão de vistos de trabalho pelos
consulados portugueses, era inadequada, pois não impedia a entrada de mais imigrantes
para satisfazer as necessidades de mão de obra (Góis, 2022).
Neste contexto, o Partido Socialista, que chegou ao poder em 1995, implementou várias
alterações à política de imigração, incorporando na sua agenda governativa objetivos
programáticos que visavam melhorar a integração social e económica dos imigrantes.
Em 1996, criou o Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (Pires & Pinho,
2007), ao qual sucedeu o Alto Comissariado para as Migrações. Esta instituição foi extinta
em 2023, tendo as suas responsabilidades sido transferidas para a recém-criada Agência
para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
Em 1998, foi adotada uma terceira lei da imigração: o Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de
agosto. Esta lei continuou a privilegiar a regulação dos fluxos migratórios desde a origem
(Góis, 2022), estabelecendo um complexo sistema de vistos consulares em função do
objetivo da estada do requerente (artigo 27.º). Os trabalhadores imigrantes estavam
obrigados a obter um visto de trabalho, válido por um ano, com diferentes categorias
consoante a natureza da atividade profissional (artigos 36.º e 37.º). Em alternativa,
podiam solicitar um visto de residência para o exercício de atividades profissionais. Estes
vistos podiam ser concedidos com a aprovação do Instituto de Desenvolvimento e
Inspeção do Trabalho (ou, no caso das Regiões Autónomas, da respetiva secretaria
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regional). A admissão de trabalhadores imigrantes estava limitada a um período máximo
de dois anos (artigo 42.º) e estava subordinada às vagas de emprego que não pudessem
ser preenchidas por cidadãos da UE ou imigrantes a residir legalmente em Portugal
(artigo 41.º). Embora não se tratasse formalmente de um sistema de quotas, funcionava
efetivamente como tal.
De um modo geral, esta lei era restritiva e burocrática, não impedindo a uma nova vaga
de imigração irregular, predominantemente da Europa de Leste, para satisfazer a procura
de mão de obra em vários sectores da economia, como a construção e o turismo
(Baganha, 2005). Mesmo o regime excecional para a regularização de imigrantes no
interesse nacional (artigo 88.º) não conseguiu travar o aumento do número de
trabalhadores migrantes em situação irregular. Baganha considerava que este regime
tornou Portugal um país mais atrativo para as redes de tráfico de mão-de-obra”
(Baganha, 2005, p. 33). Um novo afluxo de migrantes da Europa de Leste,
particularmente da Ucrânia, Rússia e Moldávia, contribuiu ainda mais para o aumento do
número de trabalhadores migrantes em situação irregular. No final de 2000, no Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras havia 41.401 pedidos pendentes de autorização de
residência ao abrigo do regime excecional previsto no artigo 88.º do Decreto-Lei n.º
244/98 (Baganha, 2005).
Em resposta à eventual necessidade de um novo processo de regularização
extraordinária, o Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de janeiro, procedeu a uma revisão
significativa do quadro legal da imigração laboral. Por um lado, incluiu o visto de trabalho
num sistema de oportunidades de emprego em sectores específicos, com base num
relatório aprovado pelo Governo, ouvido o Instituto do Emprego e Formação Profissional
e após parecer das associações patronais e sindicais (artigo 36.º). Por outro lado, criou
a “autorizaão de permanência”, uma espécie de autorizaão de residência que permitia
aos trabalhadores imigrantes em situação irregular regularizar o seu estatuto desde que
tivessem um contrato de trabalho com informação da Inspeção Geral do Trabalho (artigo
55.º). A autorização de permanência era válida por um ano e podia ser prorrogada até
um máximo de cinco anos (artigo 55.º, n.º 4). Este mecanismo de regularização
permanente associava efetivamente o controlo dos fluxos migratórios à regulação do
mercado de trabalho, uma vez que a regularização administrativa dos imigrantes estava
dependente da regularidade da sua relação laboral (Pires & Pinho, 2007).
Para Baganha este regime validava “a posteriori o funcionamento do mercado,
reconhecendo tacitamente a total inoperância dos mecanismos de regulaão existentes”,
sendo que a validade máxima da autorização de permanência implicava que as
necessidades de o de obra eram vistas como temporárias e circunstanciais (Baganha,
2005, p. 35). Na opinião de Góis, a procura de mão de obra barata por parte do mercado
de trabalho influenciou a política de imigração, passando de uma abordagem restritiva
para “uma política de porta semiaberta baseada nas necessidades conjunturais do
mercado de trabalho” (Góis, 2022, p. 94).
Entre 2001 e 2003, um total de 183.655 imigrantes foram regularizados ao abrigo deste
regime (SEF, 2004). Foram abrangidos não só imigrantes de países lusófonos como o
Brasil (37.920) e Angola (8.533), mas também um número significativo de imigrantes
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da Europa de Leste, particularmente da Ucrânia (64.595), Moldávia (12.632), Roménia
(10.926) e Rússia (7.047).
Em 2003, o recém-eleito governo de centro-direita (PSD/CDS) concluiu que este regime
flexível de regularização permanente de trabalhadores imigrantes tinha contribuído para
um aumento substancial da imigração irregular. Consequentemente, introduziu
alterações significativas à Lei da Imigração de 1998, através do Decreto-Lei n.º 34/2003,
de 25 de fevereiro. As principais alterações foram as seguintes: Em primeiro lugar, foi
abolido o regime de autorização de permanência (artigo 20.º), sem prejuízo dos pedidos
pendentes (artigo 18.º) e da renovação das autorizações já concedidas (artigo 19.º). Os
novos imigrantes passaram a ter de obter o visto adequado junto de um consulado
português. Além disso, o artigo 36.º revisto da Lei da Imigração de 1998 estabeleceu um
sistema de quotas anuais obrigatórias para a admissão de trabalhadores imigrantes. Por
último, o direito ao reagrupamento familiar foi restringido aos imigrantes titulares de
uma autorização de residência há pelo menos um ano (nova redação do artigo 56.º).
O sistema de quotas obrigatórias para a admissão de trabalhadores imigrantes
introduzido em 2003 revelou-se um fracasso. Era altamente burocrático e não refletia a
realidade da migração. Em 2004, apenas cerca de 10% das necessidades de o de obra
identificadas na quota anual obrigatória foram satisfeitas através da admissão de
trabalhadores imigrantes regulares (Baganha, 2005). Consequentemente, a escassez de
mão de obra continuou a ser colmatada através da imigração irregular.
Principais leis de imigração em Portugal
Ano
Lei
Decreto-Lei n.º 264-B/81
Lei de Imigração
Decreto-Lei n.º 440/86
Criação do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF)
Decreto-Lei n.º 212/92
1.º processo extraordinário de regularização
de trabalhadores imigrantes em situação
irregular
Decreto-Lei n.º 59/93
Lei de Imigração
Lei n.º 17/96
2.º processo extraordinário de regularização
de trabalhadores imigrantes em situação
irregular
Decreto-Lei n.º. 244/98
Lei de Imigração
Decreto-Lei n.º 4/2001
“Autorizaao de permanência”
regularização permanente de trabalhadores
imigrantes
Decreto-Lei n.º 34/2003
Lei de Imigração
Decreto Regulamentar n.º 6/2004
Regularização de trabalhadores imigrantes
Lei n.º 23/2007
Lei de Imigração
Lei n.º 28/2019
Regularização de trabalhadores imigrantes
em situação irregular
Lei n.º 73/2021
Restruturação do sistema português de
controlo de fronteiras
Decreto-Lei n.º 41/2023
Criação da Agência para a Integração,
Migrações e Asilo (AIMA)
Decreto-Lei n.º 37-A/2024
Revogação do regime de regularização de
trabalhadores imigrantes em situação
irregular
Decreto-Lei n.º 264-B/81
Lei de Imigração
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VOL 15 N 2
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A Dessecuritização da Política de Imigração em Portugal: Separação entre Gestão das
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Devido às insuficiências deste sistema, em 2003 tiveram lugar processos adicionais de
regularização extraordinária. Em primeiro lugar, ao abrigo do Acordo Luso-Brasileiro de
2003 (aprovado pelo Decreto n.º 40/2003, de 19 de setembro) foi regularizada a
residência de cerca de 30.000 trabalhadores brasileiros. Em segundo lugar, foi adotada
uma medida regulamentar (artigo 71.º do Decreto Regulamentar n.º 6/2004, de 26 de
abril), que regularizou a permanência de mais de 50.000 trabalhadores imigrantes
(Baganha, 2005), cuja situação se encontrava regularizada junto da Segurança Social e
da Administração Fiscal. Este processo de regularização veio confirmar a mudança
estrutural da imigração em Portugal: o era predominantemente de países lusófonos,
mas cada vez mais oriunda de regiões distantes e sem laços históricos com Portugal,
incluindo tanto países europeus como a Ucrânia, a Roménia e a Moldávia, como países
não europeus como o Paquistão e a Índia (Baganha, 2005).
1.2. A Lei de Imigração de 2007: Uma breve caracterização
Em 2007, foi adotada a atual Lei da Imigração portuguesa (Lei n.º 23/2007, de 4 de
julho), que sofreu, desde então, 15 alterações, a última introduzida pelo Decreto-Lei n.º
37-A/2024, de 3 de junho.
Até 2020, a emissão de vistos de residência para imigrantes que pretendessem trabalhar
em Portugal estava sujeita a uma quota não vinculativa de oportunidades de trabalho
(artigo 59.º). No entanto, a legislação de 2007 reconheceu os desafios de aplicar um
percurso migratório regulamentado desde a origem devido a vários fatores, como a
inadequação da rede consular portuguesa para lidar com os fluxos migratórios, a
burocracia excessiva e a dificuldade de conciliar a oferta e a procura de trabalho à
distância. Para responder a estes desafios, a lei estabeleceu um mecanismo de
regularização permanente de trabalhadores imigrantes (artigo 88.º, n.º 2). Também
alargou esta possibilidade a outras categorias de imigrantes, tais como trabalhadores
independentes, estudantes, familiares de imigrantes ou pessoas com necessidades
humanitárias específicas (por exemplo, crianças imigrantes ou indivíduos
particularmente vulneráveis, como vítimas de exploração laboral). Além disso, a lei
aproximou-se mais dos direitos humanos ao alargar o direito ao reagrupamento familiar
e reforçar as suas garantias processuais (artigos 98 e seguintes) e ao estabelecer
limites legais à recusa de entrada e à expulsão para proteger o direito dos imigrantes à
vida privada e familiar - em particular os que têm filhos menores a residir em Portugal,
sobre os quais exercem o poder parental, ou os que são considerados portugueses de
facto, pois nasceram ou viveram em Portugal desde idade inferior a 10 anos (artigos 36.º
e 135.º) (Sousa, 2023).
O sistema de quotas não vinculativo para a admissão de trabalhadores imigrantes falhou
em regular a imigração laboral desde a origem. Consequentemente, a partir de 2020, foi
sucessivamente suspenso pelas Leis do Orçamento de Estado de 2020, 2021 e 2022. Em
2022, este sistema foi revogado pela Lei n.º 18/2022 de 25 de agosto, que também
introduziu o visto de procura de trabalho (Artigo 57.º-A), permitindo que estrangeiros
entrem e residam legalmente até seis meses para procurar emprego. Após conseguir um
trabalho, poderiam então obter uma autorização de residência.
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O chamado regime de "manifestação de interesse" (Artigo 88.º, n.º 2 da Lei da
Imigração), inicialmente concebido como um mecanismo excecional, foi sendo
flexibilizado. Este permitia a regularização permanente de trabalhadores imigrantes que
tivessem entrado sem o visto adequado, ou ao abrigo de uma isenção de visto, desde
que tivessem um contrato de trabalho e inscrição na segurança social. Inicialmente, este
mecanismo exigia que o imigrante tivesse entrado e permanecido legalmente no país.
No entanto, a Lei n.º 59/2017 de 31 de julho alargou este regime a quem apenas tivesse
uma oferta de emprego e tivesse entrado legalmente, mesmo sem permanência regular.
A partir de 2019, o regime foi estendido a trabalhadores que tivessem entrado em
Portugal de forma irregular, desde que a sua situação na segurança social estivesse
regularizada há, pelo menos, 12 meses (novo Artigo 88.º, n.º 6 introduzido pela Lei n
28/2019 de 29 de março).
Este regime flexível de regularização foi criticado por aqueles que o consideram um "fator
de atração" para a imigração irregular e incentivo à exploração laboral (Gil, 2022). Com
base neste argumento, o atual governo de centro-direita (PSD/CDS) adotou o Decreto-
Lei n.º 37-A/2024 de 3 de junho, que o revogou.
É compreensível que, para quem procura melhores condições de vida, a possibilidade de
regularização em Portugal seja um fator decisivo no seu projeto migratório e na escolha
do destino. No entanto, este regime de regularização apenas beneficiava os imigrantes
integrados no mercado de trabalho, impedindo-os de permanecer numa situação
irregular e vulnerável. Representava, também, uma abordagem humana e justa, uma
vez que um Estado que aceita contribuições para a segurança social de um imigrante não
pode mantê-lo numa condição clandestina, o que apenas exacerba a sua vulnerabilidade
à exploração. A revogação deste mecanismo de regularização permanente não travará a
imigração; apenas a tornará irregular. Isto é especialmente preocupante, dado o défice
estrutural de mão de obra em rios setores de atividade em Portugal, tanto qualificados
como não qualificados, que dependem fortemente de trabalhadores imigrantes.
Foi num contexto de um Portugal aberto à imigração que o Partido Socialista, que
governou de 2015 a 2024, promoveu a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
(SEF). As suas competências na área da documentação de imigrantes e asilo foram
transferidas para uma agência puramente administrativa, a AIMA, que também assumiu
responsabilidades no domínio da integração. Para compreender plenamente a escala
desta reforma institucional da política de imigração portuguesa, é essencial primeiro
entender o que era o SEF, o que será explorado na secção seguinte.
2. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF): Uma força policial única de
fronteiras, imigração e asilo
2.1. Gestão da imigração antes do SEF
As origens do SEF remontam à polícia política da ditadura que governou Portugal de 1933
até à Revolução de 25 de Abril de 1974, que estabeleceu a democracia e o Estado de
direito. Durante a ditadura de Salazar, a principal preocupação não era a imigração, mas
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sim a emigração. O regime focava-se em controlar a emigração dos cidadãos
portugueses, temendo a perda de jovens necessários para as guerras coloniais e a
possibilidade de movimentos de oposição organizados no estrangeiro (Galvanese, 2020).
A Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, criada pelo Decreto-Lei n.º 22.992 de 29 de
agosto de 1933, era responsável por prevenir e reprimir crimes de natureza política e
social (Artigo 3.º), bem como controlar as fronteiras, deter cidadãos portugueses que
tentassem emigrar sem a devida documentação, impedir a entrada de estrangeiros
indocumentados ou indesejáveis e manter registos de cidadãos estrangeiros (Artigo 4.º).
Em 1945, foi substituída pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), sob a
tutela do Ministério do Interior (Decreto-Lei n 35.046 de 22 de outubro de 1945),
mantendo o seu papel no controlo da emigração, segurança de fronteiras e residência de
cidadãos estrangeiros.
Em 1969, a Direção-Geral de Segurança (DGS) sucedeu à PIDE, mantendo o seu estatuto
de polícia política com autoridade sobre emigração, imigração e controlo de fronteiras
(Artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 49.401 de 24 de novembro de 1969 e Artigo 13.º do
Decreto-Lei n.º 368/72 de 30 de setembro). Isso incluía controlar a entrada,
permanência e atividades de estrangeiros em Portugal, emitir pareceres sobre pedidos
de visto, conceder autorizações de residência, supervisionar o emprego de imigrantes
irregulares e controlar as fronteiras terrestres, marítimas e aéreas através da sua Direção
do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 368/72 de 30 de
setembro).
Após a Revolução de 1974, a DGS foi extinta (Decreto-Lei n171/74 de 25 de abril) e
as suas funções de controlo de imigração e fronteiras foram temporariamente
transferidas para a Polícia Judiciária e a Guarda Fiscal, respetivamente. Em maio de 1974,
o Decreto-Lei n.º 215/74, de 22 de maio, concedeu à Polícia de Segurança Pública (PSP)
poderes em matéria de imigração, incluindo controlar a entrada e permanência de
estrangeiros, emitir pareceres sobre vistos, conceder autorizações de residência e
supervisionar o emprego de trabalhadores imigrantes (Artigo 1.º). O controlo das
fronteiras, incluindo a autoridade para recusar a entrada de estrangeiros
indocumentados, suspeitos ou indesejados, foi atribuído à Guarda Fiscal (Artigo 2.º do
Decreto-Lei n.º 215/74 de 22 de maio). Ainda nesse ano, foi criada a Direção do Serviço
de Estrangeiros no seio da PSP (Decreto-Lei n.º 651/74 de 22 de novembro). Em 1976,
este departamento foi separado da PSP e colocado sob a autoridade direta do Ministro
da Administração Interna (Decreto-Lei n.º 494-A/76 de 23 de junho de 1976), originando
a criação do Serviço de Estrangeiros, o antecessor direto do SEF, encarregue de controlar
a entrada, permanência e atividades de estrangeiros em Portugal, conceder autorizações
de residência e emitir pareceres sobre vistos consulares.
2.2. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)
Criado em 1986 sob a tutela do Ministro da Administração Interna (Decreto-Lei n.º
440/86 de 31 de dezembro), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) era uma força
policial especializada responsável pela implementação da política de imigração. As suas
funções incluíam documentar imigrantes (conceder autorizações de residência e vistos
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de trabalho), processar pedidos de asilo, deportar estrangeiros e controlar as fronteiras
aéreas, marítimas e terrestres.
O SEF era simultaneamente um serviço de segurança e um órgão de investigação
criminal, acumulando um conjunto significativo de competências que, em muitos países,
estão tipicamente distribuídas por várias agências. De acordo com o artigo 2.º da sua Lei
Orgânica (Decreto-Lei n.º 252/2000 de 16 de outubro, na sua redação mais recente dada
pelo Decreto-Lei n.º 240/2012 de 6 de novembro), as principais competências do SEF
eram:
- Controlo de fronteiras: Realizar verificações de documentos nos postos
fronteiriços e recusar a entrada a estrangeiros que não cumprissem os requisitos
legais de entrada.
- Gestão da imigração: Emitir pareceres sobre pedidos de vistos consulares,
conceder e renovar autorizações de residência e emitir pareceres sobre pedidos
de naturalização.
- Policiamento da imigração: Imposição de coimas por infrações à lei de imigração,
condução de procedimentos de expulsão ou readmissão de imigrantes irregulares
e investigação de crimes previstos na legislação de imigração (por exemplo,
auxílio à imigração ilegal, angariação de mão de obra estrangeira em situação
irregular, casamentos de conveniência e tráfico de seres humanos).
- Gestão do asilo: Avaliar a admissibilidade dos pedidos de asilo e instruir
procedimentos de asilo.
Gestão dos Sistemas de Informação Schengen e de Vistos: Gerir as secções nacionais do
Sistema de Informação Schengen SIS (embora apenas os alertas sobre estrangeiros
para efeitos de não admissão ou retorno estivessem sob a sua competência) e do Sistema
de Informação de Vistos - VIS (embora este sirva primariamente os consulados).
Além destas responsabilidades administrativas e policiais, o SEF também tinha a tarefa
de emitir passaportes a cidadãos portugueses uma função normalmente associada aos
serviços de registo civil sob a alçada do Ministério da Justiça.
A concentração de funções administrativas para a documentação de imigrantes e o
processamento de pedidos de asilo (que é intrinsecamente diferente da imigração em
termos políticos e legais), controlo de fronteiras e investigação criminal de delitos
relacionados com a imigração resultou numa aplicação prática da legislação de imigração
e asilo influenciada por uma abordagem centrada na segurança.
A forma burocrática e securitária com que o SEF geria uma política de imigração que
deveria ser aberta e humanista, bem como o elevado nível de insatisfação entre os
imigrantes, que enfrentavam uma série de dificuldades e atrasos na sua documentação,
levaram a um processo de dessecuritização, culminando na decisão de desmantelar o
SEF e retirar a gestão da imigração e do asilo do âmbito da segurança interna.
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3. A extinção do SEF e a criação da Agência para a Integração, Migração e Asilo
(AIMA): Corolário de uma política de imigração humanista que não a
imigração como uma questão policial
Em 2019, o Partido Socialista incluiu no seu programa eleitoral um compromisso para
estabelecer regimes de imigração mais flexíveis, incluindo a criação de um quadro de
mobilidade para os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O
partido também defendeu uma mudança na forma como a administração pública
interagia com os imigrantes, salientando que "quem imigra ou pretende imigrar não pode
ser visto, a priori, como um suspeito. (...) deve ser encarado como alguém em busca de
melhores oportunidades de vida e que, (...) pode dar um contributo útil para a
sustentabilidade demográfica e o desenvolvimento económico (...)." (Partido Socialista,
2019, p. 145).
Esta visão foi impulsionada pela insatisfação generalizada com a forma descoordenada,
burocrática e excessivamente lenta com que o SEF processava os pedidos de autorização
de residência. Milhares de imigrantes enfrentavam atrasos prolongados, que muitas
vezes resultavam em dificuldades significativas, como a negação do direito à reunificação
familiar, restrições aos direitos sociais e económicos e mobilidade limitada. Os imigrantes
corriam o risco de ser impedidos de reentrar no país ou de serem sujeitos a decisões de
repatriamento se estivessem sem a devida documentação.
Neste contexto, o Partido Socialista apelou a uma mudança da forma como os serviços
públicos se relacionam com os imigrantes, através da adoção de uma abordagem
humanista e menos burocrática, e defendeu uma clara separação organizacional "entre
as funções policiais e as funções administrativas de autorização e documentação de
imigrantes" (Partido Socialista, 2019, p. 145). Esta separação não implicava
necessariamente a dissolução do SEF, mas uma reforma profunda do serviço,
especialmente tendo em conta que o programa eleitoral do partido incluía planos para
expandir a sua rede de mediadores para apoiar os cidadãos estrangeiros.
Foi, no entanto, o caso de Ihor Homeniuk que catalisou a decisão de extinguir o SEF. A
10 de março de 2020, Ihor Homeniuk, um cidadão ucraniano, foi impedido de entrar no
Aeroporto de Lisboa por não ter uma autorização de residência ou visto que lhe permitisse
trabalhar. Detido no Centro de Instalação Temporária do aeroporto, morreu a 12 de
março após ter sido agredido por inspetores do SEF, que foram posteriormente
condenados. Este crime, que se tornou público a 29 de março de 2020, chocou a nação
e provocou fortes reações por parte do Estado e da sociedade civil. Em resposta, o
governo reformou os Centros de Instalação Temporária nos aeroportos, indemnizou a
viúva de Homeniuk e assinou um protocolo com a Ordem dos Advogados para garantir
assistência jurídica gratuita a todos os estrangeiros a quem fosse negada a entrada. A
consequência mais significativa foi a adoção da Lei n.º 73/2021, de 12 de novembro, que
reestruturou o sistema de controlo fronteiriço em Portugal. Esta lei determinou a extinção
do SEF e a transferência das suas funções policiais e de controlo de fronteiras para outras
forças de segurança, enquanto as suas funções administrativas seriam atribuídas a uma
nova agência dedicada à gestão administrativa da imigração e do asilo. Apesar da
complexidade da reforma, foi estabelecido um prazo inicial de 60 dias para a sua
implementação, que foi posteriormente adiado duas vezes, entrando finalmente em vigor
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a 29 de outubro de 2023 com a criação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo
(AIMA) pelo Decreto-Lei n.º 41/2023.
A AIMA assumiu as responsabilidades administrativas do SEF nas áreas de imigração e
asilo, que incluem emitir pareceres sobre pedidos de visto, conceder e renovar
autorizações de residência, gerir pedidos de proteção internacional e tomar decisões
sobre retorno, entre outras. Adicionalmente, a AIMA herdou as responsabilidades do Alto
Comissariado para as Migrações (ACM) relacionadas com o acolhimento e integração de
migrantes, o combate ao racismo e à discriminação, a integração de grupos étnicos
(particularmente a comunidade cigana, apesar de os seus membros terem, em grande
parte, nacionalidade portuguesa) e a promoção do diálogo intercultural e inter-religioso
questões relevantes tanto para cidadãos portugueses como estrangeiros.
A autoridade do SEF sobre o controlo das fronteiras aéreas foi transferida para a Polícia
de Segurança Pública (PSP), que também gere a segurança dos aeroportos, enquanto o
controlo das fronteiras terrestres e marítimas foi entregue à Guarda Nacional Republicana
(GNR), uma força de segurança militarizada já responsável pela vigilância das fronteiras
marítimas. Estas forças de segurança são agora também responsáveis pela execução de
decisões de afastamento de imigrantes em situação irregular (conforme determinado
pela AIMA), pela execução de decisões de expulsão judicial e pela gestão de centros de
detenção para imigrantes irregulares que aguardam repatriamento. A competência para
investigar crimes relacionados com a migração, incluindo o tráfico de seres humanos, foi
concentrada na Polícia Judiciária.
A responsabilidade pela emissão de passaportes a cidadãos portugueses, anteriormente
a cargo do SEF, foi transferida para o Instituto dos Registos e Notariado, que,
logicamente, deveria ser o responsável por essa função, uma vez que a emissão de
passaportes é mais adequadamente gerida pelos serviços de registo civil, e não por um
serviço de imigração. Também começou a receber pedidos de renovação de autorizações
de residência.
No Sistema de Segurança Interna, foi criada uma Unidade de Coordenação de Fronteiras
e Estrangeiros (Artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 41/2023). Esta unidade assumiu as
responsabilidades do SEF no que diz respeito a verificações de segurança sobre cidadãos
estrangeiros (emitindo pareceres prévios à concessão de vistos e autorizações de
residência) e à gestão dos sistemas de informação utilizados no controlo de fronteiras,
como o Sistema de Informação de Schengen (SIS), o Sistema Europeu de Informação e
Autorização de Viagem (ETIAS), o Sistema de Informação de Vistos (VIS), o Sistema de
Entrada/Saída (SES) e o Sistema de Informação Antecipada sobre Passageiros (APIS).
Em geral, esta reforma, que entrou em vigor a 29 de outubro de 2023, enfrentou forte
oposição de todos os partidos de direita (PSD, CDS-PP), da extrema-direita (Chega) e
até do Partido Comunista Português. Embora o Partido Comunista apoiasse a criação de
um novo serviço administrativo para as funções de gestão de imigração e asilo, opôs-se
à extinção do SEF como uma força policial especializada no controlo de fronteiras.
Algumas vozes na academia também criticaram a reforma. O Observatório de Imigraçao,
Fronteiras e Asilo (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de
Lisboa) expressou uma posição muito negativa, argumentando que a reforma contraria
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a abordagem adotada pela União Europeia de uma gestão integrada das migrações. Em
particular, estabeleceu uma analogia com a Direcção-Geral da Migração e dos Assuntos
Internos da Comissão Europeia, embora esta comparação seja descabida, uma vez que
a DG HOME não tem qualquer papel na aplicação da legislação relativa à imigração, asilo
ou controlo de fronteiras. Gil (2024) também criticou a extinção do SEF, argumentando
que “a existência de uma entidade especialista policial em matéria de imigraão” é
benéfica. A Ordem dos Advogados apôs-se, igualmente, à extinção do SEF, salientando
o seu valor enquanto polícia especializada no controlo da imigração e das fronteiras.
Em minha opinião, esta reforma era inevitável no contexto de uma política de imigração
humanista. Concentrar a execução da política de imigração e asilo e o controlo de
fronteiras numa polícia especializada, levava a que toda a área fosse indevidamente
influenciada por preocupações securitárias contrariando o princípio fundamental de que
a política de imigração não deve encarar os imigrantes como uma ameaça, mas sim como
seres humanos que procuram realizar um projeto de vida no nosso país. Como Pires
(2020) argumenta, esta concentração de funções foi tóxica porque reforçou a perceção
de que a imigração é uma questão de segurança, quando não é nem deve ser. Além
disso, institucionalizou a visão de que a imigração é uma ameaça, o que fomenta a
xenofobia. Por conseguinte, as tarefas administrativas relacionadas com a imigração e
asilo devem ser confiadas a um serviço público administrativo e não a uma força policial.
A imigração é um fenómeno complexo, mas inevitável e profundamente humano.
Nos primeiros tempos de funcionamento, a AIMA tem enfrentado desafios,
nomeadamente devido aos cerca de 400 mil processos de regularização pendentes
herdados do SEF, sem capacidade para dar uma resposta célere. Tal tem conduzido a
um aumento das queixas dos imigrantes que continuam a sofrer atrasos nos processos
de regularização ou de renovação de autorizações de residência, deixando-os numa
situação jurídica precária. Resta-nos esperar que o governo dote a AIMA dos recursos
humanos e tecnológicos necessários para melhorar o seu serviço, uma vez que a
documentação dos imigrantes é um pré-requisito fundamental para a sua integração na
sociedade de acolhimento.
Até à data, o novo governo de centro-direita não foi influenciado pelo partido de extrema-
direita, o Chega, que gostaria de reverter esta reforma e restabelecer o SEF. No entanto,
ao revogar o regime de regularização permanente de trabalhadores imigrantes e ao
sinalizar a sua intenção de apenas admitir imigrantes que obtenham um visto de
residência consular e um contrato de trabalho, o governo adotou uma política de
imigração restritiva. Tendo em consideração o envelhecimento da população portuguesa
e o facto de setores críticos da economia, como o turismo e a agricultura, dependerem
fortemente de mão de obra imigrante, é provável que esta medida não consiga travar os
fluxos migratórios como pretendido. Em vez disso, pode conduzir a um aumento da
imigração irregular, o que é incompatível com os valores humanistas que têm orientado
a política de imigração de Portugal nos últimos anos.
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Conclusões
A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a criação de uma nova entidade de
carácter puramente administrativo (a Agência para a Integração, Migrações e Asilo
AIMA) para gerir a imigração, o asilo, a integração e o diálogo intercultural representam
um marco na política migratória portuguesa, que se tem caracterizado por uma abertura
humanista às migrações internacionais. Esta reforma, promovida pelo Partido Socialista,
que governou Portugal entre novembro de 2015 e abril de 2024, reflete a sua perspetiva
humanista sobre as migrações, dando ênfase à regularização e integração dos
imigrantes. O regime de regularização permanente de trabalhadores imigrantes, em
vigor até 4 de junho de 2024, exemplifica esta política, incentivando a imigração regular
e a integração daqueles que procuram novas oportunidades em Portugal. A criação da
AIMA, uma agência administrativa não policial fora do sistema de segurança interna, é o
culminar desta política humanista e de um processo de dessecuritização das migrações.
Significa uma mudança fundamental na relação do Estado com os imigrantes, encarando-
os não como ameaça à segurança, mas como indivíduos que procuram melhores
condições de vida em Portugal. Em suma, marca uma política que a imigração não
como uma questão de segurança, mas como um fator positivo para o desenvolvimento
do país.
Resta esperar que o atual governo, formado pelos partidos de centro-direita PSD e CDS,
que se opuseram a esta reforma, não a revertam. A revogação do regime de
regularização permanente de trabalhadores imigrantes é um sinal preocupante de uma
mudança para uma política de imigração mais restritiva e centrada na segurança. É pouco
provável que esta política consiga controlar eficazmente os fluxos migratórios e até pode
conduzir a um aumento da imigração irregular, colocando os imigrantes em situação
vulnerável e dificultando a sua integração. No entanto, o anúncio do governo de um
investimento adicional na AIMA para reforçar os seus recursos humanos e tecnológicos,
permitindo-lhe responder mais eficazmente aos milhares de processos de regularização
pendentes, é um passo positivo. É preciso esperar para ver.
Referências
AIMA (2024). Relatório de Migrações e Asilo 2023.
https://aima.gov.pt/media/pages/documents/92dd0f02ea-1726562672/rma-2023.pdf
Baganha, M. I. (2005). Política de Imigração: A regulação dos fluxos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, 73, 2005, 29-44.
Galvanese, M. S. (2020). Fronteiras de Papel: o controle da emigração pelo regime
Salazarista (1933-1947). Revista Tempos Históricos, Vol. 24, n1, 36-72. e-ISNN 1983-
1463. https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8845818
Gil, A.R. (2022). Entrevista. Diário de Notícias (27.12.2022).
https://www.dn.pt/sociedade/ana-rita-gil-as-alteracoes-a-lei-potenciaram-a-imigracao-
clandestina-e-a-exploracao-laboral-15552735.html/
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Gil, A. R. (2024). Entrevista. Observador (22.01.2024).
https://observador.pt/2024/01/22/fim-do-acm-e-do-sef-pode-colocar-em-causa-
integracao-de-imigrantes-considera-investigadora/.
Góis, P. & Marques, J. C. (2018). Retrato de um Portugal migrante: a evolução da
emigração, da imigração e do seu estudo nos últimos 40 anos. e-cadernos CES 29/2018,
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Suplemento.